Uma das piores dores do mundo — seja da mãe, do irmão, dos filhos, das mulheres, de qualquer pessoa que ama — é a dor de saber que alguém que você viu crescer, alguém que dividiu teto, fome e esperança, não vai voltar pra casa. E saber que isso aconteceu não por destino, mas pela covardia de um governo corrupto e de uma polícia despreparada… isso corrói qualquer coração.
O chão da comunidade estava tomado por lonas pretas refletindo a luz fria dos postes. Cento e vinte e oito corpos enfileirados, cada um representando uma vida cortada, um lar destruído, uma história interrompida. E tudo isso pela polícia do Rio de Janeiro, cumprindo a ordem de um governador que anos antes subiu o morro para pedir voto. Prometeu respeito, prometeu mudança, prometeu enxergar a favela. O que ele entregou foi sangue.
No meio de tudo aquilo, entre gritos, sirenes, desespero e silêncio, estava a minha mãe — ajoelhada, abraçada ao corpo do meu irmão como se o toque dela pudesse trazer calor de volta à pele fria dele.
O Thauan não levou tiro.
Foi morto pelas costas.
Sem chance de correr.
Sem chance de gritar.
Sem chance de nada.
Enquanto minha mãe chorava, o governador aparecia sorrindo diante das câmeras, comemorando o que chamou de “operação bem-sucedida”.
Quatro policiais mortos.
Cento e vinte e oito jovens apagados.
Gente que cresceu comigo, que dividiu vida comigo, que era conhecido pelo nome, pelo sorriso, pelo sonho. Reduzidos a estatística.
Pra quê isso?
Pra garantir voto?
Pra posar de herói?
Pra fingir que controla aquilo que nunca tentou entender?
O que eu senti naquele momento não teve nome único. Foi um turbilhão de dor, ódio, revolta e impotência, tudo ao mesmo tempo, queimando dentro de mim como ferro quente.
Enquanto preto e favelado é arrastado pela rua, enquanto mãe enterra filho sem velório digno, enquanto gente luta pra sobreviver com salário que não compra nem arroz, esses caras tão em mesa de mármore, tomando café importado e declarando vitória.
Mas o “bandido” que eles falam é o mesmo moleque que o governador apertou a mão dois anos atrás. O mesmo para quem ele deu cem reais pedindo voto. O mesmo que ele usou e descartou.
E agora aparece dizendo que ninguém ali era inocente, que nenhum merecia respeito, dignidade ou empatia. Como se nossas vidas valessem menos.
A favela cresce sabendo que a vida é incerta. Mas nada justifica a forma como eles morreram. A completa ausência de humanidade. A frieza. A covardia mascarada de operação.
Um morador começou a gritar:
— Justiça! Justiça! Justiça!
Muitos repetiram.
Eu queria repetir também, mas minha voz não saía.
Dentro de mim, só existia ódio.
Minha mãe, desesperada, acariciava o rosto do Thauan:
— Meu filho… eu quero meu filho de volta… levanta, amor da mamãe… levanta, Thauan… por favor…
Aquele pedido impossível… aquilo me destruiu. Me partiu no meio. Rasgou algo dentro de mim que nunca mais ia voltar a ser inteiro.
Eu olhei para o corpo dele no chão:
dezessete anos.
Um menino.
Um garoto que sonhava dar uma vida melhor pra mãe.
Que entrou no tráfico por necessidade, não por maldade.
Que queria sustentar a casa, não destruir ninguém.
E agora ali.
Frio.
Silenciado.
Indefeso.
Foi nesse momento que câmera e microfone se aproximaram. Um repórter, um cinegrafista — roupas limpas, olhar treinado, voz ensaiada.
— Boa tarde… estamos ao vivo. O senhor é familiar de alguma das vítimas? Pode dar uma declaração?
Eu virei devagar, encarei ele por alguns segundos e senti tudo ferver dentro de mim.
— Tu quer saber mesmo? Quer a real? Então grava. Filma tudo. Mostra o que vocês nunca mostram direito. Olha ali a minha mãe, abraçada no corpo do meu irmão. Ele tinha só 17 anos. Entrou pra essa vida não porque quis, mas porque não tinha opção. Porque ninguém lembra da gente até precisar de voto. Oportunidade não sobe o morro.
Quem teve escolha foi o governador que apertou a mão dele aqui, que prometeu futuro, dignidade e respeito. Cadê? O que tu vê aqui? Isso é cuidado? É projeto social? É futuro? Não é. Isso aqui é cemitério. É dor. É covardia.
E tu pergunta o que eu sinto? Eu sinto ódio. Ódio disso tudo. Ódio dessa polícia que acha que vida de favelado vale menos. Ódio desse Estado que só aparece pra m***r e inventar justificativa depois.
A dor que eu tô sentindo não vai virar silêncio. Vai virar força. Vai virar direção. Vai virar vingança. Eu vou até o fim. Até onde der. Até onde minha força permitir. Até a justiça — ou até morrer tentando.
O repórter congelou, perdeu o olhar, perdeu a fala. Depois, simplesmente abaixou o microfone… e me abraçou.
E foi no toque inesperado daquele abraço que a minha resistência caiu.
Meu corpo cedeu.
Minhas pernas falharam.
Meus olhos arderam.
Eu chorei.
Chorei até o peito doer.
Chorei de raiva, de impotência, de ódio, de desespero, de amor pelo meu irmão.
Chorei até faltar ar.
Chorei até não ter mais lágrima.
E quando finalmente parou…
não sobrou alívio.
Sobraram os estilhaços.
Sobrou a revolta.
A revolta bruta, intensa, quente.
A revolta que transforma dor em promessa.
A revolta que muda um homem por dentro.
Enquanto eu ficava ali, imóvel, com o rosto inchado e o peito latejando, uma certeza crescia dentro de mim como lâmina sendo forjada:
Nada seria como antes.
Nem eu.
Nem a favela.
Nem o mundo.
As ruas pareciam diferentes.
O ar parecia mais pesado.
Até o silêncio parecia ter ganhado peso.
E quanto mais eu olhava, mais eu entendia: ninguém ali ia esquecer aquela noite. Cada vela acesa, cada olhar perdido, cada mãe abraçada ao chão dizia que algo tinha mudado para sempre.
Eu respirava com dificuldade, como se o mundo tivesse ficado estreito demais pra caber tanto sentimento.
E mesmo assim, no meio de tudo, uma certeza se firmava dentro de mim como ferro quente:
Eu não ia aceitar que a morte do meu irmão fosse tratada como dano colateral.
O nome dele ia ecoar.
A história dele ia pesar.
A injustiça ia cobrar seu preço.
E ali, naquele instante marcado por dor, sirene e silêncio, eu percebi:
Não fui eu que escolhi a revolta.
A revolta me escolheu.
E conforme a madrugada avançava, a favela parecia inteira suspensa no ar, como se ninguém ali conseguisse respirar direito. As luzes do caveirão refletiam nos barracos e criavam sombras tortas nas paredes, sombras que tremiam como se fossem gente. O cheiro de fumaça, suor e medo grudava na garganta, pesado, sufocante, impossível de ignorar. Parecia que até o vento tinha parado de passar pela nossa rua.
A cada passo que eu dava, mais eu percebia o estado das pessoas. Tinha mãe que já não chorava; só encarava o nada, como se tivesse perdido a capacidade de sentir. Tinha pai segurando o corpo do filho como se segurasse o próprio coração despencando. Tinha criança agarrada na barra do vestido da avó, sem entender, mas sentindo o terror no ar. E isso, isso doía tanto quanto a morte do meu irmão — ver que nenhum de nós escapou ileso daquela noite.
Eu observava tudo e sentia meu peito doer mais. Porque eu sabia que amanhã ia ter câmera na nossa cara, comentarista dizendo que foi “operação necessária”, gente de fora julgando o que não vive, apontando dedo de sofá, repetindo discurso de ódio como se a realidade daqui coubesse em manchete de jornal. Já conseguia até ouvir: “eram todos envolvidos”. “Resultado positivo”. “Redução da criminalidade”. Como se estatística abraçasse alguém. Como se número devolvesse filho pro colo de uma mãe.
E ali, entre sirenes e silêncio, percebi que a favela toda esperava algo. Não de político, não de polícia, não do Estado. Esperava de si mesma. Como se todo mundo estivesse preso no mesmo momento, esperando quem seria o primeiro a levantar a cabeça depois da queda.
O peso disso veio pra cima de mim com força.
Talvez porque eu era irmão do Thauan.
Talvez porque eu fui o único que falou com o repórter.
Talvez porque dor e ódio, combinados, fazem qualquer um crescer antes da hora.
E pela primeira vez naquela noite, eu entendi:
não era só a morte do meu irmão.
Era a quebra de uma comunidade inteira.
E alguém ia ter que levantar essa bandeira.
Alguém ia ter que ser o nome, a voz e a fúria de quem não tinha mais nada.
Eu senti, no fundo do peito, que esse alguém seria eu.