📖 Capítulo 6 – Fogo em linha

1275 Palavras
📖 Capítulo 6 – Fogo em Linha Narrado por Olivia O bar estava com aquele calor de fim de tarde: gente para todo lado, cadeiras encostadas umas nas outras, risadas altas, pagode batendo num radinho no canto que se recusava a respirar. Parecia que, por um momento, tudo estava num lugar seguro, onde minha respiração se misturava ao som das conversas e esquecia por alguns instantes o que levou eu até ali. Eu me sentia... pertencendo. Era estranho e bom. Kael ficava ali perto, de vez em quando olhando na minha direção. Não era um olhar de dono — era um olhar de guarda — e me incomodava e confortava ao mesmo tempo. Júlia estava rindo demais com NK, braços soltos no ar, rindo alto como se dissesse “a vida segue”. Zoio fazia suas palhaçadas, pousando-se como se fosse o rei do pedaço. Eu até ri, de leve, mais por educação que por vontade. As coisas pareciam normais. Até que o normal se fatiou. Foi rápido. Primeiro, um homem gritou lá na esquina com voz cortante: — ATENÇÃO! INVASÃO! Aquelas palavras caíram como pedra. Nem deu tempo de entender. O primeiro tiro soou seco e próximo, e depois outro, e o bar virou um estilhaço de movimento. Cadeiras foram empurradas, garrafas quebraram, crianças choraram, mães puxaram os filhos, homens se levantaram com a mesma velocidade que a respiração se perdeu. Nunca tinha ouvido um tiro de tão perto. Já tinha ouvido na TV, já tinha visto filme, mas o som real — aquele estouro que parece rachar o mundo — tem outra densidade. O ar ficou diferente, mais pesado, com gosto de pólvora. — Livi! — Júlia berrou, a voz cortando minha paralisia. — Vem! NK já me agarrava pelo braço, puxando quase arrastando para um beco. Zoio ajudava a tentar organizar quem caía, a velha dona da barraca do pastel se encolhia, e o chão se tornou mapa de vozes e passos. Meu corpo, no entanto, travou. O pânico me gelou as pernas. Eu senti o mundo girar, os olhos rodopiarem. As mãos tremiam como se tivessem vida própria. E então Kael apareceu. Não veio como nos filmes, estilo herói dramático. Veio como alguém que conhece o fogo: sêco, rápido, preciso. Tinha uma arma na mão — e a visão dele com arma até então pertencia mais à notícia que à minha vida — e a presença dele cortou o ar ao meu redor. — OLIVIA! — ele gritou, mano firme prendendo meu braço. — VEM COMIGO, AGORA! Não hesitei. Obedecer foi automático; parecia a única opção lógica num mundo que tinha virado alucinação. Ele me puxou por corredores estreitos que só quem morava ali conhecia, atalhos escondidos, portas de serviço que levaram a um labirinto de madeira e concreto. Gente correndo, rádios chiando, ordem em gritos curtos. Alguém entregou munição, outro apontou direção, e eu senti a favela se transformar em defesa de guerra. Entramos num imóvel pequeno — uma sala apertada, cortinas tremendo, um rádio esquecido tocando um funk baixo. Ele fechou a porta, trancou e encostou com força as costas no batente. A respiração dele era pesada; o suor escorria pela testa. A adrenalina desenhava as linhas do rosto, e eu, por instinto, procurei abrigo no peito dele. — Nunca... — ele começou, os dentes cerrando a frase. — nunca sai do meu alcance de novo quando o bagulho estourar, entendeu? Eu só consegui balançar a cabeça. A voz dele tremia entre fúria e medo. Aquilo me mostrou uma faceta dele que eu tinha pressentido no baile: autoridade com custo. Não era só proteção; era cobrança. Um aviso de que ali, ao se aproximar de alguém, você assumia uma guerra invisível. — Cê tá bem? — ele perguntou, segurando meu rosto com as mãos ásperas. — Fala comigo. — Eu... acho que sim — falei, a respiração voltando aos trancos. — Meu coração... tá doido. Ele tentou sorrir, um gesto curto que tentava puxar de volta algum normal. — Primeiro tiro nunca esquece — falou — mas respira. Tá aqui. Ficamos assim, um tempo que parecia um mundo: eu apoiada nele, e ele sendo muralha. O ruído do conflito lá fora ainda vinha abafado, ecos de tiros distantes, barulho de carros arrancando, vozes que pediam calma. Mas naquela pequena sala o ar era outro — carregado de promessas, de proteção, mas também de alerta: viver ali tinha preço. Quando deu pra controlar a respiração, cheguei a ouvir o que estava acontecendo fora: o bonde reagiu. Mãos se moveram, ordens curtas, uma resposta rápida. Não demorou muito e alguém veio checar se estava tudo bem no esconderijo. NK pôs a cara por uma fresta da porta, conferiu e sinalizou que a coisa tava controlada — por enquanto. — Isso aqui não é brincadeira, Olivia — Kael murmurou, sem olhar pra mim. — Esse mundo cobra caro. Muito caro. Eu juro... enquanto você estiver aqui, ninguém encosta em você. Mas você tem que entender que, se ficar do meu lado, vai ser alvo. Não é promessa fácil. É aviso. Aquilo foi direto no meu peito. Mais do que medo, senti responsabilidade me cair em cima: não era só minha segurança; era a escolha por uma vida que envolvia riscos que eu não conseguia desenhar totalmente. O amor, ou o interesse, ali, vinha com tal carga que me deu vertigem. — Eu sei — falei. — Eu não vim pra preço barato. Só não quero ser sozinha nesse barulho. Ele me olhou. Algo mudou no rosto dele: não era só proteção; era cansaço, e um pedaço de ternura que raramente vi em alguém chamado de “dono do morro”. — Então fica aqui — disse, quase em sussurro — mas aprende as regras. Não cê, qualquer vacilo e eu não perdoo nem eu mesmo. Houve um silêncio que cabia dentro da frase. Saímos horas depois, com a rua ainda quente de adrenalina, o bar meio destruído, mesas derrubadas, conversas empurradas para o que precisava ser feito: contar quem tava bem, cuidar dos feridos, enterrar o que era preciso enterrar — mesmo que fosse só o fato de que a paz ali tinha chagas. Júlia segurou minha mão forte quando saímos, olhos molhados. — Livi, cê tá bem? — perguntou, voz boa de quem quer proteção. — Eu te disse, eu não deixo nada não. — Tô — respondi, sem muita convicção. — Tô por agora. No caminho de volta, Kael ficou perto. Nem falou muito. A sombra dele era presença constante, e eu percebi que estar ao lado dele era como andar perto de fogo controlado: esquentava, protegia, mas podia queimar sem aviso. Vi o modo como os outros olhavam pra gente — respeito, cautela, talvez curiosidade. Sabia que ter alguém como ele por perto mudaria tudo: amigos, inimigos, rotas. E eu, que vim procurar ar, entendi que talvez estivesse assinando por consequência. Mais tarde, quando a noite acalmou e o bar foi limpo por mãos cansadas, sentei na laje olhando pra cidade que piscava lá embaixo. O tiro ainda reverberava nas minhas esquinas internas. Tive medo, verdade. Mas tive também a sensação estranha de que, mesmo com medo, não queria largar aquela mão que me segurou no meio do caos. A favela continuava a ser favela: cheia de vida, cheia de risco. E eu, que cheguei para fugir do silêncio, agora carregava outro tipo de barulho — o som da responsabilidade e do desejo entrelaçados. Estar com Kael significava aceitar que, quando o fogo viesse, não ia ser só um ruído distante. Seria linha de frente. E eu, pela primeira vez, senti vontade de fazer parte da linha.
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