003

1441 Palavras
Uma semana depois… Hoje tirei o dia pra resolver umas paradas. Fui na direção do mano ontem à noite e, só de olhar o ódio estampado na minha cara, o amigo já tacou logo no meu porte: uma Glock com pentão de 30. Passei na associação da comunidade com a cintura ignorante. O plantão é daqui a pouco, mas eu precisava resolver umas pendências da minha coroa. Papo de psicólogo, psiquiatra… tá ligado? Faz uma semana que a velha não dorme, não come, não vive. Minha mãe perdeu o brilho dela. Fica na janela esperando o Thauan entrar, mesmo sabendo que meu irmão não volta mais. — Boa noite, dona Cida, tudo bem? — pergunto. Ela olha pra mim, depois pra minha cintura, e só balança a cabeça. — Eu tô bem, meu filho, graças a Deus. E você? Sua mãe? — É sobre ela que eu vim falar, dona Cida. Aqui não tem aquele bagulho de saúde mental? — ignoro a pergunta sobre mim. — Temos sim, um projeto de ajuda psiquiátrica. Mas tem fila. Quer colocar sua mãe? — Sim, senhora. — E você, meu filho? — ela olha de novo pro meu porte. — Eu tô bem, tia. Melhor impossível. Depois converso melhor com a senhora sobre isso. — olho o relógio. — Agora tenho que trabalhar. — Não vou te criticar. Só você conhece suas dores e seus limites. Mas… você acha que está fazendo o certo? — A senhora acha que eles fizeram o certo? m***r meu irmão na covardia? — Meu filho… — Não, dona Cida. Eles escolheram m***r meu irmão, e eu escolhi m***r quem fez isso. Nem esperei resposta. Saí rumo à rua 2, onde ia cobrir o plantão do menor que ficou de ontem pra hoje. — Que isso, Revoltado? Mó cota te esperando, primeiro dia no plantão e tu já se atrasa. Tá de mancada? — Que atrasado o quê, pô? Mancada tão os vacilão. Se liga na tua responsa… bora, me passa o radinho e vaza. Ele me entregou o radinho e saiu. Fiquei olhando pra montoeira de botão, tentando descobrir como funcionava aquela p***a. Apertei um, nada. Apertei outro, nada. Apertei o do meio e fez um barulho estranho. — Dois na calma e linda. E aí, da 2, passa a visão. — Revoltado na voz, tá 2 por aqui! — É isso, menor. Tudo monitorado. Pra chegar no mano é bala — muita bala. Na rlk dos menor do ódio. Saudades eternas DiGuerra, Cabeludo, Semente, Pará, Bahia e os demais. Nunca serão esquecidos! Meus olhos encheram de lágrimas quando ouvi o vulgo do meu irmão: DiGuerra. Menor era novo, mas já carregava no nome o peso do tiroteio. Papo reto: eu sei que meu irmão não era flor que se cheire — nunca disse que era. Mas se chegaram perto o suficiente pra esfaquear, então tiveram oportunidade de prender o menor. E é isso que eu não aceito. A perícia confirmou que ele levou as facadas antes do tiro. Meu irmão se afogou no próprio sangue enquanto aqueles filhos da p**a olhavam. E quando viram que ia demorar, meteram um tiro de fuzil na lateral da cabeça, desfigurando ele. Confirmaram também que as facadas foram nas costas, na altura do pulmão — todas de trás pra frente. Foram quatro. Depois de torturarem ele. Porque meu irmão tinha marcas de tortura e de corda nos braços. Amarraram ele igual porco. Torturaram igual na ditadura. Esfaquearam. E, no fim, deram tiro à queima-roupa. Depois disso, largaram ele lá como se fosse bicho. Meu irmão foi encontrado com outros dois — talvez torturados do mesmo jeito, talvez até pior. Ninguém sabe. E na minha mente só roda: o quanto meu irmão sofreu. O quanto implorou pra não morrer. O quanto doeu cada facada. O desespero dele tentando respirar enquanto o sangue invadia o pulmão. Fechei o plantão das nove da manhã às nove da noite. E assim que saí, fui direto ver minha mina. Bati no portão. A dona Marta apareceu — velha insuportável. Nunca apoiou nós dois. Disse que eu faria a filha dela sofrer, que só queria usar ela. Três anos depois… olha nós aí. — Minha filha não está. Foi trabalhar — coisa que você talvez nem saiba o que é. — Dona Marta, com todo respeito… vai tomar no cu. Ela arregalou os olhos. — Nunca fiz nada pra senhora. Sempre tratei sua filha igual princesa. E a senhora insiste nessa implicância. Qual foi? Te fiz algo? — O problema não é você. O problema é o que você é pra minha filha. Navÿlla é bonita, de bom caráter, estudada. Não aceito que ela prefira ficar aqui por causa de um… garoto igual a você. — Tá insinuando o quê? Que dinheiro vale mais que um amor sincero? Puro? Verdadeiro? Me admira ouvir isso da senhora. — passo a mão no rosto. — Melhor o quê? Um cara que sustenta vocês, mas em troca ela tem que aturar p*****a, traição e humilhação? É isso que quer pra sua filha? — Eu nunca disse isso… — E nem precisava. Tá na sua cara que prefere um riquinho metido a b***a do que um garoto humilde que ama tua filha e faz de tudo por ela. — Se é isso que você acha, sinto muito. Mas não vou discutir. Quando a Navÿlla chegar, aviso pra ela ir na sua casa. Boa noite. A dona Marta virou as costas sem esperar resposta, bufando igual sempre fazia, e entrou batendo o portão com força. Fiquei parado ali por dois segundos, só olhando o metal tremer, sentindo o sangue ferver de novo. Respirei fundo e desci a rua devagar, chutando umas pedrinhas no caminho, tentando limpar a cabeça — mas quanto mais eu andava, mais a lembrança do Thauan batia forte, como se alguém tivesse colocado uma fita pra rodar dentro da minha mente. A primeira imagem que me veio foi b***a. O Thauan com onze, doze anos… chutando uma bola furada no campinho atrás da laje do Jefão. O menor era todo estabanado, mas corria como se o mundo dependesse daquela bola de meia. Lembro do dia que ele levou um carrinho do Igor, caiu, ralou o braço inteiro, e mesmo assim levantou sorrindo, falando: — Fica suave, p***a! Guerreiro não chora! Ri na época. Hoje essa frase me corta. Passei perto da laje e parecia até que eu via ele ali de novo, pequeno, com o sorriso torto, suado, chuteira descolando na ponta — aquele sorriso que os filha da p**a tiraram da gente. Engoli seco. Continuei andando. O vento passou batendo no meu rosto, mas não refrescava nada; era só lembrança atrás de lembrança me pegando por trás. Lembrei também de um dos últimos rolês que a gente deu junto. Aquele dia que ele apareceu com uma camisa nova, falsificada mas era o orgulho do menor, e ficou se olhando no retrovisor da moto do mano César dizendo: — Fala tu, tô bonito? Hoje eu dou trabalho pras novinha! Eu lembro que dei um t**a na nuca dele e falei: — Menor, tu é f**o pra c*****o. Trabalhar só se for de palhaço.” Ele fingiu ficar bolado, mas riu. O riso dele sempre foi fácil. Hoje ecoa na minha cabeça igual martelada. As ruas que eu passava pareciam as mesmas de sempre, mas agora tudo tinha outro peso. Os becos estavam iguais, as casas iguais, os cachorros magros latindo igual — mas pra mim parecia tudo mais apagado, sem cor, sem vida. Cheguei perto da esquina onde a gente fazia rima de noite às vezes, quando não tinha nada pra fazer. O Thauan sempre pedia pra eu bater palma pra ele improvisar, mesmo sendo r**m de doer. Eu fingia que tava achando incrível, só pra ver ele vibrando. Thauan: Cê viu, Thayan? Cê viu? Tá ficando fino, pai! O menor tinha esse brilho… Esse brilho que a vida inteira tentaram apagar… E que no final, apagaram de uma vez só. Parei na calçada. Encostei a mão na cintura, sentindo o peso da Glock. Olhei pra rua, pro poste piscando, pro céu nublado. E tudo dentro de mim virou ódio outra vez. Porque lembrar do Thauan sorrindo só fazia doer mais o jeito que ele morreu — amarrado, torturado, lufo, sem chance nenhuma. Lembrar do Thauan vivo só aumentava a certeza do que eu ia fazer agora que ele tava morto. Engoli a raiva igual veneno. Ajustei o boné. Respirei fundo uma última vez. E segui caminhando pela comunidade, com o nome dele latejando na minha mente igual tiro ecoando no beco: DiGuerra. Meu irmão. Meu sangue. Minha vingança.
Leitura gratuita para novos usuários
Digitalize para baixar o aplicativo
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Escritor
  • chap_listÍndice
  • likeADICIONAR