Alice foi acordada por Victoria naquela manhã, sua colega de quarto. Alice se moveu lentamente na cama, espreguiçou o corpo enquanto bocejava, adoraria ficar no quarto, mas tinha que tomar café e logo depois os ensaios começariam.
A jovem levantou da cama, foi para o banheiro escovar os dentes e fazer xixi. Aproveitou o espelho para já escovar o cabelo e prendê-lo no coque exigido nas aulas e ensaios. Saiu do banheiro e cumprimentou então sua colega de quarto.
— Bom dia Tori.
— Bom dia Ali. — ela cumprimentou de volta — Troque de roupa para irmos tomar café.
Alice assentiu, já tinha deixado o body, as meias e a saia separadas. A sapatilha de ponta e a ponteira estavam dentro da mochila. Vestiu o body e as meias, guardou a saia na mochila junto com a garrafa de água. Decidiu que naquela manhã usaria um vestido de mangas curtas, era meio da primavera, estava um clima ameno, mas nada exagerado.
Calçou sapatilhas, não as de balé, e pegou a carteirinha estudantil, eles passavam na porta de entrada do refeitório para registrar os alunos que estavam fazendo as refeições.
As garotas passaram pelo leitor e entraram, depois de pegarem uma mesa foram escolher o que iriam comer.
— Eu recomendo algo leve, mas que satisfaça. — aconselhou Tori — Agora você é a bailarina principal, não queremos vômito no primeiro giro.
Alice arqueou as sobrancelhas como se falasse: nem me diga, também não quero.
— Vou pegar um pouco de ovos mexidos, presunto e um mini croissant para m***r a vontade. Proteínas e um pouquinho de carboidrato. E para beber vou pegar suco de morango, um copo pequeno, não quero meu estômago cheio de líquido no ensaio.
Depois de comerem, elas voltaram para o quarto, ainda tinha uma hora para o final do café da manhã e depois disso vinte minutos até tocar o sinal para a primeira aula da manhã e ensaio para as turmas avançadas.
Antes mesmo do sinal tocar elas já estavam no auditório, mas havia uma placa avisando que o ensaio daquele dia seria na sala de espelhos número 3 do quinto andar. Era a maior e comportaria todos eles para o ensaio. Alice viu a amiga tirar foto e mandar no grupo avisando aos companheiros. E elas fizeram o caminho para o novo local.
— Atenção, atenção! — dizia a Madame.
Todo o burburinho parou e as meninas se juntaram aos outros alunos, alguns outros ainda chegavam. Dessa vez Madame perdoaria, mudança de última hora, mas se atrasassem de novo haveria broncas, Alice sabia bem disso.
— Receio que tenha péssimas notícias. — começou a Madame — Foi confirmada hoje de manhã a morte da colega de vocês Dominique Carpentier. O caso a partir de agora será tratado como homicídio, a polícia ainda não sabe se foi proposital ou um acidente, mas quando descobrirem quem fez, isso será avaliado.
A onda de choque percorria cada um dos alunos, alguns inclusive deixavam que as lágrimas fluíssem livremente. Alice era uma delas. Podia ter conhecido a garota sete meses antes, mas com toda certeza a adorava.
— Quando Donna caiu e bateu a cabeça, isso gerou um traumatismo craniano e apesar de terem chamado a ajuda rápido e ela ter vindo rápido, não deu para salvá-la, disseram os médicos. — explicou Madame.
A castanha se lembrava de quando foi correndo até Dominique caída no chão, segundos depois de Ethan gritar por ajuda. Uma poça de sangue se formava ao redor de sua cabeça, escorria muito lentamente e isso a fez ligar imediatamente para a emergência.
— Como a fatalidade aconteceu no auditório, os policiais fecharam o lugar para investigar mais uma vez e não querem ninguém por lá. Até o fim da semana devemos ensaiar aqui. Agora vamos, em seus lugares. — ela bateu palmas duas vezes e todos os bailarinos sem hesitar foram para suas posições — Alice, Calissa, Ethan e Joshua, vocês venham comigo, vamos ensaiar vocês na sala do lado, quero ver como fica com Alice sendo Odette, depois juntamos a todos e limpamos o que precisar. O resto de vocês, Stephanie começará os ensaios, deem seu melhor.
Os quatro chamados se apresentaram a Madame e a seguiram para a sala espalhada ao lado.
— Vamos começar com os aquecimentos, podem se aquecer direto na ponta meninas.
Callie e Alice imediatamente correram para suas bolsas e se sentaram para colocar a sapatilha. Ambas já tinham colocado algodão e esparadrapo nos dedos para evitar bolhas e que os dedos se movessem demais dentro da ponteira de silicone. Alice tirou sua ponteira do potinho com talco, evitava que a ponteira ficasse com chulé. Deu algumas batidinhas tirando o excesso.
Como sua meia tinha um furo embaixo próprio para tirar o pé, ela o fez, colocou a ponteira e voltou a cobrir com a meia. Via Callie fazer o mesmo processo. Ambas colocaram a sapatilha de ponta e deram seus nós para então seguir até o breu, elas costumavam passar a ponta e a sola para evitar que escorregassem no chão de madeira.
— Muito bem, para as barras. — comandou Madame.
Os quatro seguiram para a barra.
— Vamos começar com pliés e grand pliés, todas as posições duas vezes cada. Bras au repos. Primeira posição.
Com os pés formando praticamente um ângulo reto, e os braços para baixo formando um arco arredondado, os bailarinos começaram a dobrar os joelhos e abaixar o corpo com a postura reta.
— E, grand plié. — comandou Madame.
Continuaram abaixando até que estivessem de cócoras no chão, os rapazes em meia ponta e as jovens na ponta.
— Três, quatro, sobe.
Eles dentro da contagem se levantavam, primeiro voltando ao plié e depois a primeira posição.
— De novo.
E eles seguiram as ordens. Plié era normalmente o primeiro aquecimento feito no balé para que os músculos pudessem começar a aquecer e também para alongar.
***
Flashback, 7 meses atrás.
Alice havia recebido a notícia de que havia conseguido a bolsa para o internato havia cerca de um mês, havia mandado todos os documentos pedidos e sua vaga estava esperando por ela. Pensou dezenas de vezes em desistir e ficar junto com seus pais em São Paulo, mas desejava se tornar bailarina e dançar pelo mundo e tocar as pessoas com sua arte.
Agora estava em um táxi com suas malas e seu estômago se revirando por causa da ansiedade. Fechava os olhos e contava até cinco inspirando, depois segurava por mais cinco e soltava em cinco. Era o que seu psicólogo ensinou a fazê-la, repetidas vezes e focar em pensamentos positivos.
“Positivamente, esse dia pode ser muito bom ou muito r**m. E positivamente, eu não me sinto preparada”, ela pensou consigo mesma.
Ainda assim ela deitava a cabeça na janela e observava tudo o que passava pela janela, Paris era linda, talvez se fizesse amigos ali no internato, poderia pedir que eles apresentassem a cidade, não só os pontos turísticos, mas o que eles gostavam também.
Não demorou muito para que o carro parasse em frente a escola, ela tirou dinheiro da carteira, no aeroporto havia conseguido trocar os dólares por euros, não havia sido exatamente a tarefa mais fácil do mundo, mas havia dado certo. Tirou a quantidade indicada no taxímetro e uma gorjeta já que o senhor iria ajudá-la a tirar as malas.
— Merci. — ela agradeceu.
Pegou suas coisas e seguiu diretamente para o prédio branco e alto que se levantava imponente contra a paisagem. Imediatamente quase trombou com uma garota loira que saia do prédio.
— Desculpe! — disse Alice quase ao mesmo tempo que a garota.
Sentiu que a loira a analisava de alto a baixo e tentou dar um sorriso confiante para não demonstrar todo o nervosismo que sentia. Sua postura se desfez no minuto que a menina sorriu e estendeu a mão.
— Eu sou Dominique, todos me chamam de Donna. Você deve ser Alice, eu serei sua guia.
— Ah fico feliz, quero dizer. Sim, sou Alice, a aluna nova e é um prazer te conhecer.
Ela ouviu Donna rir, deveria estar acostumada com alunos novos e ligeiramente atrapalhados.
— Como sabe, para alunos acima de dezoito nossa escola é um internato, na secretaria vamos pegar sua grade horária, a chave do seu quarto e sua carteira estudantil. Ela é importante para ter acesso ao refeitório, biblioteca, academia e boa parte do que nossa escola oferece, é preciso passar o cartão para que eles possam controlar quem visitou o que. — explicou Donna sempre mantendo seu sorriso.
Elas passaram por uma jovem de cabelos pretos na escada e pararam imediatamente, Dominique e ela pareciam muito amigas. Alice ficou quieta apenas observando, não queria interromper.
— Verona, esta é Alice, nossa nova aluna, ela veio do Brasil. — ao ser apresentada, Alice sorriu e acenou.
— Alice, esta é Verona, quase todos a chamam de Vero. Ela é italiana, mas estudamos aqui no internato juntas desde os treze anos, também dividimos o quarto.
— Muito prazer, Alice. Espero que goste daqui.
Alice sorriu, sentiu que a jovem estava sendo sincera.
— Ah, eu também espero.
— Estou levando Alice para a secretaria e depois vou mostrar a escola, quer vir junto?
— Claro, por que não?
***
Alice caminhava de volta para o dormitório, quatro horas de ensaio só pela manhã e ela desesperadamente queria tirar o suor de sua pele antes de ir para o almoço. E também queria distância dos demais estudantes, todos a olhavam como se ela tivesse sido a assassina de Dominique. Céus, ela adorava a garota e nunca mataria ninguém por um papel em um balé.
Quando era a segunda, ninguém se importava em percebê-la, agora que tinha virado a primeira por conta de uma fatalidade, além de ter os olhos de todos em si, também tinha os sussurros de assassina.
— Você não deveria andar sozinha por aí. — uma voz masculina chamou sua atenção.
— Por que não? — ela indagou.
— Porque muitos acham que você quem fez isso e podem tentar se vingar, Donna era extremamente querida, apesar de também ser invejada. — ele replicou simplesmente.
O sangue de Alice ferveu e ela olhou furiosa para o rapaz.
— Eu não fiz isso e se alguém tentar algo contra mim, eu os denunciarei à polícia!
Ela virou de costas para o rapaz e saiu andando, percebeu que ele ainda a seguia, mas se manteve calada. Seguia diretamente para a ala feminina, ele não tinha permissão para entrar no dormitório, mas poderia ficar do lado de fora, ela percebeu. Ao virar-se com a intenção de mandar Ethan embora, um corpo magro e ossudo se chocou contra o seu, com força.
— Por que você matou Dominique, hein? Queria tanto assim o papel dela que o único meio foi fazer ela se acidentar?
Alice gelou, todos a acusavam pelas costas, mas ninguém nunca a confrontou dessa forma.
— Eu não, nem mesmo poderia, ou teria como… — ela se atrapalhava com as palavras.
Isso fez com que a aluna desse risada e usasse o dedo longo e a unha comprida para cutucar a garota.
— Volte para o buraco de onde saiu, tudo de r**m aconteceu desde que você chegou.
Ela sentia as lágrimas querendo sair e várias respostas imploradas para ser dadas, mas não conseguia agir ou falar.
— Volte você para o buraco de onde saiu, Rebecca. Alice não fez nada de errado, os policiais estão trabalhando em cima da hipótese de ter sido um acidente. Alguém tirou o colchão e Donna não viu, por isso caiu no chão. Poderia ter sido qualquer um. — sibilou Ethan irado e a garota se encolheu antes de sair dali.
— Você também achou que tivesse sido eu. — ela rebateu.
— Eu estava irritado e cansado e triste, eu disse que os outros a consideravam culpados e não eu. — ele argumentou.
Alice bufou e seguiu para o quarto. Antes que ela entrasse, Ethan a puxou para um abraço.
— Acho que você está precisando disso. — ele sussurrou antes de a soltar e sair andando — Se quiser uma escolta, tem meu número no grupo. Ou se apenas quiser conversar.