— Telo! — ouvi Lida me gritar, ainda submerso.
Ao subir à superfície, nadei até o velho Dergo e subi nele. No fim olhei para trás e protestei:
— Eu não sou como você, Lida.
Sem lhe dar mais atenção, subi da forma que pude o velho Dergo. Demorou até que eu chegasse ao seu topo e ficasse quase que inteiramente coberto pela água salgada. O medo de um fogo verde impregnar na minha pele fazia com que os meus olhos averiguassem, com desespero, onde o meu corpo seguia.
Após minutos determinantes da minha vida, procurando por meu senhor, o achei, pedindo socorro, mas não tinha mais ninguém vivo para ajudar. Então nadei lentamente até eles, com a água já cobrindo meus ombros.
— Gulian! — eu o chamei e, sem pestanejar, ele se virou. Gulian chorava dolorosamente.
— O que está fazendo aqui? Vai para o barco, você é inútil aqui, Telo.
— Gulian — Lundaho disse, com seu corpo prensado por um mastro e uma grande farpa lascada, como uma estaca, atravessando sua barriga, fazendo com que seu sangue colorisse a água ao seu redor juntamente com o fogo verde que se mantinha fixo em suas pernas submersas.
Sua cabeça estava acima de um barril, e lutava contra o peso do mastro para continuar com a cabeça na superfície. Lundaho não parecia desesperado, tampouco com medo da morte, só parecia se esforçar para continuar lúcido para o filho.
— Eu quero que você cuide da sua mãe, tudo bem?
Gulian balançou negativamente a cabeça enquanto chorava.
— Não, pai. Eu quero que o senhor cuide dela e de mim.
Ele se ajeitou e gemeu para continuar ali, enquanto o velho Dergo afundava e suas madeiras gemiam alto.
— Eu sei que nunca te disse isso, mas eu te amo demais, meu filho — Lundaho disse, respirando fundo. — A sua mãe vai continuar a cuidar de você, mas eu não estarei mais aqui para cuidar dela. Então peço que você cuide dela por mim. Um dia ela vai envelhecer e ser muito chata e quero que você tenha paciência com ela. Quero que você se mate de trabalhar, se for preciso, para que ela não passe fome. A fome dói muito; é a pior das dores; é humilhante, e por isso preciso que você me entenda e faça o que estou te pedindo. Está me entendendo? — Gulian acenou com a cabeça. — Se ela ficar distante, é porque é o jeito dela de se recuperar disso. Você também terá o seu jeito de se recuperar da perda e não julgo de forma alguma o que você fará para a dor ir embora. Eu não o julgo mesmo. — Lundaho balançou sua cabeça ao se entregar ao sentimentalismo. — Mas cuide da sua mãe, porque eu sei que ela vai cuidar de você... Por favor, não abandone ela.
— Eu entendi, pai — Gulian disse, soluçando. — Eu cuidarei dela e um dia eu vou matar o marquês. — E respirou fundo. — Eu vou começar... — Enxugou suas lágrimas e inspirou com força pelo nariz, fazendo chiar o seu catarro. — Eu vou construir um navio. Um mais forte e mais resistente que esse... Um navio de guerra! E eu vou destruir tudo o que o marquês Baraqsi la Capré tem.
— Se isso vai te fazer se sentir melhor... — Seu pai ficou olhando para ele. — Eu só não quero que isso seja por minha causa. Mate ele pelo o que ele te fará passar, não por ele ter me matado.
— Eu vou destruí-lo, pai. Pelo o que ele me forçará a viver daqui em diante. Mas por ele me forçar a viver sem o senhor também.
Seu pai sorriu, orgulhoso. Gulian estava se tornando um homem ali à sua frente. Pelo menos morreria vendo o seu filho tendo o seu primeiro remorso e planejando a sua primeira vingança.
— Agora vai embora. — Seu pai gemeu, não resistindo mais ao peso sobre o tórax. — Você nada bem rápido, mas o barco da sua mãe já tem um bom tempo de vantagem.
— Não. — E se aproximou mais dele, ensaiando como tiraria aquilo de cima de seu pai. — Eu... Eu... Eu posso tirar isso daqui.
— Vai embora, meu filho! Eu não posso morrer sabendo que você corre o risco de morrer também. — Pegou firme no braço do filho. — Por mim, vai embora enquanto ainda há tempo.
Gulian fez que não com a cabeça, mas seu pai insistiu apenas com o olhar e expressões. No fim, o menino assentiu com a cabeça, hesitante, e saiu de perto dele, ficando centímetros à minha frente.
— Me deixe te salvar. — Ele apontou para seu pai. — Olhe aqui! O senhor ainda está vivo, bem na minha frente. Não pode me forçar a fazer planos sem o senhor. Não enquanto ainda há chances.
Seu pai balançou negativamente a cabeça.
— Não tem como eu sair daqui, filho. Nem se todos do barco viessem para me ajudar, teria como tirar isso de mim. E se tirassem, eu morreria de tanto sangrar. — Lundaho mexeu com os ombros. — É o fim para mim. — Ele apontou com o dedo ao estibordo. — Agora vai embora.
Gulian se afastou um pouco mais e disse:
— Por favor, pai.
Vai, Gulian!
O menino abaixou a cabeça e se lamentou por alguns segundos.
— Nos vemos então em alguns anos, pai.
Lundaho ficou em silêncio e acenou com a cabeça. Em seguida eu agarrei um pedaço de madeira do chão e mostrei ao Gulian.
— Quando se tornar um capitão de seu próprio navio de guerra, é só construir o seu navio com esse pedaço de madeira, e ele ainda será este. Só que será um novo Dergo.
Gulian não mostrou interesse algum. Apenas me pegou no colo, me tirou dali e seguiu reto, sem olhar para trás. Eu dei um tchau com as mãos balançando na direção de Lundaho e ele fez o mesmo para mim.
Comigo em seus braços, Gulian lançou-se ao mar e a água bateu em nós como um tapa forte e ardido. Voltamos à superfície imediatamente e, comigo em suas costas, ele nadou sem parar até avistarmos o barco. Nossa família estava acerca de trinta metros à nossa frente quando ouvimos um disparo distante de nós. Algo escuro se moveu ligeiramente acima do plano da água, que acabou por destroçar imediatamente o pequeno barco com quase todos nele. Pedaços de corpos estraçalhados foram lançados ao ar e caíram na água em diferentes direções. Eu gritei o tanto quanto pude.
Joana, mãe de Gulian, foi atingida em cheio, mas a bomba transpassou seu peito e explodiu contra o corpo de Lida. Vitto se jogou na água no instante em que ouviu o estrondo e por isso a bomba só estraçalhou alguns de seus dedos do pé direito. O pai de Jeana morreu junto à explosão e a mãe dela só conseguiu proteger Jeana, jogando seu corpo e tudo mais à sua frente, para que sua pequena monstrinha não se ferisse. Nisso, sua mãe perdeu a mão e o antebraço esquerdo, além de seu corpo quase inteiro ter queimado.
Tahira se lançou no meio do oceano com Jeana e a empurrou antes que a menina se ferisse junto a ela com o fogo. Com sorte não era o fogo vivo. Gulian me largou sozinho e nadou rapidamente até os sobreviventes enquanto Tahira gritava e berrava com a pele queimada. Intencionalmente, me mantive distante enquanto via todos os outros chorarem. Enquanto eu mesmo chorava escondido por Lida.
Forçado a não poder cumprir um dos últimos desejos de seu pai, o menino ficou perdido no meio do oceano com Vitto, com o que sobrou de Tahira, com a intocável Jeana e comigo.
Assim que o velho Dergo afundou, ficamos em cima de seus destroços e, quase uma semana depois de termos sidos inúmeras vezes afogados pelas ondas gigantes do fim da tarde e ter certeza da morte certa, um navio escravista, cujo dono era um velho conhecido de Lundaho, ofereceu abrigo em troca do trabalho daqueles que podiam, até desembarcarmos no norte de Resson e irmos todos viver com Tahira.