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Sampaio narrando
O som da cidade começa a se fazer presente enquanto acendo um baseado, me acomodando na sacada do quarto. O aroma da erva se mistura com o frescor da manhã, e a fumaça se dissipa lentamente, como se levasse com ela um pouco do peso que carrego. A visão da cidade lá embaixo me faz pensar na viagem que estou prestes a fazer. É engraçado como estar ao ar livre pode me fazer sentir tão livre e, ao mesmo tempo, tão preso nas minhas próprias lembranças. O contraste entre a liberdade da sacada e a claustrofobia das minhas memórias é insuportável.
De repente, a porta do quarto se abre e um suave cheiro de nenê invade o espaço. Meu coração acelera, e num reflexo rápido, jogo o baseado longe. Mas, ao me virar, vejo que não há ninguém ali. Era apenas o fantasma da lembrança dela, se fazendo presente mais uma vez, como uma sombra que insiste em não me deixar em paz.
Flashback On
— Papai — a voz dela, tão suave e inocente, ainda ressoa como música nos meus ouvidos. Ela se aproxima e sinto seus braços pequenos ao redor do meu pescoço, o abraço mais sincero que já recebi.
— Oi, minha pequena — respondo, tentando esconder a dor que se acumula dentro de mim.
— Eu não quero que você vá viajar, papai — Bárbara diz, e as lágrimas que começam a brotar nos seus olhos são como facadas no meu peito. Cada palavra dela aumenta o peso da culpa que já carrego.
— Vai ser rápido, minha filha. Em menos de cinco dias tô de volta — digo, tentando soar confiante, mas minha mão trêmula que acaricia seu rosto me trai. Sei que não posso garantir nada, mas preciso que ela acredite.
— Você me traz presentes? — ela pergunta, os olhos brilhando com uma esperança tão pura que me faz querer chorar.
— Trago sim, um monte — respondo, forçando um sorriso. Ela sorri de volta, e por um breve momento, o mundo parece um pouco menos c***l. Mas então, a realidade volta com força total, e a dor de saber que esse sorriso foi roubado de mim quase me destrói.
Flashback Off
Vou até o banheiro e lavo o rosto, como se a água pudesse apagar as memórias que me atormentam. Cada lembrança dela é um lembrete doloroso do que perdi, do que não consegui proteger. Olho para o espelho e vejo um homem quebrado, um homem que daria tudo para ter de volta o que foi arrancado dele. A culpa que carrego é um peso constante, uma sombra que nunca me deixa.
De repente, ouço minha mãe me chamar.
— Filho — a voz dela é suave, mas carrega uma preocupação que me faz sentir um pouco mais humano.
— Bom dia, Dona Kayane — digo, forçando um sorriso, tentando esconder a dor que me corrói por dentro.
— Já vai viajar? — ela pergunta, os olhos dela cheios de preocupação. Ela sabe o que estou prestes a fazer, mas não diz nada.
— Mais tarde. Mas vou direto da boca, não volto pra casa — respondo, tentando manter a voz firme.
— Se cuida — ela diz, me abraçando com força. Sinto o calor dela, a força que sempre admirei. Ela é a minha âncora no meio dessa tempestade. — Me avisa quando sair e quando chegar lá.
— Pode deixar, vou avisar sim — digo, beijando sua testa. Esse gesto de carinho é um consolo fugaz, mas é tudo o que tenho. — Você também se cuida.
— Pode deixar — ela responde com um sorriso que tenta disfarçar a preocupação.
Minha mãe é uma guerreira, e por mais que eu seja um bandido, os valores que ela me ensinou são o que ainda me mantém com algum semblante de humanidade. Ela é a razão pela qual eu ainda não me perdi completamente.
Saio de casa e vou para a boca. Lá, encontro meu tio, Joca, sentado ao lado de Heitor, o gerente responsável, com um caderno enorme aberto. A visão deles, mergulhados em contas e negócios, só aumenta a sensação de que nada é simples nesse mundo.
— E aí — digo, tentando soar mais confiante do que realmente me sinto.
— Já tá indo? — Joca pergunta, me olhando com um misto de preocupação e curiosidade.
— Daqui a pouco — respondo, tentando esconder o turbilhão de emoções que estou sentindo.
— Tu tem certeza do que vai fazer? — Heitor pergunta, a gravidade da situação refletida no tom da sua voz.
— Absoluta. Quero achar aquele sujeito que matou minha filha e acabar com ele — digo, a determinação na minha voz é um reflexo da dor que me consome.
— Deveria falar com a Alana — Joca sugere, o tom de sua voz carregado de preocupação.
— Alana não quer nem me ver, e eu entendo. Tenho culpa pelo que aconteceu — digo, a dor na minha voz é impossível de esconder. A culpa me corrói por dentro, e cada palavra sobre Alana é um lembrete do que perdi.
Eles se entreolham, e eu respiro fundo, acendendo outro baseado. A pressão dentro de mim é quase insuportável, e preciso de alguma forma de escape.
— Precisamos falar sobre o João Pedro — Heitor diz, trazendo à tona mais um problema.
— Aquele João Pedro? — pergunto, já sentindo a paciência se esgotando.
— Ele tá devendo uma grana — Heitor responde, o tom de sua voz deixando claro que a situação é séria.
— Resolve logo isso, eu já falei, passa a visão nesse moleque — digo, tentando manter a calma, mas a frustração começa a tomar conta.
— Ele é importante, a família dele é importante, tu sabe disso — Joca tenta argumentar, preocupado com as possíveis consequências.
— Esse moleque é um folgado, já mandei resolver com ele — respondo, a raiva e a determinação claras em cada palavra. — Então não me faça ouvir o nome dele de novo.
— Cabeça dura, p***a — Joca resmunga, a frustração evidente.
— Já falei, deve grana, é problema, resolve — insisto, sentindo que preciso resolver isso antes que me consuma. — Agora preciso ir, quero encontrar notícias daquele outro problema, o Kaique.
Joca e Heitor continuam me olhando, mas não dizem mais nada. Eles sabem que quando tomo uma decisão, não volto atrás. Preciso encontrar Kaique e acabar com essa história, antes que ela me acabe.
Saio da boca com a mente em turbilhão. Cada passo que dou me leva mais fundo na escuridão que é a minha vida agora. A cidade ao meu redor parece indiferente, alheia ao caos que se desenrola dentro de mim. A imagem de Bárbara não sai da minha cabeça, e a cada segundo, a necessidade de vingança só cresce.