Capítulo 5

2033 Palavras
Ele não se lembrava de como era o sabor que a comida tinha, nem mesmo a sensação das cordas de seu amado violino em seus dedos. A luz que outrora fez parte de seus dias, agora o havia abandonado e dentro das paredes de tijolos brancos, ele procurou em seu peito dor suficiente para fazê-lo chorar. Quanto tempo havia se passado? Quanto tempo ainda o prenderiam ali? Os cortes em suas costas latejavam. Sua cabeça zumbia, mas a lembrança daquele doce som com o qual havia sonhado, ainda confortava a dor que sentia. Era uma canção. A canção que ele ansiava tocar. O motivo por ainda continuar. Quantas lágrimas ainda lhe restavam? Talvez essa fosse sua dádiva. A dádiva da imortalidade que permitiria o seu sofrimento eterno. Você sempre pode aceitar, aquela voz que aos poucos surgiu em sua mente, murmurou. Ele não queria dar ouvidos a ela. Não queria aceitar. Não queria. Não queria. Não queria. Quanto orgulho para um solar que nem mesmo se lembra de como é voar. Ronronou de forma c***l e ardilosa, mas ela não estava errada em falar. Suas asas pareciam atrofiadas, doloridas, cansadas. Elas se moveriam se ele ousasse se jogar de algum lugar? Temia que a resposta agradasse mais a voz do que a ele. Você não vai escapar. Não existe uma forma de escapar. Ronronou novamente quando o barulho da porta de metal rangeu. Ele se encolheu contra a parede gelada e grunhiu com a dor auto infligida, mas preferia a dor ao toque da fêmea que agora, adentrava o lugar. Não que realmente fosse possível escapar. Ele não conseguiria escapar. Os fios loiros brilhavam, trançados como fios de ouro sobre o tecido turquesa do vestido que ela usava. Tão fino e delicado que facilmente poderia ter sido tecido por fadas. Em sua testa, uma estrela de seis pontas com uma safira em seu centro, a coroava como rainha de Celenia. Ele estremeceu quando ela se aproximou e sentiu o toque das mãos enluvadas que seguraram seu queixo com força. — Como estamos hoje, amorzinho? Ele não queria responder. Não queria falar ou esboçar qualquer reação, mas o simples fato de estar em contato com ela, fazia seu estômago embrulhar. O fazia lembrar do que estava por vir. E naquele momento, Theliel agradecia por não ter ingerido nenhum alimento a muito, muito tempo. — Por que tornar tudo tão difícil, querido? Quando tudo que desejo é estar ao seu lado... — murmurou a voz feminina, delicada e persuasiva. Era como uma serpente. Como uma maldita serpente que tentava enganá-lo. Ele ainda se lembrava de cada detalhe, mesmo que ela lhe arrancasse as boas memórias, ele ainda se recordava do sangue em suas mãos. Ainda tinha aquelas imagens vagueando por seus sonhos após os gritos infligidos pelo seu caçador. Após suas costas serem dilaceradas, suas asas torturadas e os gritos de agonia escapar por seus lábios, ele ainda se recordava da chacina que ela havia provocado. Dos joelhos que havia forçado ao chão e da forma tola como pensou que podia subjugá-lo. — Preciso mesmo de Kaur para ouvir sua voz? Que pena... desejava ouvi-lo gritar de outras formas... Até quando irá suportar? A voz murmurou e como se pudesse ouvi-la também, no olhar da solar a sua frente, ele viu a pergunta refletir. Até quando ele iria suportar? Uma. Duas. Três. Kaur iniciou com maestria. O chicote descia por suas costas e a carne se abria com perfeição. Ele podia sentir cada célula do seu corpo implorar por misericórdia, mas enquanto os grandes olhos azuis o fitavam, ele permaneceu em silêncio, guardando sua dor para si, os grunhidos e gemidos que deveriam escapulir. Ele os engoliria. — Mais forte. — Ela ordenou. E então... Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Kaur continuou, sua respiração ofegante, embora a diversão refletisse em cada chicotada. Ele não cederia. — Mais forte — Ela disse entredentes. Seu maxilar travou quando o chicote desceu novamente, o sangue espirrando no piso branco, o manchando como se tinta fresca pintasse um novo quadro. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Ele contou, ele sentiu, mas quando tomou para si o ar, pensando que uma nova ordem viria, algo lhe atingiu o rosto com força. A parte metálica do chicote cortando do seu queixo a sua sobrancelha de forma precisa, o sangue descendo de forma lisa e o calor e a dor, unindo-se como irmão, enquanto ele grunhiu a contragosto. Nas mãos da rainha, agora repousava um chicote, mas diferente daquele que Kaur carregava, esse possuía pequenas estrelas de seis pontas em suas tiras e havia sido uma delas a dar-lhe o belo golpe de surpresa. — Bem melhor. — Ela rosnou agachando-se próxima a ele e sem cerimônias, segurando seu rosto com força. A luva branca sendo manchada com seu sangue e afundando no ferimento que o fez gemer — eu te farei ceder. E com um movimento brusco, entornou um vidro com o conteúdo esverdeado contra seus lábios. Os dedos afundando no machucado e forçando seu maxilar a abrir. Ele engasgou, mas não foi rápido o suficiente para cuspir. Logo... seu sangue queimaria e ela... teria o que queria.                                                                                          ☽☀☾   Enquanto ela deslizava as mãos sujas de sangue por seu corpo, ele arfou. Mas não de prazer. Nunca de prazer. Naqueles momentos, ele agradecia por não sentir. Agradecia pela dor ser superior ao nojo que percorria sua pele. Agradecia por cada machucado que gritava para o que restava de seu orgulho “ainda não”. Ela gemeu ao seu ouvido. Satisfeita com a expressão contorcida de seu rosto. O corpo desnudo sobre o seu, mas ainda que a visse ali, as unhas cravadas em sua pele, as pernas apertando seu quadril, as feições se contorcendo de prazer... seu estômago ainda embrulhava. Os fios que saiam do coração da rainha, não possuíam cor. Talvez – ele pensava –, fosse esse o maior reflexo de sua alma. Uma alma incolor. Ele queria erguer os dedos e queimá-la. Queimá-la como seu sangue queimava, como seu corpo queimava, como suas lembranças haviam sido queimadas. Queria tocar os fios e desfazer sua alma. Isso o tornaria como aqueles que ele havia caçado? O quanto isso ainda importava? Theliel deixou que seu rosto caísse para o lado. Vazio. Ele não queria pensar. Os olhos dourados fitaram o vestido turquesa jogado ao chão. Frio. O chão estava frio. Os bordados de ouro estavam manchados pelo sangue. Manchados. Manchados como tudo em sua vida. Por que estava tão frio? Suas costas, estavam úmidas, latejando. Estava tão frio. Pare de resistir ronronou novamente a voz. Não. Frio. Estava tão frio. Ele queria cantar. Ele queria voltar. Ele queria voltar. Ele queria respirar, mas iria demorar. Horas. Devia demorar horas. Sempre demorava horas e horas. Então, ele desejou perder a consciência, mesmo que ela jamais o permitisse essa dádiva. Ela o despertaria. Uma vez após a outra. Por que me abandonaste, mãe? Úmida, pequena e solitária, a sua última lágrima pingou sobre o piso de mármore. Por que? Por que? Por que? Ele queria soluçar. Queria possuir lágrimas para chorar. Queria algo para o consolar. Por que?   ❝ Tantos pássaros dançavam pelo céu de um belo tom de turquesa, que lindamente descia em um degradê perfeito, chegando ao fim de um violeta limpo e vivo, voando e voando entre as nuvens delicadas que envolviam o grande castelo flutuante no centro de tudo. Celenia era seu nome.   — É tão bonito — ele dizia. Absorto com a imagem que brilhava à sua frente. — É o nosso lar, querido. — A voz maternal respondia. — Sempre será nosso lar. Ele sorriu, maravilhado. O ar, o céu, as flores, o lindo castelo. Tudo irradiava perfeição. Tudo irradiava bondade. Era como uma bela canção, possuía a pureza de uma nota musical. — Toque, Theliel... cante... e me mostre como é belo o mundo pelos seus olhos — ela murmurou. — Molde-o e me permita criá-lo. Seus olhos dourados brilharam. Era um pedido de sua mãe. O pequeno violino em suas mãos, era como um velho amigo. Como parte de seu coração. E ele estava feliz quando seus dedos deslizaram pelas cordas. A música ressoando por cada mísero centímetro do mundo. Sua voz, sussurrando uma melodia sem fim. Silenciosa e concisa. A melodia da vida. E enquanto os fios dourados brilhavam e se estendiam por seu peito, enrolavam-se em seus braços e dançavam pelo céu variante. Theliel sorriu genuinamente. Era o momento mais feliz de sua vida. O mundo era pintado com o dourado de seus olhos. ❞   Mas não havia nada lá.                                                                                          ☽☀☾   Suas mãos estavam cortadas. Suas costas ainda latejavam, mas dessa vez, pareciam estar em chamas. Seu rosto doía e a mínima expressão facial era agonizante. Ainda conseguia sentir o sangue pingar de seus machucados. Ainda podia sentir o queimar em suas veias graças a droga que ela o forçava a beber. “eu te farei ceder” ela havia dito. Com um pequeno gesto, ele se recostou a parede. Mover o corpo era doloroso, quase... impossível, mas ele não queria permanecer deitado onde ela o havia deixado. A poção ainda estava em seu sangue, embora parecesse mais fácil de se livrar dos efeitos, graças aos cortes e machucados. Em seus pulsos frágeis, a marca de seu fracasso era ressaltada. Era amargo. Apenas amargo. Todos os sentidos, sentimentos e sons. Todos os sabores... Era como um cristal prestes a se quebrar. Como uma criança prestes a chorar. Quantos milênios ainda seriam necessários para que ele ouvisse outra voz além da dela? Quantos minutos, segundos... milésimos ele teria que assassinar, antes que a loucura tomasse seu corpo e mente? Ou talvez ele já estivesse louco. Talvez fosse parte da sua loucura as lembranças de um lugar tão lindo. Havia realmente algo lá fora? Havia um céu? Talvez se suas asas não estivessem ali, ele duvidasse do mínimo. De seu nome, seus poderes, seus irmãos. Talvez ele estivesse louco. Ainda pode desistir a voz em sua cabeça, insistiu de forma maliciosa e ele sabia, sabia que ela estava sorrindo. Com garras e dentes afiados. Esperando. Contando. Olhando para cada passo seu. Ela queria que ele desistisse... Ou talvez você só esteja realmente... louco. Murmurou. Ele estava? Você ouve vozes... você nem lembra do rosto dos corpos que destroçou... ronronou. Ela estava certa. Ele odiava isso, mas ela estava certa. Ele não lembrava. Do que mais ele não lembrava? Quando aquela maldita voz começou? Quando sussurrou pela primeira vez em seu ouvido? Quando tudo começou a se fazer em cacos? Quando os fios se tornaram emaranhados? Você está louco... Não. Ele não estava. Ele não estava. Ele não podia estar. Com toda a força que ainda tinha, ele cravou as unhas em seu rosto. Dor. Doía. Doía tanto que ele sorriu. Ele não estava louco. Não estava delirando. Ele sentia... ele estava ali. Seu sangue ainda queimava. Seu corpo ainda doía. Suas asas... Você está louco... ela insistiu entre risos.  Não. Ele gritou internamente. Os olhos dourados queimaram com o orgulho ainda existente em seu espírito. Ele não estava louco. Ele era Theliel, o primeiro solar. Theliel, o filho mais amado. Theliel, aquele que sua mãe deu o dom de tecer os fios de poder. Ele era a voz do empíreo. O rei de Celenia. Ele era um solar. Ele não estava louco! Então como um rei veio parar nesse lugar? A malícia em sua pergunta aumentava. Havia descrença em cada palavra. Ela tentava desencorajá-lo, mas ele sabia. Seu sangue queimava e queimava enquanto ele se forçava a lembrar. A sala tingida de vermelho. O trono dourado ocupado por outro e a coroa caída em seus pés. As vozes em uníssono... não... o sorriso da rainha. Era confuso. Era doloroso lembrar, mas estava lá. Ele sabia. Eles sangraram por ele. Eles morreram por ele. Ainda podia sentir o corpo quente e ver o sorriso da fêmea de cabelos castanhos quando a vida se foi de seus olhos. Ele ainda a sentia em seus braços. Ainda podia ouvir os gritos e os joelhos caindo sobre o chão. Haviam arrancado sua coroa. Haviam arrancado seu trono. Haviam arrancado suas asas... e então... o haviam marcado.                                                                                          ☽☀☾  
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