Sombras

1352 Palavras
A calmaria do morro foi quebrada uma madrugada fria, quando um grupo rival decidiu invadir. Os rumores haviam corrido antes: os homens do morro vizinho estavam invadindo pontos estratégicos para desestabilizar o poder da comunidade. Zé Preto, sempre alerta, reuniu alguns dos seus vapores mais confiáveis para proteger as entradas e impedir a tomada do território. Entre eles, Matheuzinho estava na linha de frente, com seus olhos afiados e postura confiante. Elias, mais atrás, observava tudo em silêncio, como sempre fazia. A invasão foi rápida, mas violenta. Como o grupo rival era mais numeroso, os primeiros ataques começaram a surgir de dentro das vielas. Zé Preto comandava com sua voz forte, tentando organizar a defesa, mas a pressão estava tomando conta do ambiente. Em meio ao caos, um dos rivais surpreendeu Zé Preto por trás e desceu a faca em direção ao seu corpo, mais rápido do que os seguranças conseguiram perceber. — Zé Preto! — Matheuzinho gritou, correndo pela viela, sua mente funcionando em modo automático. Antes que Zé Preto caísse, Matheuzinho fez uma manobra calculada, saltando na direção do líder do grupo rival e derrubando-o com um soco que fez o homem perder o equilíbrio. Com uma lâmina que tirou de dentro da jaqueta, Matheuzinho foi direto no inimigo, sem hesitar. Uma rápida lâmina e o homem estava fora de combate. Mas a luta não parou aí. Quando Matheuzinho conseguiu virar Zé Preto para ajudá-lo, viu que o velho chefe estava sangrando pesadamente. Com um olhar firme, Matheuzinho fez sinal para os outros vapores entrarem na jogada e continuaram o confronto contra os invasores. O grupo rival cedeu terreno, mas não sem uma luta imensa. Matheuzinho olhou para Zé Preto, que ainda estava consciente, mas com a respiração ofegante. Ele pegou um pedaço de pano e pressionou contra a ferida do chefe. — Aguenta firme, chefe. Eu vou cuidar de você. Não vai morrer agora — Matheuzinho disse, com uma frieza nas palavras. Zé Preto olhou nos olhos de Matheuzinho e, entre um fio de sangue e uma dor lancinante, sorriu. — Eu sabia que você era o cara para isso. Valeu, Matheuzinho… Na manhã seguinte, depois do confronto, o morro se recompôs, mas uma coisa era certa: Matheuzinho havia dado um salto gigantesco na hierarquia, mas a posição não veio sem suas consequências. Zé Preto, com as costelas machucadas e um braço quebrado, precisava de um braço direito, alguém de confiança, alguém que entendesse o perigo das ruas e a oportunidade de expandir o poder. Quando Zé Preto olhou para o morro e viu Matheuzinho, soube que seu "braço direito" estava diante dele. — Matheuzinho, você merece isso. Fui eu quem te treinei, mas agora você tem que entender, o que vem agora não é só sobre amizade. É sobre negócios. E você já tem a mente afiada pra isso. — Zé Preto disse, enquanto Matheuzinho ajudava a mantê-lo confortável, com um cobertor por cima. O olhar de Matheuzinho era intenso. Não havia alegria ou vanglória em sua expressão, apenas determinação. Ele sempre soubera que a chance de ganhar o respeito de Zé Preto viria com sangue e sacrifício, mas aquilo não ia ser o fim. — Eu sei o que você quer de mim, Zé Preto. E vou dar. Mas agora você vai entender quem comanda aqui. — Matheuzinho disse, e havia uma frieza em suas palavras que ninguém, nem mesmo Elias, esperava ouvir. Elias, observando de longe, sentiu uma pontada no peito. Era ele quem sempre acreditara que estaria ao lado de Matheuzinho em algum momento, mas ali, agora, se via afastado, como sempre havia estado. A união com Zé Preto agora parecia a chave para o futuro de Matheuzinho. O garoto que tinha sonhado junto a ele, na infância, com as ruas do morro, agora seguia um caminho que Elias não poderia mais acompanhar. À medida que os dias passavam e o respeito a Matheuzinho aumentava, Elias começou a sentir o peso da sombra da inveja mais profundamente. Zé Preto não o convidou para fazer parte do novo esquadrão, não pediu sua ajuda para tomar decisões importantes no morro. Elias sentia que a distância entre ele e Matheuzinho aumentava a cada passo, e era como se tudo o que ele fizera até ali não tivesse importância nenhuma comparado ao novo nome que Matheuzinho estava construindo. Numa das poucas vezes que se encontraram em um canto afastado do morro, Elias finalmente falou o que estava preso há semanas. — Isso não está certo, Matheuzinho. Eu deveria estar com você nessa. Deveria ser eu a entrar pro jogo grande. Eu também fiz o que você fez. Lutei ao seu lado, ajudei, dei a cara a tapa. E você? Você recebeu toda a moral, todo o destaque. Onde foi que ficou minha parte nessa história, hein? Matheuzinho olhou para Elias por um momento antes de responder. Sua expressão era desconfortável, mas firmemente decidida. — Se você quer ter o poder, Elias, vai ter que pegar ele com a mão. Ninguém te vai dar nada. Quando você entender isso, a gente vai conversar. Até lá, me dá espaço para fazer o que é preciso ser feito. E não me venha com drama de amizade agora, porque isso aqui é guerra. Elias não falou mais nada. Mas aquilo cortou profundamente. Ele sabia que o lugar ao lado de Matheuzinho não era mais garantido, e o que restava para ele agora era um caminho solitário ou a traição do próprio amigo para tomar o que sentia ser seu. A guerra no morro estava começando de verdade. O tempo passou, e Matheuzinho se estabeleceu com autoridade cada vez maior. Seu nome agora não era mais Matheuzinho, mas Matheus — um líder jovem, calculista e imbatível. Ele controlava as rotas de droga, fazia alianças e mantinha sua base de poder sólida. A confiança de Zé Preto em Matheus cresceu mais a cada dia, e logo ele se tornou seu braço direito definitivo. Enquanto isso, Elias observava, encurralado pela própria inveja, assistindo a crescente ascensão do amigo que parecia distante e insensível às suas emoções. Elias começou a se afastar. Ele se mantinha em segundo plano, cumprindo suas tarefas, mas sentindo que o respeito e o poder que Matheus conquistava passavam ao seu lado, deixando-o para trás. A cada decisão importante, Zé Preto chamava Matheus para conversar, e a cada pedido de Matheus para uma execução, Elias se via relegado a papéis menores. Certa noite, Zé Preto organizou uma reunião de líderes, onde Matheus foi chamado a se expressar como novo "capo do morro". As palavras de Matheus ecoaram como um comando. Ele dizia tudo o que a comunidade precisava ouvir: "O morro vai crescer, e quem não se alinhar ficará para trás. Vamos controlar a cidade inteira." Sua confiança era inegável. A segurança do território estava garantida com ele no comando. Elias não pôde mais aguentar. Naquela reunião, ele deixou de tentar esconder o que sentia. O embrião de traição, pequeno e silencioso até então, agora crescia de forma incontrolável dentro dele. Tudo o que Matheus tinha conquistado parecia ter sido tirado de suas mãos. De repente, a doce sensação de amizade com o amigo de infância foi substituída pela amargura de quem se sente descartado. “Eu mereço o meu lugar. Só não posso esperar mais,” pensava Elias. Ele passava os dias em um turbilhão emocional e, em segredo, fez contatos com facções rivais. Trair Matheus não seria fácil, mas a pressão crescente em sua alma o tornava cada vez mais decidido. Ele sabia que precisava dar o primeiro golpe, antes que o amigo o deixasse para trás completamente. Enquanto isso, Matheus estava tranquilo em sua nova posição. Seus dias eram tomados por decisões pesadas, estratégias arriscadas e reuniões com seus subordinados, mas seus pensamentos continuavam fixos no controle do morro. Ele jamais imaginava que uma ameaça tão próxima poderia existir dentro de seus próprios círculos. A confiança dele, como sempre, era inabalável. Porém, aquela noite, algo no ar mudou. A cena parecia calma, mas havia uma sensação de que o morro estava prestes a tremer de novo, e Matheus não percebia.
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