Pré-visualização gratuita 01 - Liz
PRÓLOGO — Liz Narrando
Eu sempre achei que a maior mentira que eu já tinha contado na vida era aquela frase ensaiada que eu soltava em todos os jantares de família:
— Eu e o Ramon estamos muito felizes.
Mas naquele fim de tarde abafado, parada diante da porta do apartamento dele, eu descobri que eu ainda era capaz de mentiras muito maiores, principalmente as que eu contava pra mim mesma.
Não sei explicar por que eu fui até ali sem avisar. Talvez fosse intuição, talvez fosse cansaço, talvez fosse só o estômago revirando a semana inteira cada vez que o celular dele vibrava e ele virava o rosto. Eu já não dormia direito, já não acreditava nas desculpas prontas, já não me reconhecia naquele relacionamento que meu pai insistia em chamar de "a melhor escolha da sua vida, filha.”
Ramon era a melhor escolha pra ele. Um advogado brilhante, ambicioso, político nos jeitos, educado nas palavras. Perfeito demais pra ser verdade, e eu finalmente ia descobrir quão perfeito ele era.
Subi o elevador segurando as sacolas com as coisas que ele tinha pedido: um terno da costureira, alguns documentos pra revisar e o bolo preferido dele, que a nossa governanta tinha preparado porque hoje supostamente íamos jantar juntos. Eu queria conversar. Na verdade, eu queria terminar. Mas, na minha ingenuidade, achei que dava pra terminar com elegância.
A porta já estava destrancada.
Esse foi o primeiro sinal.
O segundo foi o salto agulha jogado no corredor.
— Andreza? — murmurei, reconhecendo a bolsa imediatamente.
O terceiro sinal veio como um golpe seco no peito: gemidos.
Gemidos femininos. Altos. De alguém que eu conhecia tão bem que era quase uma irmã.
Meu coração parou. Acho que meu corpo todo parou. E, por um momento inteiro, eu quis acreditar que eu estava ouvindo errado. Que era a televisão. Que era algum vídeo. Que era qualquer coisa que não fosse o que realmente era.
Mas a verdade não pediu minha permissão pra entrar.
Eu avancei alguns passos, cada um parecendo puxar um fio da minha confiança e rasgar de cima a baixo. As sacolas escorregaram da minha mão quando a porta do quarto se abriu sozinha, porque o ar-condicionado estava ligado no máximo e criou corrente.
E então eu vi.
Ramon estava de joelhos no colchão, o corpo nu colado nas costas de Andreza, a minha melhor amiga desde o primário. Ela estava virada pra parede, com os cabelos loiros colados na pele pelo suor, arquejando como se estivesse vivendo o momento mais intenso da vida, e ele gemia o nome dela.
O nome dela.
Senti alguma coisa dentro de mim se partir. Não foi só o coração. Foi algo mais fundo, mais estrutural. Como se até os ossos tivessem trincado.
Eu não consegui falar de primeira. Só fiquei ali, parada na porta, observando uma cena que parecia saída de um pesadelo grotesco. Uma cena vulgar demais pra ser real e dolorosa demais pra ser um delírio.
— Ramon. — Minha voz saiu baixa, falhando.
Eles congelaram.
Andreza arregalou os olhos como quem vê um fantasma. Puxou o lençol rápido, cobrindo o corpo, e eu vi na expressão dela algo pior do que culpa: era medo do meu julgamento. Medo de eu contar pra alguém. Como se a maior dor ali fosse o escândalo, não a traição.
Ramon virou lentamente, o rosto vermelho, o cabelo bagunçado, o corpo ainda arfando. E mesmo assim, mesmo me vendo destruída na porta, a primeira coisa que ele fez foi tentar se justificar.
— Liz… amor… não é o que você está pensando.
Ri. Eu juro por Deus, eu ri. Porque a frase era tão ridícula que só podia ser piada.
— Não é? — sussurrei, sentindo as lágrimas queimarem minha visão. — Então o que é? Você estava caindo com o paü na büceta dela?
— Você não entende — ela tentou dizer, com aquela voz infantilizada que eu sempre achei fofa. Hoje só me deu nojo.
— Cala a boca. — Minha voz saiu firme, inesperadamente firme. — Os dois. Calem a boca.
Ramon desceu da cama tentando pegar a calça, mas eu ergui a mão, e ele parou. Talvez porque nunca me viu daquele jeito. Talvez porque, pela primeira vez na vida, eu não estava tentando ser a filha perfeita, a noiva educada, a mulher compreensiva.
A Liz apática morreu naquela porta.
— Quanto tempo? — perguntei, tentando manter o ar nos pulmões.
— Liz…
— Quanto tempo, Ramon?
Ele respirou fundo, como quem precisa de coragem.
E eu já sabia que a resposta ia doer.
— Seis meses.
Seis meses.
Seis meses que eu dormia ao lado dele achando que estávamos “numa fase difícil”.
Seis meses que eu defendia a Andreza quando Sabrina dizia que ela era falsa.
Seis meses que eu planejava um casamento fadado ao fracasso, porque quem casa com alguém que não ama, que mente. Que traí.
Eu senti a mão tremer. Tive que me segurar na parede.
— Eu ia terminar com você — ele disse rápido. — Mas seu pai…
— Meu pai? — gargalhei, amarga. — Então é isso? Você só ficou comigo porque é o genro perfeito que ele sempre quis?
Ele engoliu seco. A resposta estava no silêncio.
A dor virou raiva. Uma raiva quente, viva, urgente.
— Eu te odiaria menos se você tivesse me enganado por sexo. Mas foi por interesse, né? — sibilei. — Você usou a filha do presidente da Associação Jurídica pra subir na carreira. Faz sentido. Foi isso que meu pai queria, afinal.
O nome dele pesou no ar. O papel social. O prestígio. Tudo aquilo que sempre foi mais importante do que meus sentimentos.
Andreza então resolveu falar:
— Liz, por favor, não faz drama.
Drama.
Essa palavra percorreu meu corpo como uma chama.
Eu avancei. Ela recuou.
— Você destruiu uma amizade de vinte anos e vem falar de drama? — Minha voz falhou. — Você tränsou com o meu noivo. Na nossa cama. Com o presente de noivado do meu pai jogado no chão!
Ela olhou para o colar ouro que estava caído perto da cabeceira.
Meu coração latejou de dor.
Eu respirei fundo, tentando não desmoronar ali mesmo.
Eu precisava sair. Eu precisava respirar. Eu precisava salvar o pouco que ainda restava de mim.
— Acabou. — Falei com firmeza, cada sílaba como um ponto final. — O noivado, a amizade, tudo. Vocês dois se merecem.
— Liz… — Ramon deu um passo, mas eu recuei.
— Não toca em mim. Seu nojento. Nunca mais.
Peguei minha bolsa caída no chão e virei as costas sem olhar de novo.
O apartamento que antes parecia perfeito agora cheirava a mentira.
A cada passo, eu sentia minha alma deixando aquele lugar.
O elevador demorou uma eternidade pra chegar. Eu tremia, tentando não chorar, mas bastou a porta fechar pra tudo desabar. Solucei tão alto que tive que apertar a mão na boca.
Doía.
Doía de um jeito que eu nunca tinha sentido antes.
Mas junto com a dor veio outra coisa: liberdade. E uma coragem silenciosa, quase imperceptível, nascendo ali no meio dos cacos.
Naquela noite, eu entendi que a vida tinha acabado de virar uma página que eu não escolhi, mas que, pela primeira vez, eu podia escrever sozinha.
Mas naquele instante?
Naquele corredor frio de elevador?
Eu só sabia de uma coisa:
Eu nunca mais ia permitir que alguém me reduzisse ao papel que esperavam de mim.
E sem perceber, naquele choro silencioso e sufocado…
eu nascia de novo.