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1626 Palavras
Cheguei em casa morto, minha mãe estava no sofá. Passei direto pro quarto, entoquei a pistola e voltei pra sala, vendo a coroa agarrada com a blusa do Thauan. — Mãe… a senhora já comeu? — Não sinto fome. — A senhora precisa comer, mãe. Meu irmão não está feliz vendo a senhora assim. — Me deixa em paz, Thayan. Ia responder ela, mas escutei a Navÿlla chamar no portão. Saí pra atender a mesma, que me abraçou apertado e deu um beijo no meu pescoço. — Já não sei mais o que faço com a minha mãe — falei, olhando lá pra dentro. Ela seguiu meu olhar e viu a coroa sentada no sofá. — Posso tentar? Digo… falar com ela. — Pode, mas acho que não vai adiantar. Ela não disse nada, só entrou, sentou com a minha mãe enquanto eu fiquei na porta marcando. Uns vinte minutos depois, a coroa saiu acompanhada da minha mulher. — Tia Ana aceitou comer alguma coisa, mas como não tinha nada além de miojo, me ofereci pra levar ela até a pensão. Quer ir conosco? Assenti. Levantei do chão, elas saíram e eu fui atrás, fechando a porta. Caminhamos pela rua até passar diante de uma igreja, e minha mãe quis entrar. Assistimos o culto e parece que ela saiu de lá mais tranquila. Depois fomos direto pra pensão. Navÿlla quis pagar as paradas — eu também não tinha recebido ainda, então aceitei. Aqui sempre fomos assim: um pelo outro, um para o outro. Quando eu tenho e ela não, eu pago. Quando ela tem e eu não, ela paga. Relacionamento é parceria, nunca foi diferente. — Navÿlla sempre foi uma boa menina, meu filho. Você é um homem de sorte — minha mãe disse. — Viu? Até ela sabe que eu sou maravilhosa. E naquele momento, depois de uma semana vendo minha mãe sofrer, ela sorriu. Aliás… gargalhou alto. Olhei pra Navÿlla agradecendo só no olhar. “De nada”, ela sussurrou. Marcamos dali: Navÿlla no suco detox, minha mãe no suco de maracujá e eu na torre de Brahma geladona que minha mulher fez questão de pagar. Relembramos histórias antigas, minha mãe contando minhas vergonhas pra minha mulher, até que os amigos da facção entraram. O chefe passou por mim, acenando com a cabeça. Fiz o mesmo. Minha mãe não percebeu, mas a Navÿlla sim — e só negou com a cabeça. Tô ligado legal que ela nunca vai me aceitar nessa vida, mas também sei que ela jamais vai me abandonar. É por isso que eu amo ela pra c*****o. Perder meu irmão e depois minha mulher seria uma dor do c*****o. Acho que eu faria m***a. Depois da minha mãe e do meu falecido irmão, ela é a terceira pessoa que mais amo e por quem eu daria a vida. O chefe fez um sinal com a cabeça indicando que queria falar comigo. Navÿlla segurou minha mão tentando me impedir, mas eu soltei gentilmente, beijei a cabeça da minha mãe e fui pro lado de fora. Depois de uns cinco minutos, ele saiu também junto com os cria. — E aí, moleque bom — Tota falou, estendendo a mão. Apertei. — Não quero tomar muito do teu tempo não porque vi que você tá em família. Vim saber se tá precisando de alguma coisa. Cocei a nuca. — Vou mentir não… minha mãe tá de luto, sem trabalhar. Tipo que como… — olhei pro chão, morrendo de vergonha. — Fica com vergonha não. Fala o que você precisa. Se tiver ao meu alcance, eu ajudo. — Quem botava as paradas lá em casa era meu irmão, o DiGuerra. A minha mãe e eu quebrava uns galhos com bico. Só que com a morte dele… tá faltando coisa lá. E pra não te dizer que não temos nada, só sobraram uns seis miojo… sete talvez. Ele puxou um bolo de notas. — Trezentos dá pra tu fazer uma compra maneira? Assenti. — Toma. E fica tranquilo que não vai sair do teu pg. Falando em pg… amanhã teu plantão é noturno, certo? — Claro, paizão. Sete horas? — Isso aí. — Preciso de mais um favor… se não for a***o. Ele assentiu. — Minha mãe ficou uma semana sem sair de casa. Hoje só saiu por causa da minha mulher. Eu não sei como vai ser quando a gente voltar. Ela sente muita falta do meu irmão… todos nós sentimos. Queria saber se tem como o senhor me dar uma força na associação. Ouvi dizer que eles têm projeto de saúde mental, mas o bagulho tem fila. Tenho medo da minha mãe fazer m***a… Tota respirou fundo. — Sinto muito pela tua perda. Sei como isso mexe. Hoje não tem como porque já fechou, mas amanhã eu passo lá e falo com a dona Cida. Depois te aviso. Aí é só tu ir lá confirmar. — Obrigado, chefe. De verdade. — Que nada. Mas já que tá agradecido… me agradece metendo bala nos cana se eles tentar invadir. — Pá ora, patrão! Muita bala nesses vermes. Minha meta é essa: m***r polícia. Ele riu. — Quero ver na prática. Falar até papagaio fala. — Pode deixar. Pra eles é sem bala contada. — Agora deixa eu ir. Minha mulher tá me tonteando. Tu sabe como é, né? — Sei bem… Ele bateu a mão no meu ombro, chamou os cria e saiu. Olhei pro dinheiro na minha mão. Trezentos reais. Pra uns isso é nada. Pra mim, que tô sem p***a nenhuma em casa, é felicidade. Vou poder comprar umas paradas… E até o pg cair, isso aqui vai segurar nós. Olhei pro dinheiro mais uma vez antes de guardar no bolso. A rua tava daquele jeito de sempre: luz falhando no poste, três motos passando devagar, uns moleque chutando garrafa plástica como se fosse bola. Tudo normal… mas nada mais parecia normal pra mim. Voltei pra dentro da pensão e vi minha mãe rindo baixinho de alguma bobagem que a Navÿlla tinha falado. Aquela cena me acertou mais que tiro de fuzil. Minha mãe… sorrindo. Um sorriso fraco, miudinho, mas sorrindo. Depois de tudo que ela viveu naquela semana, aquilo era quase milagre. Sentei de volta na mesa, puxei a cadeira e fui olhando as duas conversarem. — Tu precisava ver como ele era levado — minha mãe dizia. — Aprontava uma, aprontava dez. Quando eu via, já estava pulando o muro pra ir jogar bola. — A cara do Thayan — Navÿlla respondeu rindo. — Pô, também não exagera — falei, fingindo indignação, o que fez as duas rirem ainda mais. Por alguns minutos, eu senti como se o mundo tivesse pausado. Como se o luto tivesse parado de esmagar o peito da minha mãe. Como se o barulho do morro, da polícia, do crime, de tudo… tivesse virado chiado longe. Era só nós três ali. Parecia até família normal. Mas eu sabia que aquilo era só um respiro. E, no fundo, minha mãe também sabia. A tristeza não some. Só descansa. Depois que terminamos, nos levantamos pra ir embora. A rua já tava mais escura, aquele vento de noite correndo entre as vielas, trazendo cheiro de comida, maconha e gasolina. Normal. Minha mãe andava devagar, apoiando a mão no meu braço. Navÿlla seguia do outro lado, conversando com ela. E eu ficava no meio, observando cada canto, cada esquina, cada sombra. Não era paranoia — era sobrevivência. Depois que você perde alguém assim, nada te parece seguro. — Filho… — minha mãe quebrou o silêncio. — Hoje foi bom. Obrigada por me tirar de casa. — Quem tirou foi a Navÿlla, mãe — falei. — Os dois, então — ela sorriu fraco. Chegamos em casa e abri a porta devagar. O ar ali dentro parecia mais pesado do que quando saímos. A blusa do Thauan ainda tava no sofá, caída num canto. Minha mãe ficou parada olhando pra ela. O sorriso que ela tinha dado lá atrás foi sumindo devagar… como quem lembra que a vida não perdoa. — Mãe, quer que eu guarde? — perguntei. Ela respirou fundo. — Não. Deixa aí… por enquanto. Eu sabia o que significava. Aquela blusa era a última coisa que restava do cheiro dele. E minha mãe não tava pronta pra perder isso também. Navÿlla segurou a mão dela. — Tia Ana… se precisar de qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, é só me chamar. Eu venho na hora. A senhora não tá sozinha. Minha mãe apertou a mão dela de volta, emocionada. — Obrigada, minha filha. Você é um anjo na vida do meu menino. Navÿlla sorriu, sem graça. E eu senti o peito esquentar. Numa vida tão quebrada, tão fodida, tão cheia de sangue… ter alguém como ela ali era tipo luz em noite de apagão. Depois que minha mãe foi pro quarto, Navÿlla virou pra mim. — Você vai ficar bem hoje? — Não sei… — respondi sincero, encostando na parede. Ela chegou perto, colocou a mão no meu rosto e me olhou daquele jeito que só ela sabe. — Então eu fico com você. E ficou. Sentou no meu colo no sofá, encostou a cabeça no meu ombro e ficou mexendo nos meus dedos como se quisesse organizar o caos que tava dentro de mim. — Sabe o que eu mais tenho medo? — falei baixo. — Do quê? — De perder você também. Ela levantou a cabeça, me olhou fundo e passou a mão no meu peito. — Você só me perde se quiser. Fora isso… tô contigo até o fim. Eu fechei os olhos, respirei, e por alguns segundos o mundo parou de girar torto. Mas a verdade é que o fim… no morro… sempre chega rápido demais.
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