Capítulo 3

2796 Palavras
Murilo Sinto como se perdesse as rédeas de tudo, da minha vida, do meu trabalho e do meu relacionamento com a Beca. No dia em que aqueles médicos trataram minha mulher feito lixo eu perdi mais do que minha filha, eu perdi parte da mulher que eu amava e desde então eu não faço ideia do que fazer. Nós não somos mais confidentes, não somos mais amantes e é como terminar de rasgar uma ferida que foi aberta no dia em que a Mel morreu. Eu quis a Beca desde o dia em que a vi, eu não sou como o Davi, e minha história com ela não é como a deles. Eu a quis e fiz de tudo para tê-la, não teve provocação, não fomos como gato e rato, não teve segredos e nem disputas. Quando ela terminou comigo por causa da Emily e do Davi eu pensei seriamente em matar meu amigo, foi enlouquecedor ficar sem ela, sem perceber fiz dela minha vida e nunca tive vergonha em admitir. Na segunda vez que terminamos foi mais complicado, eu tinha sofrido tanto pra nos colocar juntos de novo pra ela depois dizer que não iria para os Estados Unidos comigo o que consequentemente seria o nosso fim. Eu duvidei se ela queria tanto quanto eu, se ela estava disposta a manter essa relação como eu. Eu sou muito mais bobo do que o Davi, por isso namorei muito mais do que ele, eu sempre estava apaixonado e não ligo de ser assim. A Beca veio na hora certa e foi a melhor coisa que me aconteceu, tão cheia de vida e tão apaixonada como eu. A gente se encaixava, o sexo era f**a e eu tinha um p**a orgulho dela, ainda tenho, mas o brilho dela não é mais o mesmo. Perder minha filha foi uma dor excruciante, mas perder a Beca tem sido uma tortura, vê-la escorregando pelos meus dedos, o grande amor da minha vida indo embora e eu sem saber o que fazer. No começo eu tive esperança de que a gente fosse conseguir superar e passar por cima de tudo o que houve, hoje eu já não tenho mais. Toda essa história da Preta só nos fez separar e agora me parece irremediável. Eu tentei apoiar, mas ela só foi ficando cada vez mais obcecada, decidi desistir da ideia de adoção e ela ficou paranoica e distante. Eu quero minha mulher de volta, quero voltar a planejar nosso casamento, quero voltar a acordar com o sorriso dela ao meu lado, a gente tem todos os nossos sonhos pra realizar, é cedo demais pra deixá-los morrer, mas é como se um elefante branco estivesse sempre entre nós dois. Eu a olhava dormir, cozinhar e internamente eu esperava que por dentro ela continuasse a ser a mesma, assim como por fora ela continuava linda. Os olhões verdes que brilhavam muito quando ela sorria, mas agora ela sorria bem menos. - Beca, queria sair pra jantar hoje, só nós dois. – ela arrumava o café como fazia todas as manhãs, se tinha um lugar da casa que ela gostava era a cozinha. - Que dia? – respondeu sem olhar pra mim. - Hoje. - Tudo bem. - Sério? – perguntei desacreditado. - Sério, porque o espanto? - A gente não tem feito muitas coisas ultimamente. - Ultimamente meus dias não têm sido fáceis. – ela era tão rápida na cozinha que eu me perdia só de vê-la. - Pra nenhum de nós. - É, mas você escolheu desistir enquanto eu escolhi lutar. – ela começava de novo com a mesma história. - Beca, a gente já conversou sobre isso. - Mas eu nunca vou entender. – ela parou e olhou pra mim cruzando os braços na frente do seu corpo. - Será que você não vê que eu estou colocando a gente em primeiro lugar? Que essa história só fez nos afastar ainda mais? - Só está nos afastando porque no primeiro obstáculo você desistiu e me taxou de louca por querer continuar. - Beca, nós entramos na lista de adoção, eu quero outro filho com você se for o que você quiser, mas não dá pra ficar dando murro em ponta de faca, não agora, não com você nesse estado. - Tá vendo? Você fala do meu estado como se eu precisasse de psiquiatra. - Você passou por um trauma, todos nós passamos, mas foi no seu corpo que tocaram, eu não espero que tudo tenha sumido da sua cabeça em um piscar de olhos. - Eu não vou desistir da Preta, Murilo. - Eu me apeguei a Preta tanto quanto você, você sabe disso, eu estou disposto a dar tudo que ela precisa e esperar a decisão do juiz, pode ser que ela entre pra lista de adoção e não vou hesitar em trazê-la pra cá, mas você ouvia a assistente social, isso é demorado e difícil, na situação que a gente está não dá pra gente desperdiçar energia com isso. - Você fala como se ela fosse um carro caro que a gente estivesse pensando em comprar, não é uma escolha, eu não posso deixar uma criança de três anos a mercê de um juiz que não sabe o que se passa de verdade com ela, ela precisa de mim. - Você já está me excluindo. – era disso que eu tinha medo, dela criando um mundo sem mim. – A gente vai ruir e se a Preta um dia chegar aqui não vai ter sobrado nada de nós dois. - Você é que se excluiu e me deixou sozinha, mas com ou sem você, Murilo, eu vou cuidar dela. Tenho que ir pra faculdade a Amanda está me esperando lá embaixo. Saiu da cozinha e eu fiquei no mesmo lugar a observando pegar a bolsa e os cadernos, ouvi a porta quando ela bateu e trancou. Beca não sabia, mas eu ia sempre visitar a Preta, eu pedi pra que as assistentes sociais não falassem nada pra ela e Preta tinha me prometido guardar segredo. Quando eu procurei ajuda de uma psicóloga ela recomendou que nos afastássemos um pouco do caso da Preta, porque segundo ela a Beca estava usando a menina como substituta para a nossa filha e isso podia ser extremamente prejudicial. A princípio eu me afastei mesmo, mas eu não menti quando disse que tinha me apegado a garota e acabei voltando a fazer visitas, não disse nada para a Beca porque não queria alimentar a obsessão que ela tinha criado com essa história. Quando cheguei na casa ela já estava na porta me esperando, ela não conhecia os dias da semana ainda, mas sempre sabia os dias que eu viria. - ooooooooi. – ela gritou pulando no meu colo. - Oi, Preta. Tudo bem com você? – falei em meio ao nosso abraço, ela acenou com a cabecinha. - Tava com sodadi. – ela me disse. - Eu também estava. - Tia Beca veio tamém. – ao contrário de mim, Beca não escondia que vinha. - E vocês brincaram? - Aham. - Quer brincar comigo também? – ela acenou e pediu pra descer do meu colo, pegou na minha mão e me levou até uns brinquedos jogados no chão, me botou sentado e se sentou próxima a mim. - Ocê é o papai. – e me entregou uma boneca, um nó se formou na minha garganta, ela nunca poderia imaginar o que esse ato poderia significar pra mim e doeu. Eu entendia o que a Beca dizia sobre o peso dos braços vazios, a gente esperava por um bebê no colo e no fim a gente precisa de um bebê no colo. É dolorido esse vazio. - Tio Mulilo, posso ir na sua casa de novo? Ela já tinha ido outras vezes, antes de eu resolver me afastar, nós a levávamos aos finais de semana pra passar o dia com a gente, ela fez várias coisas pela primeira vez e era mágico ver o brilho das descobertas estampado no olhar dela. - Não sei, florzinha. - Quelo ir no pula-pula de novo! – dizia com um sorriso inocente de orelha a orelha. - Você vai, logo logo tio Murilo dá um jeito de te levar no pula-pula, tudo bem? Ela acenava com a cabeça, tinha aprendido a esperar vivendo nessa casa, me cortava o coração deixá-la aqui, mas não tinha mais nada que eu poderia fazer. Eu levava brinquedos, roupas, comida, tudo que ela precisasse e as outras crianças também, esse era o meu limite. Logo ela iria embora dali viver com o tio, me cortava o coração pensar nisso, mas por outro lado eu queria o bem dela fosse onde fosse.   Amanda   - Mandis, a gente precisa voltar lá. – ela insistia do lado do carona, agora ela ia sempre comigo para a faculdade. - Beca, vamos acabar sendo pegas e isso vai piorar sua situação com o Murilo, com o juiz. - Mas como a gente vai descobrir qualquer coisa desse cara? - Não sei! – eu estava cada vez mais arrastada para o meio dessa história. – E se você contratasse o detetive? - Detetive? – ela pensou por alguns instantes. – Essa ideia é brilhante! Nem eu tinha tanta certeza e depois de sugerir eu me arrependi, disse num impulso de tentar convencê-la a não voltar lá, mas se isso seria melhor ou pior eu ainda não poderia dizer. - Então, a gente vai fazer um trato. - Qual? - Você vai contratar um detetive, se ele não encontrar nada a respeito desse cara você desiste dessa história. - Combinado. – disse sem nem pensar, tinha tanta certeza de que estava certa que sequer questionava. - E tem outra coisa. - Eu aceito também. – disse antes que eu revelasse. - Você vai comigo essa semana na terapia. - Mandis, eu estou bem. - É pegar ou largar. - Tudo bem, eu vou. - Muito bem, vamos encontrar um detetive agora. - Te amo, Amanda Cestari! Vou procurar um hoje ainda e você vai comigo, ouviu? - Como se eu tivesse outra opção. Até o final do dia ela tinha o número do detetive e eu tinha a consulta marcada, se essa troca de favores seria o que me faria ajudar a minha amiga assim seria. Olívia também quis ir, fez questão e lá fomos as três de novo nessa aventura que nem o Davi e nem o Murilo podiam sonhar em descobrir. O escritório ficava em um prédio no centro, nada extravagante, nada de letreiros ou identificação na porta, só o número da sala e um nome, Antônio Prado. Entramos. Nada de secretária ou pessoas esperando, uma campainha e poltronas, Olívia quem apertou o interruptor que produziu um som bem baixo, segundos depois a porta foi aberta e um homem de uns quarenta anos surgiu. - Rebeca Bandoli? - Sou eu. – Beca se manifestou. - Vamos entrar. – fez sinal para que o seguíssemos. Ele sentou na cadeira alta por detrás de uma mesa chique, toda a decoração da sala exalava bom gosto e dinheiro. – Do que vocês precisam? Uma olhou para a outra em silêncio. - Eu é quem preciso de ajuda. – Beca começou. - Com o quê exatamente? - Eu quero adotar uma garotinha, mas ela ainda não pode ser adotada porque tem esse tio... – ela parou. - Você quer que eu investigue o tio. – não era uma pergunta. - É, eu tenho uma intuição de que ele não é a melhor opção pra ficar com a guarda dela, ele sequer foi a visitar! - Você tem qualquer dado dele. - Tenho sim, eu sei onde ele mora. - Muito bem, vou investigar e quando tiver material o suficiente eu entro em contato com você. – ele entregou um bloco para que a Beca anotasse os dados do sujeito. - Obrigada. – ela estendeu a mão para ele que correspondeu. – Eu só preciso que isso seja sigiloso, o meu noivo não sabe que eu estou aqui. – ela parecia constrangida em dizer isso. - Com isso você não precisa se preocupar. - Muito obrigada. – dissemos eu e a Olívia antes de sairmos pela porta. - Até que foi fácil. – Beca suspirava aliviada. - Fácil vai ser a consulta com a psicóloga que já está marcada. – falei. - Mandis, eu estou tão esperançosa que nem eu nem me importo de ir. – me abraçou forte.   Beca   Se a esperança é a última que morre a minha não dava as caras de que morreria jamais. Mas meu sorriso caiu quando vi as ligações perdidas do Murilo no meu celular, eram várias. - Desculpa, eu não ouvi o celular tocar. – eu disse assim que ele atendeu. - Onde você está? Faz meia hora que estou tentando falar com você. – estava nervoso. - Estou com a Mandis e a Vívia, já estou indo para a casa. – já estávamos no trânsito, não era longe. - Quando você chegar a gente conversa. – desligou. - Acho que ele está bravo. - Logo a gente chega em casa e vocês conversam. – Mandis se mantinha sempre otimista. - A gente não tem conseguido conversar muito nesses últimos dias. - Vocês precisam parar logo com essa palhaçada. – Vívia foi enérgica. – Sério, vocês se amam! Beca, não perde o homem da sua vida, por favor! - Vívia, eu estou tentando, mas é coisa demais pra eu lidar agora e o Murilo não me entende, ele escolheu não me entender e ficar contra mim. - Daqui uns anos você vai olhar pra trás e se arrepender de tratar as coisas dessa forma, então pensa direitinho no que vai falar pra ele quando chegar. – Vívia me aconselhou. Cheguei em casa apreensiva, tentava não fazer barulho talvez na intenção de não ser vista entrando e me safar de uma discussão com o Murilo. Mas ele estava sentado e bebendo no balcão, me esperava. - Oi. – eu disse. - A gente ia jantar hoje, você se esqueceu? – p**a merda, eu tinha me esquecido, mas ainda era cedo. - Eu tive um dia corrido hoje, eu vou me arrumar e em dez minutos eu to pronta. - Você se esqueceu, não esqueceu? – insistia. - Murilo, meu dia foi muito cansativo e estressante. - Meses atrás você teria feito uma cerimônia pra se arrumar e sair, muita coisa mudou. - Sim, muita coisa mudou e você sabe bem disso. - A gente tem jeito, Beca? – me assustei com a pergunta dele, com o jeito dele, pela primeira vez eu via o cansaço nele e era um cansaço de mim. - Se eu achasse que não tivesse eu não estaria aqui. - Mas você não está. - Claro que eu estou, eu estou lutando pelo que eu acho melhor para nossas vidas. - Não está! – se exaltou. – Você está lutando pela adoção da Preta, mesmo que isso signifique o nosso fim e você quer tanto essa adoção pra suprir uma necessidade sua, não do nosso relacionamento! - Eu estou lutando pelo que eu acho melhor para aquela garotinha, Murilo, você não pode simplesmente ser indiferente a ela! – me exaltei também. - Nós não podemos salvar todas as crianças do mundo, Beca, você está fazendo isso por você, não por ela. - E se for? Qual o problema? Por que você tanto critica uma intenção que talvez venha curar parte das minhas feridas? - Porque você está cega, porque você está nesse busca implacável de se curar e não consegue olhar pra gente, não consegue olhar pra mim. Eu perdi uma filha também! - E AGE COMO SE TUDO ESTIVESSE NUMA BOA! – eu nunca havia dito isso, mas era como eu me sentia, como se não doesse nele do jeito que doía em mim. - Eu me culpo todos os dias por não ter estado aqui com você, por não ter te protegido naquele dia, mesmo não sendo minha culpa eu me culpo. Você não pode nunca me acusar de não estar sofrendo. Eu sei que minha filha morreu e eu não vou sair por aí procurando outra pra pôr no lugar dela! - Pois eu vou cuidar da Preta com ou sem você do meu lado. - É disso que eu estou falando, você não está mais aqui, não nesse relacionamento. Minha viagem pra Nova York estava marcada pra daqui a dois dias, mas vou adiantá-la pra amanhã. – ele se levantou e foi até o quarto, eu fiquei onde eu estava, as lágrimas escorrendo pelo meu rosto. – ele voltou com uma mochila. – Amanhã eu arrumo minha mala. - Pra onde você vai? - Pensar. – e bateu a porta.
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