O despertador da Bruna tocou várias vezes. Depois do que pareceu uma eternidade, ela finalmente conseguiu achá-lo e desligá-lo. Eu não estava com a mínima vontade de ir para a aula, mas eu não tinha escolha, então me levantei e fui até o banheiro antes que qualquer uma das duas entrasse.
Como elas sempre demoravam, desci antes delas e fui para o refeitório. Peguei meu café da manhã, apesar de não ter fome, e me sentei à mesa de sempre. Alex sentou à minha frente alguns segundos depois.
- Bom dia – ele disse.
- Bom dia – disse, desanimada.
- Tudo bem com você? – olhei para ele, que pareceu preocupado.
- Acordei com o pé esquerdo, apenas isso.
- Você deveria ir ao médico – ele falou enquanto botava açúcar no café – Acho que seu pé direito está com defeito ultimamente.
Tentei não sorrir, mas fracassei.
- Você é muito i****a.
- E você tem um sorriso lindo – ele me encarou – Deveria usá-lo mais vezes.
Encarei ele, que me olhava intensamente. Estava começando a me sentir desconfortável quando as meninas chegaram e se sentaram ao meu lado.
- Bom dia, flor do dia – Bruna disse e me deu um beijo na bochecha.
- Como está o humor hoje? – Débora perguntou, olhando para Alex.
- Um sorriso até agora – ele disse.
- Então, como foi o jogo ontem? – Bruna perguntou, olhando para Alex.
Acabei deixando a colher na minha mão cair com a pergunta, o que não passou despercebido por ele.
- Bom... – ele disse, me encarando, depois olhou para Bruna novamente – Meu time perdeu, e como eu sou o melhor torcedor do mundo tive que perder junto. Vinte pratas a menos na carteira.
- Apostou com a Ágata? – Débora perguntou com uma sobrancelha erguida.
- Foi – ele disse – Não deveria ter feito isso?
- Com certeza, não – Débora disse – Ela nunca perde.
Eu ri.
- Nisso ela tem razão.
O horário da aula chegou e nos levantamos para ir para sair. Como já era a segunda semana, os trabalhos começaram a aparecer um atrás do outro, o que só me fez questionar mais ainda o porquê de eu estar ali.
Eu e Alex acabamos formando uma dupla em um dos trabalhos. Assim que as aulas acabaram, fomos direto para a biblioteca fazê-lo.
Ficamos o dia inteiro e o começo da noite enfurnados dentro da biblioteca, tentando deixar o trabalho pronto para a primeira aula do dia seguinte.
- Acho que está pronto – eu falei, após dar uma conferida.
- Tem que estar – Alex resmungou – Não aguento mais ficar sentado nessa cadeira. Isso é torturante.
- Falando desse jeito até parece que nunca fez um trabalho na vida.
- Mais ou menos isso – ele disse – Só fiz esse por você.
Encarei ele.
- Quer me dizer como conseguiu entrar na faculdade? – ele acabou rindo.
- Longa história – ele disse – Vamos embora, não aguento mais ficar aqui. Acho que minha cota de frequentar a biblioteca durante o ano foi esgotada todinha hoje – sorri e balancei a cabeça – O que foi?
- Às vezes você é inacreditável.
- É um dos meus talentos.
Ele entrou no assunto da minha família no caminho até os dormitórios. Falei para ele sobre meus pais, meus irmãos, minha cidadezinha pacata e outras coisas. Quando toquei no assunto sobre sua família, ele apenas falou que tinha uma irmã e que sua mãe tinha morrido alguns anos atrás. Quando perguntei sobre como ela tinha morrido, ele apenas disse que era uma longa história e mudou de assunto antes que eu perguntasse mais.
O jeito misterioso dele me intrigava, me fazia querer cavar fundo para descobrir as partes que ele omitia das perguntas que eu fazia. De alguma forma, isso parecia importante, como algo que mudaria completamente as coisas.
- E o que você gosta de fazer? – perguntei – Já que estudar com certeza não é a sua praia.
- Acho que estudar não é a praia de ninguém – ele riu e mais uma vez tentou mudar de assunto.
- É verdade – eu sorri – Mas... Então, o que você gosta de fazer?
Ele fez uma careta e parou para pensar.
- Luta.
- Que tipo de luta? – perguntei, querendo saber mais.
- Não é muito conhecida – ele respondeu – Acho que você não saberia qual.
- Tipo aquela sua história sobre Kalighans e Renegados?
Ele me encarou por um tempo antes de responder e depois deu um sorriso.
- Mais ou menos.
Ficamos em silêncio até chegar em frente ao bloco onde ficava meu quarto.
- Entregue – ele disse para mim.
- Obrigada – dei as costas para entrar no prédio, mas me virei novamente para ele.
Ele me fitou.
- O que foi? – ele perguntou quando notou que eu o estava encarando.
- Nada – eu disse e comecei a me virar de novo, mas voltei até ele e dei um beijo em sua bochecha.
Ele me encarou, surpreso e sério, sem saber o que dizer. Senti minhas bochechas ficarem vermelhas, e então me virei novamente e praticamente corri para dentro do prédio.
Por que eu tinha feito aquilo mesmo? Não sabia, só sabia que tinha feito, e me arrependi. Não deveria ter feito, ele nem gostava de mim. Mas ele era meu amigo, não era? Não tinha problema eu dar um beijo na bochecha de um amigo, a não ser que ele signifique mais que isso.
Não, não, não! Comecei a bater na minha cabeça para afastar esses pensamentos.
Débora abriu a porta do quarto bem na hora que eu estava socando minha cabeça. Ela me lançou um olhar questionador, e eu apenas lhe lancei um sorriso antes de entrar no quarto.
- Você estava esse tempo todo fazendo trabalho? – Bruna me perguntou.
- Sim – joguei minha bolsa no chão e depois me joguei na cama – Estou exausta.
- Foi divertido? – Débora perguntou.
- Eu estava fazendo trabalho – disse – Não tem diversão nisso.
- É, mas você estava com o Alex.
Revirei os olhos e sentei na cama.
- Vocês poderiam parar com essa história, por favor. Não tem nada entre a gente.
- É você quem está dizendo...
- Não, Débora – suspirei fundo – Mesmo que eu gostasse dele, ele não sente a mesma coisa por mim.
- Como você tem certeza? – Bruna perguntou.
- Ele disse que veio para faculdade por uma pessoa. Uma garota – eu disse – E, como ele nem sabia da minha existência antes, não pode ser eu.
- Eu nunca o vi com nenhuma outra garota a não ser uma de nós três.
Revirei os olhos e levantei sem paciência.
- Olha, eu não sei onde ela está ou o que ela faz – peguei minha toalha – Eu só sei que ela existe. Então, por favor, parem com essa história – entrei no banheiro e bati a porta, frustrada.
...
No fundo da minha mente, eu ouvi uma voz me chamar. Uma voz que me causou arrepios. Meus sentidos começaram a despertar, e eu senti algo me arranhando. Seriam galhos? Mas não poderia ser, não tinha árvores dentro do meu quarto.
Despertei completamente e entrei em desespero quando descobri que eu não estava no meu quarto. Não sabia exatamente onde estava, mas estava cercada de árvores, o que me fez pensar em uma floresta.
A mesma voz sinistra me chamou novamente, agora mais próxima de mim. Meus sentidos começaram a me impulsionar para longe dali, tentando me avisar que algo estava errado. No entanto, ao mesmo tempo, eu me sentia atraída pela voz.
Quando ela estava bem próxima de mim, comecei a pensar que deveria ter corrido antes, mas já era tarde. À minha frente, apareceu a sombra de alguém.
Fiquei esperando até a pessoa aparecer, mas a sombra continuava se aproximando, e o dono dela não aparecia. Foi quando eu percebi que a sombra tinha olhos de gato, verdes como esmeralda.
Abri a boca para gritar, mas nada saiu dela. Comecei a correr desesperadamente, mas já era tarde, a sombra iria me alcançar.
Foi quando eu ouvi uma voz familiar me chamar do outro lado. Era a voz de Alex. Logo em seguida eu vi uma luz forte à minha frente e soube que era para lá que eu deveria ir. Que era a minha única salvação.
Comecei a correr mais rápido que o vento. A sombra já não estava ao meu encalce. Eu iria conseguir. Quanto mais me aproximava da luz, mais doía. Ela era tão forte que precisei fechar os olhos para não cegar. Mas eu precisava alcançá-la.
Assim que alcancei a luz, senti um fogo percorrer meu corpo, me consumir. Mas não era r**m, era bom.
- Abra os olhos – ouvi Alex dizer.
Abri os olhos e o vi à minha frente, com aquele sorriso caloroso e familiar que me conquistou desde a primeira vez. Ao redor, era tudo branco e luminoso, como se eu estivesse dentro da luz.
Lancei um sorriso a ele e fui em sua direção. Quando fiquei de frente para ele, algo começou a mudar. A luz começou a se extinguir e virar escuridão. Olhei assustada para Alex de novo, mas ele já não era mais ele. Agora ele tinha presas do lugar de dentes, e seus olhos não eram mais verdes escuros, e sim olhos de gato, verdes como esmeralda.
Comecei a me afastar, assustada, mas ele abriu a boca e voou em cima de mim.
Acordei em um pulo na cama, suando e ofegante. Olhei ao redor desesperada, mas não tinha mais floresta e sombra, era apenas meu quarto na faculdade, com as meninas dormindo em suas camas.
É só um sonho, só um sonho, fiquei repetindo essas palavras para mim durante um bom tempo. Levantei da cama e fui até o banheiro. Acendi a luz, molhei meu rosto e fiquei me encarando no espelho.
- É só um sonho r**m – eu sussurrei para mim mesma – É só um sonho r**m.
Então por que minha intuição me dizia o contrário?
Afastei esse pensamento da minha cabeça e voltei para a cama, mas não consegui dormir mais. Quando o dia amanheceu, fui para o banheiro tomar um banho. Quando saí do quarto as meninas tinham acabado de se levantar.
No caminho para o refeitório, não consegui parar de pensar no sonho e naqueles olhos... Estava tão absorta nesses pensamentos que não vi a pessoa na porta do refeitório.
Esbarrei nela sem querer e minhas coisas caíram todas no chão. Eu era ótima em fazer isso.
- d***a! – eu disse – Me desculpa – agachei e comecei a catar minhas coisas – Eu sou tão desastrada.
- Sem problema.
Quando levantei e olhei para a pessoa à minha frente, deixei minhas coisas caírem todas no chão novamente e estremeci dos pés à cabeça.
Era um garoto alto, moreno, com cabelos pretos caídos na frente dos olhos. Olhos verdes de gato.