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1638 Palavras
Navÿlla: Oi amor, como você está? — ontem foi o dia em que um punhado de terra deu fim a 17 anos de alegria e sonhos. Porque meu irmão sonhava alto, menor queria ser de tudo um pouco, mas foi vítima do sistema. Um sistema corrupto, calculista, frio e psicopata, que decide quem vive e quem não vive baseado no CEP. Thayan: Como tu acha que eu tô, Navÿlla? — tentei não ser grosso, mas nessas horas, com essas perguntas, o bagulho sai da boca antes da gente sentir. Navÿlla: Não precisa falar assim, cruzes… Thayan: Foi m*l. — puxo minha mulher pela cintura e beijo o pescoço dela, buscando um pouco de paz onde só tem tempestade. Ela coloca a mão no meu peito, como sempre faz quando tenta me acalmar. Navÿlla: Tia Ana, cadê? — olha em volta, procurando minha mãe. Thayan: Foi na casa da dona Penha. Ela perdeu o neto. Navÿlla: O Sandrinho?! — assenti — Meu pai… Thayan: Pois é. E pra quê isso tudo, Navÿlla? Pra quê essa chacina? O crime não acabou e nem vai acabar. Tá aí na televisão uma prova. — me referi ao tiroteio que estava passando na TV, outro bairro, outro morro, a mesma história de sempre. Navÿlla: Também não entendo… e acho que não tem explicação plausível. Porém, esse teu ódio não vai te levar a lugar nenhum. Tá aí o Thauan como exemplo. Meu maxilar trava. O nome dele agora pesa diferente. Thayan: Se não tiver ao meu favor, tá contra mim. E pra quem tá contra mim, é só bala. — ela me abraça, mas meu corpo tá duro, frio, sem reação. Ela me solta devagar, olha fundo nos meus olhos e n**a com a cabeça. Navÿlla: É isso mesmo que você quer, Thayan? Você quer entrar pro crime? Virar mais uma estatística? Thayan: Eu não queria… de verdade. Nunca quis isso pra minha vida. Nunca foi meu sonho, nunca foi meu destino. Até o dia em que mataram meu irmão a sangue frio, sem dar a chance dele se defender ou de levarem ele preso. Depois desse dia, tudo mudou. E agora? Agora eu não tenho escolha. O sistema me obrigou a ser mais uma estatística. Navÿlla: Eu não vou te apoiar nessa vida, nunca. Thayan: Quer dizer o que com isso? Navÿlla: Que eu não vou te apoiar. Vou ficar contigo porque te amo, agora te apoiar e achar lindo? Jamais. Thayan: Mas não é pra tu achar lindo, não, Navÿlla. Nada disso é bonito, nada disso é sonho. Isso é consequência. Consequência do ódio, da covardia, da desigualdade, desse Estado falido. Eu sou só mais uma vítima que, por causa da sociedade, se revoltou e tá entrando pro crime. Navÿlla: Isso não é futuro pra ninguém. Você tem planos, tem sonhos… como pode jogar tudo isso pro alto? Thayan: Meu irmão também tinha, p***a. E isso importou? Importou nada. Mataram ele! Tiraram a chance dele crescer, evoluir, se tornar algo maior. Pra quê, Navÿlla? Pra conseguir voto desses animais que comemoram 128 corpos estendidos em praça pública? Eu vi minha mãe desmaiar três vezes no enterro do caçula dela… três. E tu vem dizer que eu tenho que respirar fundo e seguir a vida normal? Qual foi, Navÿlla? Eu tô com ódio, tô com raiva. E isso só vai diminuir quando eu me vingar dos filhos da p**a que mataram meu irmão. Navÿlla: Amor… Thayan: Não, Navÿlla. Sem essa de amor agora. Eles mudaram o meu caminho. A culpa de eu entrar pro tráfico é exclusivamente deles. Do sistema. Da polícia. Desse governo sujo. Navÿlla suspira fundo e passa a mão no rosto, cansada, triste, frustrada. Navÿlla: Tá bom, Thayan… ok. Você que sabe. E sua mãe? Ela já sabe disso? Thayan: Não. E nem vai saber. Minha mãe já tem dores demais. Preocupações demais. Ela não merece ter que lidar com isso também. Navÿlla: Quando? Thayan: Quando o quê? Navÿlla: Quando tu vai lá falar com o chefe sobre essa tua decisão estúpida? Thayan: Não sei. Com essa mega operação, acho que o chefe nem tá pelo morro. — passo a mão no rosto, cansado, exausto, consumido. Navÿlla: Pois é, né? Ele some sei lá pra onde e deixa os outros pra morrer por ele. Thayan: Meu irmão não morreu pelo mano, Navÿlla. Meu irmão morreu pelo sistema. A culpa não é do chefe. A culpa é do governador. Da polícia. O mano não fez nada disso. Navÿlla: Tá bom, Thayan. Falar contigo agora não adianta. Você tá com raiva e eu entendo perfeitamente. Mas pensa bem… pensa em nós, pensa na tia Ana. Thayan: Eu já pensei. Pensei tanto que tomei essa decisão. Breve, breve, não serei mais o Thayan. Vou ser o Revoltado da Penha. Mais uma vítima da desigualdade. Da sociedade. Do sistema. Navÿlla: Tá bom… você que sabe. Eu tô aqui pro que precisar. Mas vou ter que ir embora, tenho um trabalho na pista. Coisa rápida, só um provador. Thayan: Hum… sei. Se liga, hein, Navÿlla. Navÿlla: Começa não. — ela me beija, e eu retribuo segurando sua cintura. To ligado legal que esse é o trabalho dela. Minha mulher é digital influencer, tem mais de duzentos mil seguidores no i********: e ainda mais nas outras redes. Ela posta look, maquiagem, conteúdo, e o povo ama. Mesmo assim… eu tenho ciúmes pra c*****o. Fui o primeiro dela e, se depender de mim, o único. Não que eu ache que ela trairia — Navÿlla é leal, tem caráter, tem limite, tem postura. Mas a insegurança mora no meu peito. Medo dela conhecer alguém com mais estudo, mais condição, mais oportunidade. Alguém que pudesse dar a ela uma vida longe daqui. Ela sabe. Sabe tanto que, às vezes, até me chama pra ir junto nos jobs. E, mesmo querendo ir, eu n**o, só pra mostrar que confio nela. Posso ser todo errado, cheio de ódio, com o peito tomado pela revolta… mas perto dela eu viro outro cara. Viro moleque. Viro o****o apaixonado. Viro um homem que só pensa em proteger quem ama. Navÿlla é a mulher da minha vida. A mulher que quero envelhecer junto. Sem ela, nem sei quem eu seria. Thayan: Quando tu voltar… vai vir direto pra cá ou vai pra casa? — pergunto ainda abraçado nela. Navÿlla: Quer que eu venha? Thayan: Se tu quiser, eu quero. E é bom pra minha mãe também… essa casa tá vazia desde que meu irmão se foi. Navÿlla: Tá bom. Eu venho. Vai querer algo da rua? Um lanche, talvez? Thayan: Tem miojo aí. Navÿlla: Se depender de tu, tu só come miojo né? Misericórdia. Thayan: Não. Se depender de mim, eu só como você. — aperto a cintura dela, e ela fica molinha. Navÿlla: Começa não. Eu tenho que trabalhar. — dou outro aperto, e ela ri. Thayan: Tem certeza? — puxo a nuca dela, beijo o pescoço, sinto ela arrepiar. Navÿlla: Sai pra lá, Satanás! Fui! — ela me empurra e sai correndo pela porta, rindo alto. E eu gargalho, porque essa mina… essa mina é f**a. Depois que ela saiu, a casa voltou a ficar silenciosa. Aquele silêncio que não é só falta de barulho… é falta de vida mesmo. Até o vento entrando pela janela da cozinha parecia triste, arrastando poeira e lembranças pelo chão. Olhei em volta e percebi como tudo ali lembrava meu irmão. O chinelo dele ainda encostado na porta. A camisa jogada no sofá. O caderno da escola aberto na mesa, com a letra torta dele — parecia que ele ia voltar a qualquer momento pra terminar o dever. Passei a mão nas páginas, devagar, como se tocar aquilo fosse tocar ele. E doeu. Doeu tanto que tive que fechar os olhos. Minha mãe fala que cada filho deixa um tipo de silêncio quando vai embora. O do Thauan deixou um buraco. Um buraco enorme, fundo, que parece que engoliu tudo que a gente era. Sentei no sofá e fiquei encarando a porta da sala. Era por ali que ele entrava todo dia, rindo de qualquer bobagem, chutando o chinelo, chamando a mãe pra fazer arroz com batata — o prato preferido dele. Agora… nada. E quanto mais eu olhava a casa, mais minha raiva crescia. Porque tudo ali gritava que ele tinha planos, que tinha futuro, que tinha vontade de viver. E tiraram isso dele como se não fosse nada. Como se a vida dele valesse menos que o barulho de um tiro. Encostei a cabeça no encosto do sofá e respirei fundo, mas o ar entrou pesado, como se o mundo tivesse ficado apertado demais. Minha visão passou pela foto da nossa família no móvel da sala — eu, ele e minha mãe — e senti a garganta arder. Eu sempre fui o irmão mais quieto. Ele era o barulho. E agora, sem ele… eu não sei quem eu sou. Talvez seja isso que mais dói: ele tinha tempo de mudar. Eu não tenho mais. Passei as mãos no rosto, tentando segurar o que estava vindo, mas não deu. Eu chorei de novo — baixo, silencioso, como se não quisesse que ninguém escutasse. Mas era impossível esconder. A dor do luto é assim: entra sem pedir licença, fica, e ainda te cobra aluguel. Me levantei e caminhei até o quarto dele. Abri a porta devagar, mesmo sabendo que não tinha ninguém lá. O cheiro dele ainda estava no ar — mistura de desodorante barato com perfume emprestado meu. Sentei na cama dele, apertei o travesseiro contra o peito e jurei, de novo, pela milésima vez desde que tudo aconteceu, que o nome do meu irmão não ia ser esquecido. Não ia virar só estatística. Não ia virar número na boca de político. Eu ia fazer eles lembrarem. Nem que fosse do jeito mais doloroso possível.
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