— Está pronta para dançar com o d***o a luz do luar? — Avalon questionou.
Noire ergueu sua mão sem pensar duas vezes. Os lábios se curvando para cima enquanto os olhos negros com um lindo delineado dourado se fixavam na fêmea.
— Seria um desperdício não dançar com um vestido desses — respondeu antes que o toque quente dos dedos de Avalon alcançasse os seus. Logo, as sombras estavam ali.
Nas sombras, existiam escadarias e uma imensidão consumida pela escuridão. Vozes doces pareciam sussurrar o caminho a se tomar. Não havia corrimão ou apoio, mas seus pés pareciam leves como se estivesse descalça. O ar parecia sempre frio, mas de alguma forma aconchegante. E se não fosse pelo simples fato de segurar a mão de Avalon, Noire teria facilmente se deixado levar pela música que parecia tocar ao fundo. Uma canção familiar.
Um passo.
E o grande salão se estendeu à sua frente. O piso de pedras cinzentas, os pilares e arcos que se estendiam pelo lugar. A tapeçaria preta e dourada, assim como os estofados. A decoração elegante e com nítidas referências a época vitoriana deixava claro que agora estavam no castelo.
Duas figuras, acomodadas na mesa que se encontrava no centro da sala, tomou como fonte de atenção às fêmeas que surgiam das sombras.
— Nada como uma entrada triunfal — disse o macho de cabelos enevoados, inclinando-se na direção do infernal — Não concorda Asth? Ah!... Eu esqueci, você não pode ver.
— E é por isso que ninguém te deixa sair do inferno — respondeu Asth com um sorriso.
Avalon revirou os olhos em desprezo antes de se pronunciar.
— Vocês parecem cães mortais e, mesmo assim, governam o inferno...
— Você faz parte do canil, Grã Princesa de Arshad. — O macho ronronou e o título de certa forma, fez o olhar de Noire recair sobre Avalon. Não era apenas um ser incomum, um arauto como ela, mas sim, uma grã princesa – o que quer que isso significasse – parecia bem mais do que ela podia imaginar. Sua mão pareceu esquentar e Noire pode jurar que um olhar assassino tomou os olhos carmim por alguns segundos, mas uma onda de poder fez seus ossos gelarem quando a voz rouca do infernal de olhos marfim foi ouvida.
— Comportem-se. Acabei de me habituar a essa sala... não irei redecorá-la, novamente.
Essa era sua maior preocupação? Os olhos marfim fixados em nenhum ponto específico, pareciam vazios. Mas em seu rosto, permanecia uma calmaria que parte da garota desejava um dia possuir.
O rosto altivo de Avalon parecia inerte, como se já estivesse acostumada a essa situação. Enquanto seus olhos se focavam no infernal de cabelos cinzentos, aquele que foi chamado de Asth levantou de seu assento com uma graça invejável e de olhos fechados, caminhou até elas. Como um cavaleiro do século XIX, tomou a mão das duas, depositando um beijo demorado antes de falar com malícia em sua voz.
— É um prazer estar na presença de companhias tão agradáveis. — Seu rosto se ergueu na altura do de Noire e com os lábios curvados em um sorriso, ele murmurou. — Creio que agora, posso me apresentar de forma formal, senhorita. Sou Astaroth, príncipe do primeiro território e agora, seu patrono.
Astaroth. A mera pronúncia daquele nome era como um perjúrio. Como uma cantiga antiga. Noire se viu imaginando em como aquele nome soaria em seus lábios e como se fosse uma reação comum, ergueu uma sobrancelha em descrença. Ele é realmente... interessante.
— Ao menos em uma coisa os mortais estão certos. Demônios são realmente sedutores. — Noire sussurrou com a voz rouca, as palavras tão maliciosas quanto o sorriso de Astaroth.
— Sedutor é a palavra — Ronronou o macho que permanecia sentado à mesa. — Mas ainda me ofender ser comparado a um demônio. — As garras tamborilando sobre o mármore.
— Não acho que o sedutor se aplique a você, Asher. Embora o demônio, por outro lado, lhe caia bem. — Respondeu Astaroth com um sorriso sínico.
— Mas não somos demônios — Avalon completou, antes que Asher pudesse responder ao príncipe.
— Também não nos alimentamos de carne humana e nem torturamos almas... na maioria das vezes — acrescentou Asher com deboche.
Se a intenção dele havia sido assustá-la, Noire teria que conter o riso para não o desapontar. Nada a agradaria mais que o sofrimento da raça humana. A mesma raça que a havia quebrado, destroçado e assistido a definhar.
— Estou desapontada em saber que não constroem muros com crânios de bebês.
— Crânios de bebês são frágeis demais, seria um muro inútil e demorado de se construir. Nada prático — Asher argumentou, gesticulando com as garras como se afastasse a ideia para longe. Não parecia algo que ele não houvesse cogitado.
— Você sempre torna tudo tão macabro — debochou Astaroth, estendendo a mão para Noire, como se a convidasse para uma dança — sente-se, querida e aproveite o jantar.
Após as palavras serem ditas, a mesa foi recoberta com pratos, talheres e bandejas. Carnes, assados, tortas e pães. Havia comida suficiente para um exército e ela não havia notado o quão faminta estava, até se deparar com tamanho banquete. As frutas pareciam brilhar, como se fossem feitas de cristal, as carnes e os assados possuíam uma coloração avermelhada e apetitosa, mas eram tão macias que derretiam com o mínimo contato com sua língua. Nunca em seus 24 anos ela havia provado algo tão delicioso.
Seus modos à mesa eram perfeitos, mas a graça com a qual Astaroth se portava a fez questionar se o infernal realmente era cego. Suas mãos pálidas e seus dedos longos, agiam de forma delicada enquanto ele comia.
— O quão vasta é a magia? — Noire perguntou enquanto se servia da taça de vinho à sua frente. O líquido era mais espesso e o sabor... ah... o sabor era divino – por mais irônico que pudesse parecer –, como se todas as suas papilas gustativas cantassem em uníssono.
— Muito — respondeu Astaroth com um pequeno sorriso — mas Avalon certamente é a mais apropriada entre nós para falar a respeito.
— Uma verdadeira bruxa. — Asher sibilou de forma provocativa, mas nos olhos do arauto, havia apenas orgulho.
— A magia se baseia em seu espírito. Cada ser ao ser criado, recebe seu nível de poder e se bem treinado pode realizar feitos consideráveis. Os mortais, em sua grande parte, raramente entendem a dimensão de seus poderes e tratam a magia como algo inexistente, mas a fé – de que tanto se gabam –, nada mais é que uma representação da magia. — Avalon explicou enquanto tomava a taça de vinho — Algo capaz de curar, machucar, amaldiçoar, prender e salvar. A magia está em tudo e em todos. Desde uma flor colhida em seu jardim, a brisa gélida que acalma suas noites. Os elementos fazem parte da magia e o pensamento impulsiona seus poderes. Mas tudo, obviamente, ainda depende da disciplina que se aplica a quem pratica.
— Então... existe magia no mundo mortal? — Noire perguntou com uma mistura de interesse e descrença.
— Existe magia em todos os mundos. O que os difere é o quanto aqueles que neles vivem, estão dispostos a aceitá-la.
— Os mortais são coisinhas grotescas que se consideram inteligentes — comentou Asher, sem se esforçar para tentar esconder o desprezo que nutria pela humanidade — eles não acreditam na magia nem mesmo quando a veem. Chamá-los de tolos, seria um elogio a eles e um insulto aos tolos.
Ela não podia discordar. Os mortais eram criados com uma visão turva da realidade e a magia para eles, era como um conto de fadas, mas Noire se viu pensando em como seria a expressão no rosto daqueles descrentes, se fossem arrastados ao inferno e assim como ela, agora sentassem aquela mesa. Não que eles merecessem provar aquela comida, mas seria divertido vê-los tremer ao tilintar das garras de Asher.
Talvez eles tivessem razão ao dizer que algumas almas estavam condenadas ao inferno, mas particularmente, ela preferia a palavra destinada.
— Então me considera uma criatura grotesca com uma falsa inteligência? — questionou, direcionando sua atenção para o macho a sua frente. Os olhos enevoados de Asher, brilharam com malícia ao ouvi-la.
— Não... não grotesca. — Ronronou — eu diria patética.
Ela poderia apenas se calar. Poderia também suportar aquela resposta como havia feito tantas vezes em sua vida mortal. Poderia sorrir de forma falha e aceitar que no fim, talvez fosse o melhor a se fazer. Não havia realmente sido patética durante toda a sua vida? Mesmo com pensamentos distorcidos, mesmo com a raiva que às vezes a consumia, mesmo com os pesadelos sangrentos e a fixação distópica. Ela ainda havia suportado e aceitado a patética forma de vida que havia sido imposta. Sonhar com um mundo encantado não iria tirá-la de lá e certamente, sua mente conturbada nunca havia desejado um príncipe num cavalo branco para salvá-la. Mas foi um sorriso debochado que tomou seus lábios naquele momento. O silêncio absoluto em sua mente era superior a toda a sensação de se jogar para baixo. Era superior a forma fraca que havia tomado, os ossos expostos em sua pele como um cadáver vivo. Como sua alma naquela escuridão total e completa. Talvez essa fosse a dádiva de já não se ter nada a ser tomado. Não havia medo.
— Tão patética quanto um ser que nem mesmo é acreditado por criaturas grotescas e tolas? Como se sente sendo um conto de fadas? — ronronou cada palavra. Sua voz parecia rouca e amena, enquanto seus lábios se curvavam de forma maldosa.
Avalon e Astaroth, pareciam divertir-se com a situação, observando silenciosamente do outro lado da mesa.
— Tão ácida... — Asher sussurrou — se eu não estivesse vendo seus ossos sobre essa fina camada de pele... — apontou com as garras para a garota — poderia te considerar como algo além de um ser patético tentando se provar em vão, mas para isso, você teria que ao menos ter coragem e confiança o suficiente para viver.
Alguma coisa em seu peito rugiu como uma criatura ferida. Ele estava certo e ela odiava isso. Seu sangue fervia, mesmo que parecesse gelo líquido deslizando pelas veias finas. Ela queria rosnar, pular em seu pescoço e cortá-lo profundamente. Queria ver aquele sorriso sumir de seus lábios e o sangue jorrar de forma limpa e bela por sua kurta cinza. Como seus olhos ficariam quando a vida os abandonasse?
— Gosto desse olhar, mas ainda precisará de muito para conseguir vê-lo sangrar. — Os lábios de Astaroth estavam a centímetros de seu ouvido. O toque quente de suas mãos em suas costas m*l havia sido notado e somente quando as palavras a atingiram, Noire viu que seu corpo tremia e gavinhas de sombras enroscavam-se em suas pernas. Subiam por suas costas, como serpentes prontas para atacar.
Asher parecia se divertir a vendo perder o controle. O controle de algo que ela nem mesmo sabia possuir, mas como se lesse sua mente, o príncipe se inclinou levemente, com os fios negros caindo ao lado de seu rosto e os chifres tocando a pele pálida de Noire.
— Sim, você tem poder, Noire.
Era o que ela queria ouvir. Era o que precisava ouvir. Estivessem os olhos enevoados sobre ela ou não, tudo parecia se dissipar e aqueles lindos e vazios olhos marfim, era tudo que ela conseguia focar.
— Então me ensine a controlá-lo.
— Mesmo que isso a corrompa? — ronronou.
— Não existe mais nada para ser corrompido — respondeu.
Ele sorriu. Um sorriso lascivo, carregado de um prazer sórdido e algo a mais. Algo que se perdeu dentro da imensidão dos seus lindos olhos marfins. Parecia ser toda a confirmação da qual ele precisava para seguir.
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— Ela parece um cadáver ambulante. — Resmungou o general.
— Ela só precisa de treino.
— Ela precisa nascer de novo — insistiu.
— Isso não será possível. — respondeu o príncipe, livrando-se dos botões que prendiam sua kurta.
— Não me diga que você realmente espera que eu treine aquela coisa.
Ele sorriu. Satisfeito com não precisar se prolongar. Ele sabia que Asher havia entendido o intuito de toda aquela conversa no momento em que Noire se alterou durante o jantar.
— Você viu os olhos dela. Eu senti a intenção de te matar, era tão viva quanto a de Avalon ao te queimar.
— Isso só a torna propensa a sociopatia.
— E isso não a torna perfeita para o papel que deve representar?
— Ela é como uma criança aprendendo a engatinhar... — reclamou.
— E você é o meu general, não é? Não pode treinar um arauto de Arshad? — questionou, sabendo que o orgulho do terianiano era o ponto certo a ser atendido.
— Não posso treinar um esqueleto para lutar como um guerreiro. — Argumentou incrédulo.
Astaroth se livrou da peça que cobria seu corpo e quando o vento gélido atingiu sua pele, ele sorriu. Satisfeito ao saber que o olhar do general, estava sobre ele.
— Eu te odeio. — Asher rosnou antes de seus passos pesados o levarem para longe do quarto.
Era sempre revigorante derrotar o general de Arshad e dobrá-lo à sua vontade.
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