Uma noite como alguém

2215 Palavras
O som estridente da buzina do navio me acordou e pulei da rede em pronto-ataque. Ela ficava num canto isolado, atrás do armário de roupa do capitão Gulian, onde ninguém poderia se incomodar em me ver. Ou ver minha bagunça.            Na biblioteca do Dergo havia uma alcova só para mim, e por um longo tempo vivi nele. No entanto, o capitão permitiu que eu lesse histórias conotativas de aventura e, em algumas delas, os sumos eram os primeiros que morriam. De acordo com esses livros, não havia um jeito melhor de fazer o capitão do navio perder a cabeça, como matando o seu cérebro extra. Isso os deixava irritado e, irritado, pessoas se tornam um pouco ilógicas.             Os sumos das histórias, assim como na grande maioria da vida real, sempre têm uma alcova na biblioteca, e era lá onde eles primeiro caçavam os sumos para matá-los. Fugi da minha alcova na primeira oportunidade.             Foi difícil fazer o capitão me permitir dormir com ele no mesmo cômodo, mas ele acabou cedendo um pedaço de seu quarto para mim, rindo do meu medo, e nos separando por seu armário de roupas.            Vesti imediatamente uma camisa bege de linho e percebi que o capitão não estava no quarto dele, como costumava nesta parte da madrugada. Corri até o castelo da popa e lá vi as luzes da cidade de Andorra brilhando de longe. Andorra, como muitas, era uma cidade beira-mar, num formato de um Grande C que contornava toda uma baía própria sua. Neste caso, a Baía Perdida.            As duas pontas do grande C tinham duas grandes estátuas de homens que eternamente brigavam, mas nunca se moviam, com a espada da estátua ao meu lado direito indo em direção à barriga do esquerdo e o esquerdo com a espada quase que colada na espada do outro, num movimento que, com dois homens reais, o esquerdo desviaria a espada do oponente que tentava perfurar sua barriga a tempo, e ainda poderia muito bem lhe desferir um ataque com o braço.            Soube disso, através da enciclopédia Deuses de pedra: protetores de grandes cidades. Soube também que a estátua da esquerda tinha cento e doze metros enquanto a da direita tinha cento e sete. A diferença era quase imperceptível para quem olhasse de baixo.            Percebi que ao nosso lado estava o Rava, com Vitto na proa, perdido em seu ego. Olhei desesperadamente para os lados e percebi que estava recôndito aos olhos pidões daquele bastardo miserável.            O capitão Gulian, que estava ao meu lado, virou de costas e alcançou Octávio, lhe dizendo:            — Você ficará responsável pelo reparo dos dois navios. Procure o melhor homem com a melhor equipe e exija qualidade e rapidez. Devem arrumar o Dergo primeiro, para depois arrumarem o outro! Não podemos ficar mais do que três dias na cidade. Enquanto isso, tentarei vender o Rava. — Ele se virou para mim e me encarou. — Telo, você terminou a última história? — Fiz que sim com a cabeça.            — As folhas estão na biblioteca, já revisadas — respondi.            O capitão apontou para Octávio.            — Quero que pegue as folhas e faça cópias e pague para que distribuem por aí na cidade. — Em seguida se virou e se afastou.            Eu o segui, assim como um cachorro faz quando quer algo.            — Senhor.            — O que foi, Telo?            — Eu soube, da outra vez em que estivemos em Andorra, que ela tem uma grandiosa biblioteca bem no centro da cidade.            — É verdade.            — E pensei que se o senhor quisesse ter mais conhecimento, me ordenaria a ir até à biblioteca. A menos que prefira que eu fique outra vez no navio enquanto todos vocês aproveitam os três dias em terra firme.            E continuei andando, o olhando com meus olhos cintilantes, esperando qualquer resposta, enquanto ele se mostrava ponderar sobre o assunto. Torcia os dedos por baixo da minha camisa e os contraia forte, esperando que ele me permitisse segui-lo até a cidade. Não que eu vivesse pedindo para que me deixasse descer do navio em terra firme, mas desta vez não me segurei, até porque eu sempre ouvi as pessoas alegando em como a cidade era bela, limpa, e com formas delirantes. Cada depoimento e cada enciclopédia me fizeram juntar vontade de conhecê-la.            Não sei se a minha insistência daria em algo. Mas se não por agora, talvez para o futuro. Todo Uenoque não foi descoberto por Uenoque em apenas um dia. Ele levou décadas descobrindo mais de a metade do planeta que ninguém sabia da existência, e no fim pôde colocar seu nome no mapa que desenhou, o que acabou virando o nome do mundo.            — Senhor...            — Não, Telo — ele me interrompeu grosseiramente, fazendo uma energia revoltante percorrer imediatamente meu corpo.            Balbuciei, mas não era do meu feitio continuar falando quando ele me dizia não. Não devemos desrespeitá-los. A vontade de nossos donos é a nossa vontade, Jado me dizia muitas vezes.            — Nesta madrugada você virá comigo até a taverna e amanhecerá bebendo — acrescentou ele — e mais tarde se sentirá horrível. Por isso não vai querer ir à biblioteca. — Por fim, olhou para mim com um sorriso cretino no rosto. — Agora... se você conseguir manter o foco nos livros com dor de cabeça, você pode e deve ir. Entendeu?            Forcei um sorriso de gratidão ao olhar para ele, por mesmo que me forçando a me socializar com aqueles idiotas, permitir que eu vá à biblioteca.            — Obrigado, senhor.            Ele pesou sua expressão.            — Nunca mais faça isso. — Apontou para mim. — Você não sabe o quão feio é sorrindo.            Sua b***a irritante.            Desfiz o sorriso forçado no mesmo instante e voltei com a expressão de eterno tédio e raiva que todos os sumos tinham.            — Sim, senhor.   LOGO CHEGAMOS À TAVERNA e a lotamos. Isso porque boa parte ficou no navio para cuidar dos escravos; outros saíram para vender eles; alguns foram em bordéis; e Octávio de achar alguém que reparasse o Dergo e o Rava.            Esse era o lado bom das cidades grandes: todos os comércios importantes aos piratas funcionavam durante a noite e toda a madrugada.            A taverna em que estávamos cheirava m*l e cheirava a álcool. Eu ficava irritado ao ouvir todo aquele barulho: arrotos, cantorias, batidas e risadas. Ali tinham homens estranhamente felizes por causa das bebidas, que eram, na grande maioria, preguiçosos e violentos em casa e nas ruas. Alguns deles me davam tapas nas costas, falsamente felizes, quase me fazendo vomitar aquela coisa r**m que eu tomava à força.            É isso o que eles chamam de diversão?            Uma mulher de altura mediana, com cabelo nas nádegas, brilhoso e castanho claro, num tom levemente avermelhado; de olhos grandes, profundos e verdes escuros; de quadris largos e bem cinturada; de b***o mediano e pele clara, chegou com uma jarra de cristal enorme. Nas histórias do capitão Gulian eu nunca narrei jarras de cristais. Não sabia que tavernas tinham jarras desse tipo.            O capitão olhou para ela com um sorriso maroto e jogado para o lado. Olhei também para a moça e percebi que ela sorriu de volta. A jovem deveria ter cerca de vinte anos, e ainda que trabalhasse na taverna, não parecia com uma cortesã.            — Me perdoe por não termos uma louça à sua altura, Capitão Gulian Beho. Se te ofendo com essa jarra, farei o possível para comprar uma melhor e te servir de forma mais apropriada — ela disse.            Percebi o olhar irritado de Vitto, que tinha percebido ela antes que o capitão, mas de fato as mulheres percebiam antes o primo maior. Era física. Sem contar que Vitto tinha uma pele de leite amanteigada e macia, com aqueles olhos azuis, formando uma inundação de fofura; enquanto o capitão Gulian tinha a pele grossa, cheio de calos nas mãos e cicatrizes pelo corpo, contando com uma grande no queixo que não era facilmente notada pela barba crescida. Além de todo aquele jeito de falar e de se portar rústico que fazia as mulheres se interessarem.            A madrugada passou lenta e a cada gole que eu tomava, menos ligava para o gosto ou para a porcaria dos sentidos. A vida não era de toda chata como eu vivia achando, e os humanos até que eram menos feios do que sempre foram. Alguns até que tinham feições bonitas, ainda que desnecessariamente grandes e com suas cabeças gigantes.            Comecei a me mexer, seguindo a cantoria rítmica feita pelas vozes graves dos bêbados e até pela minha, meio aguda e chata. Acompanhava a música e cantava os finaizinhos dos versos, à princípio. Alguns riam por eu estar cantando junto, mas eu não ligava. Estávamos entre iguais: homens bêbados comemorando algo ou tentando esquecer os problemas do cotidiano. A vida já era chata demais para se importar por coisas quaisquer. Ainda mais ali na taverna.            Logo só cantar, mexer com a cabeça e com minhas pernas pendidas no banco por baixo da mesa não era mais o suficiente. Comecei a cantar tão alto quanto eles e a me mexer mais. O capitão Gulian vendo que eu estava finalmente me divertindo, apregoou num som amigável:            — Suba na mesa e dance, Telo.            Olhei para o taverneiro e para toda a taverna. Ninguém fazia isso, portanto hesitei, mas cheguei à conclusão de que se o capitão Gulian disse para eu fazer, é por que era permitido, então encolhi as pernas, fiquei em pé no banco e logo subi na mesa, onde os homens começaram a batucar com mais força e mais rápido enquanto cantavam mais alto também. Segui o ritmo da música e comecei a me mexer na mesa, com movimentos que eu julgava serem apropriados. E sorri. Sorri com sinceridade, senti prazer em sorrir e meu rosto doeu de tanto que o deixei frígido daquele jeito, com os lábios esticados e meus dentes à mostra.            —... a casa velha ficou para tráááás. — Acompanhava a cantoria, desafinado, mas eles gostavam, então eu continuava: —... Ela não gosta não. Minha mulher é minha mulher e as putas são minhas preferida...a...a...a...aaas...            O capitão Gulian estendeu em minha direção outro copo grande, transbordando cerveja preta, e bebi sem parar para respirar. Minha barriga nunca dilatara nem com água, desta vez estava maior do que estaria se eu engolisse uma cabeça humana.            E a bexiga? A bexiga doía, mas quem ligava?            — Desça daí! — Vitto ordenou com antipatia, por não aguentar mais que o capitão Gulian desse mais atenção a mim do que dava a ele, mas eu não consegui obedecê-lo. — Não fique com seus pés imundos na mesa onde as pessoas comem. Já se exibiu, agora saia! — Continuei dançando. Não era ele o meu senhor, e o capitão Gulian ainda não tinha dito nada. Mesmo sabendo que haveria consequências, não liguei para elas. Se Jado me visse agora ficaria decepcionado e diria que sou seu desgosto. O desgosto de minha raça.            O problema é dele.            — Não ouviu o que eu disse, sumo?! — urrou feito um urso ao se pôr de pé. Ainda assim continuei a dançar, mas desta vez eu o olhava com medo. Percebi ali a alta periculosidade que o álcool pode significar na vida de alguém. Em outra situação eu já estaria sentado no banco.            Vitto ergueu sua mão, que tinha o dobro de volume das minhas, e força o suficiente para me desmontar num só tapa, e o desceu em minha direção com uma velocidade que chegou a me arrepiar. No entanto, o capitão Gulian a segurou antes que me acertasse. Contrai cada músculo do corpo ao me por de cócoras sobre a mesa e usar ambas as mãos para proteger minha cabeça que ficou encaixada por entre as pernas.            — Não há necessidade de bater nele — o capitão proferiu em seu ouvido e seu brado silenciou todo o estabelecimento.            — Está tirando a minha autoridade sobre essa criatura? — Vitto rebateu furioso, apontando com desdém para mim.            — Não, não estou, primo — o capitão Gulian garantiu, mas ainda assim Vitto puxou seu braço da mão dele, violentamente. Seu rosto branco-amarelado foi inundado por um tom forte de rubro. — Só disse que não havia necessidade de machucá-lo. Telo só está se divertindo. Quando foi que o demos tal oportunidade a ele nos últimos anos? Sem contar que fui eu quem pediu para que ele subisse.            Vitto cortou o horizonte ao me açoitar com seu olhar ameaçador e com uma expressão de leão faminto e enjaulado. Daí viria coisa, é claro que viria! Em seguida mudou o foco e encarou o capitão Gulian com desaprovação e ódio. E do nada, após longos segundos, se retirou da taverna por ser o único contra mim. Foi só ele bater a porta atrás dele e se passar cinco segundos tensos que alguém do outro lado da taverna voltou a batucar na mesa com um sorriso no rosto e com cantoria afinada. Permaneci inato, olhando para o capitão Gulian que se animou outra vez ao dar um sorriso aberto e bonito naquele rosto grande, e logo em seguida voltando a batucar na mesa. Se todos estavam felizes, o que me impedia de estar também? Então logo voltei aos meus movimentos, esquecendo imediatamente da existência de Vitto Noir.                                            
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