Quatro anos depois
Vilarejo de Malpasso
Depois que tudo acabou, só restaram a Esfera e o deserto. A sociedade enfim sucumbiu à sua própria natureza predatória e colocou cada um no seu devido lugar. A metrópole fechada, moderna e tecnológica distante do resto, o resto, o que sobrou, o resto que matava e morria atrás de um lugar para passar alguns meses por ano.
Os grupos de andarilhos cruzavam a divisa com o vilarejo incrustado na parte alta da longa e assombrosa planície árida. O tempo inteiro. Indo e vindo. Caminhões fechados carregando gente, utensílios domésticos, roupas, móveis, animais de estimação. Seguiam em fila na estrada cujo asfalto um dia fora esburacado; agora mera faixa de um piche gasto e corroído encoberto pela terra vermelha. Às vezes contratavam escoltadores montados em motocicletas customizadas. Homens armados que tinham o trabalho de m***r quem visse pela frente que não estivesse no clã que os contratara. O maior perigo não eram os animais e sim os traficantes de pele humana (e esfoladores), os chamados skinners, bem como os dajijs, os soldados da Bad Code.
Apenas os escoltadores de Malpasso conseguiam atravessar o deserto em segurança, sem perder homem, mulher, idoso ou criança no caminho. Cinco ex-militares fugitivos da Esfera, que ergueram o vilarejo do nada, refugiando-se na fazenda Borderline. Aos 28 anos, Montoya era o líder, embora fosse Ziggy e Rhys os que pegavam o dinheiro com os clãs nômades, o valor altíssimo da sua escolta. Para o melhor trabalho o maior dinheiro.
Montoya jogou seu corpo na cadeira à mesa, ao fundo do bar, que ficava no primeiro andar da construção de alvenaria. Ali não era apenas um bar. O vilarejo de refugiados não podia se dar ao luxo de menosprezar o amor de aluguel, então o “Beijo da Samara” também era um prostíbulo, além de uma hospedaria para os clãs que chegavam de passagem ao lugar.
A cerveja era aguada e morna, a espuma tão fina quanto à silhueta de Cindi, a garota mais bonita e também a mais adorável entre todas.
Foi ela quem se achegou quando ele se jogou na cadeira diante da jarra de cerveja. Assim que tirou o chapéu de vaqueiro e o deitou na mesa, ouvia-a dizer:
— Não seja i****a. Os seus irmãos me avisaram de que tá prestes a hibernar. — ela estendeu a mão, pondo-se novamente de pé: — Vem deitar comigo, chega de tristeza.
Ele piscou o olho para ela e sorriu sem vontade. A energia física atingindo o nível mais baixo que aquele corpo podia suportar antes de entrar em colapso e apagar, ou melhor, hibernar.
— Eles não são meus irmãos.
— Quanto ainda lhe resta de energia, Montoya? — ela perguntou, preocupada, avaliando-o com seus imensos olhos melancólicos.
Todo mundo era melancólico naquele deserto.
E, na Esfera, drogavam-se de todas as maneiras.
Ele fitou a pele dos braços, a coloração dos delicados fios cilíndricos à imitação de veias ainda era a de um vermelho profundo.
— Tenho bastante tempo.
— Você precisa de um objetivo.
— É mesmo? — zombou, bebendo em seguida a jarra de cerveja. A garota não sabia, não tinha como saber, mas ele curtia alcançar os limites, fosse o do excesso de energia como também o de estar a um passo de apagar de vez.
O segundo inquilino criado pela Bad Code hibernou. Esgotou-se depois de fugir da Esfera, mais precisamente do exército de androides da corporação, os dajijs. Não foi o desgaste físico que o esgotou. Pôde lutar, m***r e fugir por quase duas semanas sem parar, sem dormir ou descansar, derrubando um por um os soldados da Força de Controle. Ao chegar ao deserto, cortou a garganta de vinte skinners. Quando a batalha acabou e ele pôde enfim descansar, a depressão o tomou como uma maldita e inesperada facada nas costas. Caiu no chão, a cabeça baixa, a falta de sentido espancando-o na nuca. Então ele entendeu que não era mais humano. Ele era uma peça. Ele era um organismo morto-vivo. Ele não era ninguém. Ele não serviria a ninguém. Ele parou de agir, de reagir. Ele se deixou ficar. As veias se engrossaram do líquido verde quase preto, uma espécie de limo oleoso. E ele paralisou por completo, hibernou para todo o sempre. Até ser levado pelos skinners, que venderam suas peças para os mercadores.
Inclusive o cérebro, depois negociado com os cientistas da Bad Code.
Montoya se deixava declinar até o momento em que seus olhos fitavam o vazio à sua frente e as pálpebras paravam de piscar. Podia sentir os membros endurecerem e depois se anestesiarem, e era a conexão com o cérebro biológico que se rompia.
— Vou chamar o Ziggy. Por Deus, vou chamar o Ziggy aqui!
Ele lançou-lhe mais um de seus sorrisos vazios.
— Deixa aquele louco longe de mim.
— Para de levar na brincadeira. Quer acabar como o seu melhor amigo? De que adiantou fugir da Bad Code se tá sempre a um passo de se m***r?
— Máquinas não se matam. Isso faz parte da natureza humana. — comentou, com cinismo.
— Você é humano.
— Sou um organismo cibernético, minha adorável Cindi, cujo cérebro foi reprogramado pelo meu criador. — ele sorriu e acrescentou com ironia: — Que não é o mesmo criador que o seu, já que o meu se chama Vitorius.
— Você é desequilibrado emocionalmente e tem miolos, portanto, é uma pessoa. — ela parecia realmente irritada.
Ele acendeu um cigarro, riscando o fósforo na borda da mesa. Tragou-o fundo. Por entre a fumaça, disse, erguendo a sobrancelha em zombaria:
— Sou o resultado do fim dos tempos.
— Ora, vá se danar, você salva vidas! É um escoltador, protege humanos desesperados, lhes dá um caminho, uma direção para continuarem a lutar, a se manterem de pé. Por favor, Montoya, reage.
— Estou bem, menina.
O olhar sério que lhe lançou atestava a verdade das palavras ditas.
— Tá decidido, vou chamar o Ziggy! — declarou ela, determinada, levantando-se com tamanha rapidez que derrubou a cadeira atrás de si.
Viu-a se afastar cegamente, batendo contra os demais clientes, mesas e cadeiras. Ele chamou o garçom e pediu uma nova rodada de cerveja barata. Coçou o queixo e, ao fazer tal gesto, lembrou que a pele do seu rosto e também a do seu corpo inteiro havia pertencido a um ser humano, como um dia ele fora. Um ser humano caçado pelos skinners, torturado, tendo a pele retirada ainda vivo. Um produto comprado pela Bad Code para revestir suas máquinas de última geração, os inquilinos, os que haviam fugido e um dos executivos da corporação.
O negócio era ficar por ali, beber a sua cerveja até anoitecer e depois voltar para Borderline, atirar-se na cama e tentar dormir. A insônia fazia parte do cotidiano dos inquilinos. Eles dormiam pouco e, com isso, era fácil ficar refém dos vestígios de recordações amargas e traumáticas. Como quando ele era capitão das Forças de Controle e levou seus homens para uma emboscada. Teve o acampamento cercado pelos skinners e os soldados da sua unidade brutalmente atacados.
Durante um tempo, algumas questões não obtiveram resposta e, ainda se restabelecendo do ataque, Montoya não parou de pensar a respeito.
Por que a Bad Code eficientemente os resgatou, à beira da morte, antes de terem a pele retirada pelos skinners? Mas não fizeram o mesmo com o resto da sua unidade.
Por que lhes salvaram o cérebro, se haviam apagado boa parte de suas memórias, embora elas resistissem e os atacassem como um vírus emocional?
Oh, sim, a Bad Code lhes devolvera à vida, os seis militares metralhados puderam voltar a respirar retornando como oficiais da tropa de elite da Esfera.
Até que tudo mudou.
— Escoltador?
Ele curtia a aterradora e deliciosa sensação de afogamento seco quando ouviu a voz grotesca chamando-o. Não se deu ao trabalho de erguer os olhos da jarra vazia para o monstrengo. Queria apenas não ser incomodado. Todos por ali sabiam que quando os escoltadores estavam no bar, sentados à sua mesa ao fundo, ninguém tinha permissão de lhes falar. Eram instáveis, sim. Eram explosivos, sim. Portanto...
— Escoltador Montoya? Quero saber se o dinheiro do meu clã será bem investido, vendemos o gado que tínhamos e boa parte dos artefatos de cobre para os mercadores, levantamos o quanto nos foi pedido pela escolta. Mas ainda não nos deu garantias. Temos um casal de idosos, os nossos líderes, e uma criança aleijada.
Montoya olhou em torno, notando os rostos ansiosos virados na sua direção.
— Ainda não vi o pagamento. — disse, por fim, amassando o resto do cigarro no cinzeiro.
— Nem verá enquanto não provar que é capaz de defender vinte e nove pessoas.
Ele franziu o cenho e, sem encarar o sujeito, comentou.
— Me passaram uma lista com trinta nomes.
— Não pagaremos pela p******o da “banida”.
Agora o assunto o interessou. Um indivíduo “banido” pelo seu próprio clã era aquele que se enquadrava nas seguintes categorias: agressor s****l, pedófilo ou assassino. E, de fato, podia ser atacado pelos skinners sem que ninguém se importasse em defendê-lo. Às vezes, inclusive, era usado como “moeda” de troca com os mercadores que depois o vendiam para os skinners. Uma vez retirada a pele, toda ela, o produto era comercializado com a Bad Code. E a pessoa em questão era abandonada em carne viva debaixo do sol. Morria, era certo, devorada pelos animais do deserto.
— Não viajo com “banidos”. — declarou, impassível.
— Isso não tá no contrato.
— Não temos contrato e não viajo com banidos. — repetiu, acenando para o garçom lhe trazer outra jarra.
— Então vamos deixá-la por aqui.
— Na minha cidade não fica lixo.
— O que vou fazer com a...
Montoya se ergueu num átimo e quase sorriu ao perceber que o grandalhão era pequeno. Notou o movimento de cadeiras ao redor e murmúrios de exclamação. O que o outro havia feito era semelhante à atitude impensada de se aproximar de uma fera para cutucá-la com vara curta.
— Cai fora. — disse, numa voz baixa, encarando-o sem piscar.
O indivíduo sorriu exibindo os dentes frontais revestidos por placas de chumbo. E agora ele via também as marcas profundas na pele grossa, o nariz largo e quebrado como o de um pugilista, os cem quilos distribuídos em quase um metro e noventa. O cara nada mais era que o segurança do clã. Todos eles tinham um valentão que representava a força que os demais não possuíam.
— É comigo que você vai negociar a escolta, então acho melhor me deixar satisfeito com o seu serviço.
Olhou-o de cima a baixo, procurando não rir, porque seria um riso de menosprezo.
O garçom se aproximou, mas não foi da mesa e sim do briguento. Fez um sinal a ele, que se abaixou para ouvi-lo dizer: Você deve saber que os escoltadores de Malpasso não são humanos. Se ele quiser, te mata na hora.
— Uma queda de braço, que tal? Se eu ganhar, a escolta sai de graça. — provocou-o, o cara do clã, sorrindo como um demente.
Montoya viu Cindi no alto da escada e ela fazia não com a cabeça. Devolveu o sorriso ao homem, declarando com serenidade:
— E se você ficar sem o braço, o que o seu clã ganha com isso?
— Olha, até agora nunca vi um inquilino e sei que muitos por aí mentem que o são. — disse, com ar desafiador.
— É verdade.
— Tá com medo de quê? Se você ganhar, fica com a banida. Tem 18 anos, é bonita e filha de um assassino em série. — afirmou, com menosprezo.
Montoya endereçou um longo olhar a Cindi, que sorriu, concordando com a cabeça. Sim, ela havia visto a tal banida.
Sentou novamente e aguardou o outro fazer o mesmo. Eles apoiaram os cotovelos na mesa. Montoya não fez questão de retirar o seu sobretudo cinza, mas aproveitou para emborcar a terceira jarra com um litro de cerveja. Arrotou alto, todos riram. E ele arrotou de novo. O grandalhão fez uma careta, considerando que o escoltador não estava levando a coisa a sério.
Ofereceu-lhe o braço esquerdo, mania sua apenas, não havia nada diferente com esse ou o direito. Mas essa escolha pareceu agradar o seu adversário. As mãos se agarraram, os dedos grossos do outro cobriam parte do dorso da sua mão. E ele provavelmente sentiu a maciez tépida da sua pele orgânica, a firmeza da malha de titânio sobre a kevlar que revestia o esqueleto mecânico e, ainda assim, para um leigo em robótica, aquela mão podia se passar como a mão de um homem.
Cindi se postou junto à mesa e falou:
— Vocês são dois idiotas, mas alguém tem que mediar a p***a dessa disputa. Assim que eu disser “já”, é que valerá.
Montoya piscou o olho para ela, sabendo o quanto aquela garota detestava cenas de exibicionismo. Bem, ele não estava se exibindo para alguém que conhecia havia anos, desde que construíra Malpasso e Cindi aparecera com sua caravana de desesperados por terras e água. O seu clã partira para o deserto e fora dizimado. Cindi ficou e lhe pediu que construísse um lugar para ela ganhar a vida. Mas foi Keid, o escoltador que pouco sorria, quem teve a ideia de lhe dar um bar. Mais tarde, ela abriu a hospedaria e o prostíbulo. Talvez por uma questão de ciúme ou maluquice dele, Keid parou de falar com Cindi.
Ela disse “já”, e Montoya sentiu o peso leve de uma mosca sobre o dorso da sua mão, mas era o sujeito colocando toda sua força numa técnica conhecida como hook. O grandalhão girou o pulso para dentro, tentando puxar o seu braço para próximo dele. A vantagem era que o seu adversário podia usar toda a força do seu corpo, toda a musculatura de alguém que comia mais que todos do clã.
Com a mão livre, Montoya pegou um cigarro da carteira enfiada no bolso lateral do sobretudo. Enquanto o outro tinha a cara vermelha e inchada de tanto forçar o próprio braço a fim de derrubar o seu contra a mesa, Montoya catava o fósforo e o riscava na madeira da mesa, a chama explodiu na ponta do palito.
Tragou o cigarro sem resvalar um centímetro sequer do braço da mesa. Apreciava o espetáculo, embora começasse a se entediar. Bocejou alto. O outro praticamente relinchou pelo nariz.
Olhou para os camaradas do bar, todos de Malpasso, eles riam.
No instante seguinte, o seu adversário deu um arranco forte como se enfim fosse deitar o seu punho na mesa. Nada aconteceu, a não ser o engrossamento de uma veia no meio da testa dele.
— Aneurisma. Pode romper uma veia do cérebro. Muito cuidado. — ele debochou do cara, sorrindo enquanto exalava a fumaça do cigarro pelo nariz.
Ficaram nisso, agarrados pelas mãos, por mais alguns minutos. Até que Montoya viu-se falando:
— Você vai perder. Talvez eu não seja um inquilino e tenha apenas um bom condicionamento físico e bastante prática em queda de braço. — a respiração tranquila. — Quero que aceitem a menina no clã. Vou levá-la e protegê-la assim como farei com todos. Ou melhor, ela irá comigo na picape, terá uma p******o especial. — completou, num tom zombeteiro.
— Nada feito. — rosnou o brutamontes.
— Tô negociando agora é com a sua dignidade. — falou, baixinho, arqueando as sobrancelhas numa expressão incisiva.
O olhar do homem era selvagem, de um tipo de bicho que se escondia detrás dos arbustos, não queria lutar de verdade, mas era obrigado por ser o maior entre os seus.
Ele cedeu, o seu suposto oponente cedeu, o brilho nos olhos se apagou, e foi como um pedido de clemência. Podia deixá-lo vencer como já o fizera com outros tolos como ele. Testavam a sua força. Não viam as suas engrenagens, as peças da máquina, tudo perfeito do lado de fora, como então poderiam afirmar que ele era um inquilino?
Cindi pareceu notar que ele se deixaria mais uma vez ser vencido. Pouco lhe importava vencer. Mas aquela sua amiga bancava à protetora dos escoltadores, talvez fosse apenas gratidão ou senso de amizade, a verdade era que ela fez um gesto de cabeça em direção à porta, mostrando-lhe a banida do clã.
O vestido ia até os pés, era velho e sujo de poeira, lembrava roupa de gente idosa. Usava bota de vaqueira e um grande xale de tecido barato em torno dos ombros. O cabelo loiro puxado para a cor do caramelo, olhos verdes imensos, assustados, perdidos. A franja dava-lhe um aspecto ainda mais juvenil e a magreza demonstrava a subnutrição. Aquela garota não era alimentada. Como uma banida, tinha de se virar para arranjar comida e água, e isso significava viver de sobras, catando o que deixavam para trás.
Montoya não daria a vitória a quem não protegia um ser desamparado. Deitou o punho do outro na mesa com toda a delicadeza possível. Não queria quebrar a mesa do estabelecimento de Cindi.
— A banida é minha. — ele afirmou, sorrindo com o cigarro pendendo no canto da boca.