Decisões

1157 Palavras
Zé Preto passava mais tempo em sua casa, cercado por poucos de confiança, debilitado pela saúde frágil que insistia em piorar. A responsabilidade de comandar o morro recaía sobre os ombros de Matheus, agora uma figura incontestável para a comunidade. Decisões precisavam ser tomadas diariamente: novos contatos com fornecedores, expansão de territórios e segurança contra facções rivais. Matheus assumia tudo com a firmeza de quem parecia nascido para isso. As ruas que antes eram apenas um campo de batalhas e fuga agora refletiam ordem e prosperidade para quem estava sob suas regras. Os moradores respeitavam Matheus como uma figura quase paternal, especialmente os mais jovens. “Matheuzinho, cê é o futuro!” — diziam os muleques no campinho de futebol improvisado enquanto ele passava. Matheus nunca dava muita atenção, mas internamente sentia a força daquele respeito que crescia com o tempo. Mas alguém não compartilhava esse entusiasmo: Elias. Elias era seu amigo mais antigo, mas a sensação de ser ofuscado a cada passo de Matheus era como um golpe lento. Ele percebia como os olhares voltados a Matheus eram de admiração genuína, enquanto os que recebia eram de respeito distante. Para ele, aquilo era injusto. Ele estava lá desde o começo, arriscando a vida, tomando decisões, mas ainda assim, sentia-se como uma sombra de Matheus. Certa tarde, enquanto estavam no escritório improvisado na laje da casa de Zé Preto, Elias soltou: — Sabe, mano... esses moleques aí só te respeitam porque você fala grosso e faz o que tem que ser feito. Só quero ver se vão continuar quando der r**m. Matheus não desviou o olhar da pilha de papéis sobre a mesa. — Não é só sobre falar grosso, Elias. É sobre mostrar que você é capaz. Eu confio neles, porque eles confiam em mim. E isso você não compra. Aquilo acertou Elias em cheio. O tom prático e direto de Matheus soava como um tapa na cara. Elias conteve a raiva. Preferiu mudar de assunto, mas uma parte dele registrou aquela frase como mais uma faísca em sua crescente insatisfação. Enquanto isso, Zé Preto observava tudo de longe. Ele sabia que Matheus era a escolha óbvia para assumir o comando, mas tinha consciência de que a ambição muitas vezes levava a desentendimentos. Ele notava a rivalidade silenciosa entre os dois, embora nenhum admitisse. — Esses muleques podem acabar se matando — comentou ele com Silas, um dos seguranças mais próximos. — Quer que eu intervenha, chefe? Zé Preto fez um sinal negativo com a cabeça. — Não. Eles precisam resolver isso sozinhos. O morro depende disso. Mais tarde naquela noite, Elias se aproximou de Matheus enquanto ele revisava um novo carregamento. — Tá pensando em levar pra favela lá do outro lado, né? — Elias perguntou. — Tô — respondeu Matheus. — É um território promissor. Mas, claro, perigoso. Elias fez questão de rir com desdém. — Cê tem certeza disso? Tá crescendo rápido demais. Uma hora você cai. Matheus levantou os olhos para ele, com um sorriso controlado no rosto. — Se a gente não crescer, eles comem a gente, Elias. O Zé me ensinou isso. O morro precisa disso. Elias forçou um sorriso, mas aquela sensação incômoda voltou. Ele sabia que Matheus estava certo, mas odiava a naturalidade com que ele dominava a situação, como se fosse predestinado a estar onde estava. “Ele acha que é melhor que todo mundo...” Elias pensou, engolindo a vontade de confrontar o amigo ali mesmo. O embrião da traição estava crescendo, e cada dia que passava era uma contagem regressiva para que algo maior explodisse entre eles. Os dias seguiam num ritmo intenso para Matheus. Seu nome, "Matheuzinho", ecoava mais alto no morro a cada movimentação bem-sucedida. Mas, na mesma proporção em que ele crescia, a amargura de Elias também aumentava. Elias não era cego ao que acontecia. Ele via como as pessoas ao redor não apenas seguiam Matheus, mas também o idolatravam. Para ele, era como se o morro inteiro estivesse se esquecendo de quem ele era, de quanto sangue já derramou ao lado de Zé Preto, para que hoje Matheus pudesse andar de cabeça erguida. Naquela semana, Matheus tomou uma decisão importante sem consultá-lo. Seria negociado um carregamento diretamente com os fornecedores do porto, uma jogada arriscada, mas que poderia expandir a influência deles para fora do morro. Elias não gostou de ser deixado de fora da conversa. — Tá tudo certo pro carregamento? — Elias perguntou enquanto bebia uma cerveja no bar. Matheus, que estava encostado no balcão, olhou de lado. — Tá sim. É com o Luciano. — E você me avisou quando? — Elias arqueou as sobrancelhas. O tom parecia brincadeira, mas tinha amargura implícita. — Nem tudo precisa passar por você, Elias. Eu sei o que tô fazendo — Matheus respondeu, calmo, mas firme. A troca foi breve, mas para Elias, foi mais um golpe no ego. Não era a primeira vez que Matheus tomava as rédeas sem consultá-lo, e ele sentia cada vez mais como se fosse apenas mais um na cadeia de comando. Numa manhã, Elias foi até Zé Preto. O antigo chefe do morro estava em sua cadeira na varanda, observando o movimento dos becos lá embaixo. — O Matheus tá indo longe demais — Elias começou. — Tá agindo como se fosse o dono do morro. Zé Preto deu uma risada rouca. — E não é? Ele tá carregando tudo nas costas agora, Elias. Eu tô no fim da linha. Aquilo doeu em Elias mais do que ele esperava. — Você vai deixar ele decidir tudo sozinho? Tá esquecendo de quem sempre esteve com você? Zé Preto o encarou com um olhar cansado, mas cheio de sabedoria. — Matheus não tá esquecendo de ninguém. Cê tá é com medo de que ele te deixe pra trás. Só não deixa essa inveja te fazer tomar uma decisão errada, moleque. Elias não respondeu. Apenas saiu sem olhar para trás. A verdade nos conselhos de Zé Preto era amarga, mas ele ainda não estava pronto para aceitá-la. Naquela noite, a negociação no porto aconteceu. Matheus trouxe resultados ainda maiores do que o esperado, consolidando ainda mais sua posição. — Matheuzinho, cê salvou a quebrada, irmão! — um dos vapores falou, estendendo uma garrafa de whisky enquanto a festa acontecia na laje. Matheus apenas sorriu e brindou, mantendo sua postura firme mesmo diante das celebrações. Do outro lado, Elias observava de longe, com uma garrafa na mão. Ele via a cena como uma coroação — mas uma em que ele não tinha lugar de destaque. Em vez disso, tudo era sobre Matheus. Os vapores o admiravam, os moradores sorriam pra ele, os chefes do outro lado o respeitavam. Naquele momento, Elias sabia que não era só desconforto ou ciúme. Era raiva. A decisão se formou em sua mente como um veneno lento, mas inevitável: Se Matheus era a estrela, então ele seria aquele que faria a luz dele apagar.
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