Um canto só meu

1624 Palavras
O pai de Nina, Rafael, se levanta do sofá branco e vem na nossa direção. Apesar de ser pleno sábado à noite, ele está vestido com uma camisa social meio aberta e calça preta, como se tivesse acabado de sair de uma reunião. Seu cabelo escuro como a noite bate na altura dos ombros, dando a ele um ar rústico e sério, aliado à barba bem aparada. Por um segundo o imagino com a cara séria dando ordens em um escritório qualquer. Não é difícil imaginar, ainda mais vestido como estava. O homem poderia ser modelo dessas lojas de ternos e roupa social, gato daquele jeito. Me vejo entrando e inventado uma desculpa qualquer para tirá-lo da reunião e ele me leva para uma sala privada. A porta se fecha trás de nós… mas esse fluxo de pensamento é interrompido quanto ele pigarreia. Sorrio da melhor forma que posso, perfeitamente ciente de que não estou no meu melhor estado e que estava entrando na casa dele de mala e cuia e fantasiando sobre ele fazendo coisas indecentes comigo em seu local de trabalho. Deus, eu podia ser mais cretina? A despeito da sala tão fria que parece estar imitando o Polo Norte, sinto o calor se espalhar pelo meu rosto e pescoço. Eu estou ficando vermelha? — Boa noite, senhor — cumprimento um tento sem ar e enho votem-se de dar um soco na minha própria cara. Fala sério! Os olhos azuis dele ficam ainda mais brilhantes, como prata incandescente, queimando tudo e me deixando ainda mais febril. — Pai, se lembra da Nath, a minha melhor amiga? — Nina começa e, sem esperar por uma resposta, continua: —, ela caiu em um golpe — minha amiga conta pesarosa, sacudindo a cabeleira dourada, completamente alheia aos pensamentos impuros que se passam na minha cabeça. Os olhos castanhos de Nina estão arregalados de um jeito inocente e muito fofo. O que faz meu coração pesar uma tonelada dentro do peito, culpado por eu estar tendo pensamentos proibidos com o pai da pessoa que literalmente está salvando a minha vida. Rafael Vidal ergue uma sobrancelha escura na minha direção e eu apenas concordo com a cabeça, sentindo a humilhação voltar em uma onda quente, deixando meu pescoço, rosto e orelhas ardentes. Como eu pude ser tão burra? Esse golpe nem era novo! Todo mundo sabe os riscos de fazer negócios pela internet e ainda assim eu, ansiosa demais com a perspectiva de sair de casa, sequer busquei provas concretas do negócio que estava fechando. Se estivesse vivo, meu avô iria puxar minha orelha por ser tão descuidada. Mas, se ele estivesse vivo, eu nem precisaria correr para arrumar um cantinho pra chamar de lar. A casa dele era esse lar. Minha melhor amiga conta toda a história em um resumo bastante simples e preciso para o seu pai : como eu entrei em contato com a corretora por um site de aluguel de imóveis, como recebi várias fotos e vídeos que pareciam legítimos, a papelada que tive que assinar… Até o momento em que chegamos no apartamento, logo após ela me pegar no aeroporto. Nina narra a nossa conversa com o porteiro e o síndico do prédio. Uma mão imensa e muito quente aperta meu ombro por cima do tecido fino da minha camiseta. Ergo o olhar, encontrando um par dos olhos azuis mais claros que eu já vi na vida. O tipo de olhos que assombram uma mente mesmo quando não está olhando para ela. Como um cavalheiro, ele pega a minha mão na sua muito maior e beija a parte de trás sem jamais tirar os olhos claríssimos do meu rosto. Minhas pernas ficam bambas com aquele olhar, com aquele toque e preciso entreabrir os lábios para conseguir respirar. — Não se preocupe, Natália — a forma como sua língua acaricia meu nome naquele sussurro faz eu me arrepiar inteira. — Nós vamos cuidar de você. Você pode me chamar de Rafael. Por um segundo tudo ao meu redor desaparece, restando apenas nós dois naquela sala podre de chique. — Eu te disse — Nina se intromete e eu pisco saindo do transe causado por seu pai extremamente gostoso. — Você vai poder ficar aqui o tempo que precisar, amiga. Infelizmente ele também parece sair do transe e se afasta um passo, limpando a garganta. Muda com aquele toque delicioso — e o homem mais gostoso ainda —. olho para Nina com um pedido de socorro escrito nos olhos, mas minha amiga não parece perceber. — Obrigada — agradeço com a voz fraca, o olhar fixo em Rafael Vidal. — Vem, Nath — Nina me chama enlaçando o meu braço com o seu. Suavizo animada quase me faz rir. Ela parece uma criança que ganhou um presente de bate adiantado. — Vou te mostrar o seu quarto. Me afasto de Rafael, um tanto envergonhada por ter deixado meu lado vagabunda me dominar outra vez e me obrigo a me concentrar em sua filha. Acompanho Nina pelo apartamento, notando como ele era bem maior que a casa onde ela passou a maior parte da vida, na nossa antiga cidade, mas também tem o aspecto de lar que eu sempre associei àquela casa. Era engraçado penar que Nina era a minha única amiga filha de pais separados, o que foi um escândalo para a pequena cidade interiorana que até hoje não se conforma com o fato de minha mãe ter me tido sozinha — porém, é claro, ninguém ousava verbalizar isso. Talvez tenha sido por isso que Nina e eu nos tornamos amigas tão rapidamente. Nós éramos duas crianças recebendo olhares de pena dos adultos embora não fizéssemos ideia do motivo. Tudo o que sabíamos era que as professoras cochichavam sobre precisar ficar de olho em nós pois éramos “aquele tipo de criança”, como se o fato de não termos ambos os pais presentes nos tornasse aberrações indignas. Sacudo a cabeça para afastar esses pensamentos idiotas. Nem eu nem Nina jamais precisamos de pena de adultos. Eu tinha meu avô e meu tio que foram figuras paternas — e maternas — muito boas, e Nina, embora criada com a mãe, sempre passava ao menos um mês na casa do pai, onde agora vivia integralmente. Minha amiga me leva para um corredor com três portas: uma de cada lado e uma ao final do corredor. — O meu quarto é esse — ela indica a porta à esquerda, abrindo-a para que eu veja o quarto de paredes brancas com detalhes em rosa e cinza. — E você pode ficar com o quarto de frente para o meu. Vamos precisar comprar algumas coisas para enfeitar porque sinceramente ele parece quarto de hospital, todo morto. Não tivemos tempo para decorá-lo ainda porque papai comprou o apartamento com tudo incluso e não tínhamos ideia de que receberíamos hóspedes tão cedo — ela sorri pra mim, animada e meu coração se aquece. — Está ótimo — respondo apertando seu ombro macio e estou sendo sincera. Eu estaria perdida sem Nina ao meu lado. — Vocês já estão fazendo muito por mim… — mas não consigo concluir as palavras, pois o nó muito conhecido na garganta me sufoca. Minha amiga sorri e me envolve em um abraço reconfortante. Seu cabelo com cheiro de flor de laranjeira faz cócegas embaixo do meu nariz. — Nós vamos cuidar de você, amiga — garante com a voz suave. — Vem colocar as suas coisas dentro do armário. Nina não estava brincando quando disse que o quarto parecia um quarto de hospital. Tudo nele é branco e sem graça, sem vida. Parece um quarto de hotel, frio e impessoal, apesar do tamanho. O cômodo é quase tão grande quanto o meu próprio quarto em casa. Esse pensamento faz meu coração se apertar. Desde que o vovô morreu, aquele lugar não tinha mais o sentimento de casa. Eu me sentia uma intrusa na casa da cidade e não conseguia ir à fazenda. Doía demais. Cada árvore lá tinha uma história, trazia uma lembrança de vovô. Talvez fosse por isso que eu fui tão descuidada ao escolher o apartamento imaginário. Eu precisava de um espaço que fosse só meu. Um canto para recomeçar. Me forço a sair desses pensamentos e sorrio na direção de Nina. — Ok, talvez um pouco de cor não vá cair muito m*l aqui — admito analisando o quarto assustadoramente branco. Cortinas, roupa de cama, mesa de cabeceira… tudo branco. Até mesmo as decorações são brancas ou transparentes. — Mas não vamos gastar muito, já que eu estou falida e não vou poder retribuir tão cedo. Meu tio disse que o processo de inventário vai demorar horrores e minha mãe está regulando até os centavos. — Bobagem, amiga — ela descarta a ideia com um gesto de desdém da mão. — Posso abrir a sua mala ou você prefere fazer isso sozinha? Dou permissão para que ela abra a mala, até porque não tem nada escandaloso para ver. Eu tinha deixado meus vibradores em casa porque não queria ter que explicar para a segurança de um aeroporto caso eles decidissem abrir a minha mala. Levamos quase uma hora hora para arrumar tudo, pois estávamos sempre parando para falar de alguma coisa, lembrar os velhos tempos e comentar sobre nossas vidas, como ela estava se sentindo desde a perda da mãe, que foi o motivo pelo qual ela precisou vir morar com o pai. O olhar quente de Rafael percorrendo o meu corpo passa pela minha cabeça outra vez. Sinto um sorriso involuntário se delinear nos meus lábios.Talvez Nina esteja certa. Talvez haja um arco-íris por trás dessa tempestade que eu estava enfrentando.
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