As duas luas ainda estavam no alto do céu em um degradê de carmim a bordo, quando ela retornou a sua torre.
Poder. Ela agora tinha algo correndo em suas veias, algo que seria capaz de a tornar forte. Forte o suficiente para quebrar e destroçar qualquer um que a ameaçasse, mas por que ainda assim, o vazio não a abandonava?
Seus pés a levaram escada acima. Passo após passo, ela esperou o frio que a atingiu nas sombras. Aquele frio aconchegante, mas ele não estava ali. O corrimão era tão delicado, tão suave ao toque. Um estalar de língua a contra gosto e ela se deparou com a porta da biblioteca.
Tantos livros... tantas histórias prontas para serem lidas.
Seu peito apertava, como se aguardasse por esse sentimento, pela vida existente naquelas histórias, as vidas onde ela havia se escondido por parte de sua vida mortal.
Seus dedos passaram suavemente pelos títulos. As capas duras e envelhecidas, pareciam capazes de se desfazer com um simples toque. As prateleiras esculpidas na pedra n***a da qual a torre havia sido construída, dava ao lugar um ar de algo escondido, perdido no tempo, não fosse pelas duas únicas poltronas no lugar. O estofado vermelho como sangue, sem bordados, sem brasão.
Uma princesa que congelou seu coração para salvar seu reino.
Um príncipe vampiro que jamais amou, prendido em uma maldição que o impedia de sentir.
A primeira sereia, amaldiçoada a viver no mar n***o, onde a vida não existia, por abdicar de seu próprio coração.
Tantas histórias, mas nem por um mísero segundo ela sentiu o que antes era corriqueiro. Não estava mais ali. Os livros abertos e abandonados no meio de suas histórias, foram abandonados sem um olhar de despedida. Não havia nada ali, para ela. Não havia mais lugar na fantasia... para ela.
O sol n***o, parecia fita-la enquanto descia as escadas. Ele a olhava como se dissesse pobre criatura vazia.
Suas mãos se fecharam em punhos e ela pode sentir o cheiro ferroso de seu sangue quando as unhas pontudas afundaram na pele. Seus lábios se curvaram em um sorriso m*****o. Ela não precisava de sentimentos inúteis.
Ela não chamou Emerin, muito menos teve o cuidado que comumente teria. Com um gesto rápido e limpo, quebrou as correntes do vestido e o jogou ao chão. Sua pele pálida sendo banhada pelas sombras que dançavam à frente do sol. Os s***s expostos enquanto ela caminhava até a janela. As mãos apoiadas sobre o parapeito enquanto ela olhava as rachaduras que se estendiam entre as montanhas, o fogo que queimava embaixo daquela terra. Os rios de lava.
Aquela seria uma bela imagem a ser pintada.
Seus olhos vaguearam, até o centro do jardim de labirinto, e ela avistou Asher. Sorrindo enquanto seus olhos enevoados serpenteavam pelo seu corpo. Noire ergueu o rosto de forma altiva enquanto o fitava. Uma ameaça, uma indagação, uma simples provocação. Ela ronronou enquanto seus lábios se curvavam com o olhar lascivo que ele lançou enquanto ela erguia seu rosto.
Um ser patético ele havia dito. Alguém que m*l conseguia se pôr de pé. Um corpo frágil... Insinuou.
Noire ergueu os dedos e com um simples gesto, desfez a trança de seus cabelos, os deixando cair por seus ombros e s***s. Os olhos do infernal pareciam seguir cada gesto e movimento. As sombras pareciam densas a cada segundo.
O que ele faria? Subiria até lá e a jogaria contra a parede? Seria assim tão fácil provocá-lo? Não... ela duvidava disso, ainda mais quando era tão nítido que ele só faria aquilo, no simplesmente intuito de constrangê-la. Não seria divertido para ele, não quando ela queria. Quando provocava. Mas a ideia daquelas garras segurando seu quadril e a pressionando contra a parede, a fez se questionar o que ela sentiria. Se ela sentiria. Pena que quando seus olhos novamente recaíram sobre o lugar, Asher já não estava lá.
Noire suspirou, de certa forma, desapontada e em sua mente, viu um sorriso surgir. Um sorriso que não lhe pertencia, mas não a incomodou.
Ela se enrolou nos lençóis de seda, aceitando o toque aconchegante do colchão, dos travesseiros. Eles a embalariam. Aqueceriam.
☽☀☾
Grandes olhos negros, tomados pelas sombras e pela morte, a fitavam quando ela acordou. Seu corpo estava congelado. Seus músculos tão tensionados quanto possível. Mas não havia medo em seus sentidos. Ela havia perdido a capacidade de sentir aquilo? Não temia de verdade por sua vida? Ou tudo fazia parte de estar no inferno?
— Como é dormir? — Os grandes olhos negros questionaram.
Ela estava sonhando? Não. Podia sentir o lençol entre seus dedos. Não era um sonho, muito menos pesadelo.
— Quem é você? — Noire murmurou, a voz rouca e lenta.
O ser se ergueu, apoiando as pequenas mãos sobre o colchão. Ele tinha uma forma, além dos grandes olhos negros. Uma forma confusa e certamente curiosa. Parecia uma criança, com não mais de 7 anos. Um corpo magro, olhos totalmente negros, pele de um cinza escuro que por poucos tons não chegou ao preto. Espirais delineavam seu corpo e tudo que ele tinha como roupa, era um dhoti esfarrapado.
Não havia riqueza em suas vestimentas e nem exatamente beleza em sua aparência. Os cabelos do pequeno ser, eram como sombras onduladas. Negros como a noite e como seus olhos.
— Niv — disse simplesmente.
Noire ergueu-se na cama.
— Você não dorme?
Ele negou gentilmente com a cabeça.
Seria coerente não conversar com aquele ser. Seria coerente não confiar. Seria coerente chamar por Emerin ou Avalon, mas Noire não estava realmente preocupada em ser coerente. Afinal, ela estava no inferno, então... ela respondeu pensativa.
— É um estado de inconsciência. É como... não pensar em nada. Só respirar e deixar sua mente ir.
Suas palavras, fizeram algo dentro daqueles imensos olhos completamente negros, brilhar.
— Dormir... parece... bom.
— Por que você não dorme?
— Porque as sombras não dormem... — Niv murmurou.
Sombras... aquela coisinha com a aparência de uma criança, era uma sombra.
— E por que está no meu quarto?
Niv desviou o olhar e algo que beirou a vergonha passou por seu rosto, o deixando corado.
— Eu ouvi... sua voz... e segui... — explicou entrelaçando as pequenas garras como uma criança ansiosa — quando cheguei aqui... você dormia e... eu fiquei assistindo. Parecia... um anjo. Niv... ficou encantado. Desculpa.
Em sua vida mortal, Noire havia detestado crianças. Gritos, choros, toda aquela bagunça... toda aquela energia e felicidade, enojava parte dela. Uma parte bem escondida que ela forçava para baixo e fingia que não existia, mas sempre esteve ali. A pior parte dela. A parte que parecia toda errada, independente do lado que se olhasse. A parte que agora, parecia acordada e no comando de tudo. Mesmo assim, algo em Niv a fez sentir... interesse. Uma criança de sombras, tão nitidamente encantada com algo fútil, como dormir.
Talvez fosse a ingenuidade, talvez a imensidão daqueles grandes olhos. Ela não conseguia opinar, mas se viu sorrindo para Niv, quando estendeu a mão antes de se apresentar.
— É um prazer conhecê-lo, Niv. Me chamo Noire...
Com cuidado, a sombra segurou sua mão. A pequena garra era fria, porém delicada. Rubor tomou seu rosto quando ele sorriu ao responder.
— Eu sei. Todas as sombras sabem seu nome.
Noire ergueu a sobrancelha ao ouvi-lo e ao abrir a boca para questionar a sombra, batidas na porta foram ouvidas e ela sentiu a garra de Niv se desfazer entre seus dedos, quando o pequeno se tornou sombras e desapareceu.
— O seu café está pronto. Senhora. — Foi a voz de Emerin atrás da porta que a fez recompor-se.
— Pode entrar — ordenou, levando uma das mãos ao rosto.
O olhar de Emerin, recaiu sobre o vestido e os pedaços da corrente caídos ao chão, mas nem mesmo uma palavra foi dita. A criada recolheu o tecido, deixou sobre o criado mudo, uma bandeja com frutas e pães. Uma fatia de torta e duas taças. Uma com água e outra com um líquido prateado.
— Devo preparar a água para o seu banho?
Noire ergueu o olhar para a criada e assentiu.
— Mas não preciso de ajuda, pode se retirar por hoje.
— Como quiser.
Com a mesma graça que entrou, Emerin se retirou, levando consigo o vestido e os fios dourados. Noire quase se preocupou com o que a grã princesa sentiria ao saber que ela havia estragado o presente, os olhos brilhando em um lindo carmim, vieram a sua mente. Ela não precisava saber.
Esperou até que os passos de Emerin já não fossem ouvidos e tomou entre os dedos uma maçã que parecia ser feita de rubis lapidados. Uma mordida e um suspiro de aprovação. Fosse qual fosse o motivo, o sabor era divino.
— Niv — Ela chamou, de alguma forma segura de que a sombra a ouvia.
Com passos lentos e silenciosos, Niv se aproximou da cama, surgindo de uma sombra próxima a janela.
— Por que se escondeu quando Emerin bateu em minha porta?
Os olhos da sombra vaguearam pelo quarto, como se esperasse encontrar na tapeçaria ou nas almofadas, a resposta correta para aquela pergunta.
— Eu... não sei — respondeu, com o rosto inclinado para baixo. Os olhos negros fitando os próprios pés, como se fosse a primeira vez que ele os via.
— Tem certeza? Odeio quando mentem pra mim, Niv — disse erguendo uma sobrancelha e apoiando um dos braços sobre o joelho.
— Sim, senhora...— respondeu lentamente a sombra, sem erguer o rosto para fitá-la.
Noire estalou a língua no céu da boca ao ouvi-lo. Mentira. Era nitidamente mentira, mas o que aconteceria se ela o pressionasse? Talvez fosse melhor... brincar um pouco.
— Então não vai haver nenhum problema se eu chamar Emerin novamente ou se eu contar a ela sobre você, não é? — sussurrou maliciosamente, mordendo a maçã enquanto os olhos negros se erguiam assustados. Sim. Ele parecia assustado.
— Não pode... — ele sussurrou.
Um sorriso vitorioso surgiu nos lábios de Noire ao ouvi-lo.
— Por que não? — Noire insistiu.
A sombra, dando-se por vencida, suspirou e com um cuidado cômico, sentou-se aos pés da cama.
— Porque... súcubos não gostam de sombras. E sombras... não falam com súcubos. — Ele murmurou, gesticulando com as pequenas garras negras.
Noire ergueu uma sobrancelha com aquela afirmação. Emerin ser uma súcubos era realmente algo que fazia certo sentido. Um demônio com aparência feminina e extremamente sexy. Ela conseguia visualizar Emerin, vagueando pelo mundo mortal e deslizando pelos sonhos dos homens enquanto os provoca e fisga suas almas. Os dedos delicados, os toques cuidadosos, os olhos que carregavam malícia e uma verdade lasciva. De uma forma quase cômica, fazia sentido.
— Se a súcubos souber sobre Niv... ela vai expulsar Niv... — a pequena sombra murmurou, como um pedido para que Noire mantivesse sua presença em segredo.
Enquanto mordia a maçã novamente, Noire suspirou. Ela queria companhia e a pequena sombra, era intrigante o suficiente no momento.
— Não contarei a Emerin, desde que me conte mais sobre você e sobre... as outras... sombras. — Diz gesticulando com a mão livre para o quarto e como um cachorrinho obediente, Niv assente com a cabeça rapidamente.
— Niv irá contar. Niv contará tudo a Noire. Niv promete.
O sorriso vitorioso tomou seus lábios enquanto Noire devorava o último pedaço da linda maçã.
— Você é um bom menino... Niv.
Como se aquele fosse o primeiro elogio a ser recebido, os grandes olhos de Niv brilharam e ele assentiu. As mãos próximas ao corpo entrelaçadas. Aquele seria seu pequeno segredo dentro daquele mundo. Com a ponta das unhas, ela perfurou uma uva e se serviu, olhando a sombra, que a ainda a fitava, balançando as pernas suspensas no ar.
— Quantos anos você tem, Niv?
Niv deitou a cabeça no ar, fitando a garota como se algo sem sentido tivesse sido perguntado.
— Niv não têm anos... Niv está aqui desde sempre.
Com o suco da uva espalhando-se por sua boca, o sabor adocicado e perfeitamente cítrico, Noire ergueu uma sobrancelha em descrença.
— Desde sempre?
— Sim... As sombras foram as primeiras a surgirem. Antes da música, das palavras e da luz. Niv estava lá... Niv sentiu. Niv ouviu...
— O que Niv ouviu?
— A canção da criação. Uma bela canção... — ele disse com um sorriso doce e ingênuo — todas as sombras ouviram. Todas as sombras se lembram.
— Todas as sombras são como Niv?
Ele negou com veemência.
— As sombras são diferentes. Cada sombra é uma sombra, cada sombra é uma história.
Noire deslizou a ponta dos dedos pela taça de líquido prateado e bebeu com calma, aproveitando o sabor equilibrado do elixir. Sua garganta parecia queimar de forma deliciosa enquanto ela pensava naquelas palavras, mas Niv se desfez em sombras novamente ao som de um bater de asas e com certa maestria, um corvo pousou em sua janela. Um pequeno pedaço de pergaminho estava amarrado em sua perna.
Noire levantou e com cuidado, se aproximou do animal. O corvo a fitou como se pudesse ver sua alma e quando ela retirou o laço que prendia o pergaminho a sua perna, ele se foi.
❝ Noire
Estarei te esperando na biblioteca do castelo se ainda desejar descobrir sobre seus poderes e a magia que envolve o submundo. Está pronta para abraçar a escuridão em seu coração?
Atenciosamente. A❞
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