O tempo parecia mais lento desde a tarde na galeria. Como se o mundo ao redor tivesse diminuído o volume, mas deixado tudo mais nítido. O céu nublado da segunda-feira arrastava nuvens pesadas, mas Atena Montez não se importava com o clima. A tempestade verdadeira morava dentro dela.
O nome dele vinha à cabeça como uma cicatriz sendo tocada com delicadeza.
Noah.
O garoto da boate. O homem da galeria.
O olhar que atravessou sua pele e viu o que ninguém via.
E isso era perigoso.
Atena sempre tivera medo do que os olhos dos outros poderiam fazer — mas agora, temia ainda mais o que poderia sentir ao ser vista de verdade.
Sentada na cafeteria próxima ao campus, com um café morno entre as mãos, ela desenhava num guardanapo. Rabiscos sem foco, mas carregados de sentimento. Uma sombra, um perfil. Era ele. Claro que era.
Fechou o caderno bruscamente. Tinha que esquecer.
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Enquanto isso, Noah fazia anotações frenéticas no laboratório. A aula sobre reações orgânicas passava como um zumbido nos ouvidos. Seu cérebro queria colaborar. Mas o coração tinha outros planos.
Ele havia dito que não a procuraria.
Havia prometido a si mesmo respeitar o espaço dela. Mas o universo parecia rir da sua promessa.
Porque naquela noite, o destino voltaria a cruzar seus caminhos.
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Atena estava no vestiário da boate quando seu celular vibrou.
📲 Mensagem de número desconhecido:
“Hoje à noite. Conversa pendente. Não se atrase.”
O corpo dela congelou. O número era antigo. Um que ela não via há quase um ano.
Leonardo.
Ex-cliente. Obsessivo. Rico. Perigoso.
Ele não aceitava ser ignorado. Já havia tentado invadir o camarim uma vez. Foi contido pelos seguranças. Depois sumiu. Mas agora... voltou.
Atena respirou fundo. Tremeu. E sentiu o medo antigo apertar o peito.
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Enquanto isso, Noah caminhava pelas ruas próximas à boate, sem um destino exato. Apenas... andando. E de repente, viu.
Ela.
Atena, parada diante do letreiro, como se reunisse coragem para entrar.
Ela não o viu de imediato. Mas quando sentiu seu olhar, virou-se.
E os olhos se encontraram de novo.
— Você me seguiu? — a voz dela saiu dura. Mas não era raiva. Era autoproteção.
— Não. Eu só estava... andando. Pensando. — Ele hesitou. — Em você.
Atena mordeu o lábio inferior. Seus olhos denunciaram o caos interno.
— Eu não posso... — começou, mas a voz falhou.
— Só quero conversar. Te ouvir. Só isso. — Noah deu um passo, sem se aproximar demais. — Me diz por que você parece tão assustada.
Ela olhou para os lados. Estavam sozinhos.
— Porque você não sabe no que está se metendo.
— Então me explica.
Atena respirou fundo, como se mergulhasse antes de dizer:
— Tem pessoas que não aceitam não como resposta. Homens. Poderosos. Com dinheiro. Que pensam que podem comprar tudo. Até mim.
Noah sentiu o estômago revirar.
— Alguém te ameaçou?
Ela assentiu levemente.
— E ainda assim você vai entrar aí?
— Eu não tenho escolha.
Ele se aproximou um pouco mais, a voz baixa, firme:
— Tem sim. Você sempre tem. Só precisa de alguém do seu lado. Eu posso...
— Não, Noah. — Ela o interrompeu. — Eu não sou sua responsabilidade. Nem um projeto de resgate. Não tente me salvar. Eu já me afoguei faz tempo.
O silêncio caiu entre eles.
Mas havia uma dor comum ali. Uma ponte invisível.
— Então só me deixa estar aqui. Por perto. — ele disse, finalmente.
Ela hesitou. E assentiu. Sem sorrir. Mas sem negar.
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Dentro da boate, os olhos de Leonardo já a esperavam. Ele estava sentado na mesa VIP, com um copo de uísque caro nas mãos. O sorriso dele era um aviso. E um jogo.
— Você está linda esta noite, Atena — disse, quando ela se aproximou do palco.
Ela não respondeu. Dançou.
Mas pela primeira vez, seu corpo tremia.
E Noah assistia, do canto da sala, sem saber do perigo que estava diante deles.
Atena dançava, mas os pés estavam pesados.
Cada movimento, antes fluido e instintivo, agora era uma luta contra o próprio corpo. A presença de Leonardo na mesa VIP era como veneno no ar. Seu olhar a queimava, e não da forma que os outros homens faziam — ele não desejava. Ele possuía.
Ou achava que possuía.
A música lenta preenchia o salão, uma batida grave e sensual. Mas tudo nela agora parecia frio. Automático.
O palco não era mais seu refúgio. Era uma jaula.
Ela girou, levantando os braços com leveza ensaiada, e olhou brevemente para a plateia. E ali, no canto mais discreto, Noah estava. De pé. Imóvel. Os olhos fixos nela com o mesmo cuidado da primeira vez.
Ele a via. E isso bastava para ela não desmoronar.
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Do outro lado da sala, Leonardo bebia lentamente. Um sorriso torto se formava nos lábios. Ele também viu Noah.
— Curioso — murmurou para o segurança ao lado. — Temos um novo admirador da nossa dama.
O segurança apenas assentiu, sem desviar os olhos de Atena.
Leonardo passou o dedo pelo copo como quem decide um plano.
— Descubra quem ele é. Hoje.
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Quando o número da apresentação terminou, Atena deixou o palco com passos duros. Ela não olhou para lado algum. Foi direto ao camarim. E lá dentro, soltou a respiração como quem tirava um peso das costas. Mas o alívio durou pouco. A porta se abriu sem aviso.
— Desculpa. Eu... — Noah.
Ela gelou. Mas não gritou. Só fechou o robe sobre o corpo e cruzou os braços, firme.
— Como você entrou aqui?
— O segurança não me parou. Acho que achou que eu era alguém importante.
Ela bufou, sem paciência.
— Você tem que sair. Agora.
— Eu vi o jeito que aquele cara te olha. Ele te conhece, não é?
Atena hesitou.
— Você não deveria estar envolvido nisso.
— Mas estou.
O silêncio caiu entre eles como uma tempestade contida. E então, como se não pudesse mais segurar, ela falou:
— Há dois anos, meu pai perdeu tudo em um esquema de investimento fraudulento. Dívidas. Processos. E ele... ele adoeceu. Muito. Eu tentei de tudo. Mas não era suficiente. Então... Leonardo apareceu. Prometendo ajuda. Em troca de “companhia”. Eu recusei. Ele ficou obcecado. Me perseguiu. Me fez ser demitida de três empregos. Então... a boate me acolheu. Me protegeram. Me esconderam. E colocaram essa maldita regra: "intocável". Mas ele sempre volta. Sempre acha um jeito.
Noah ouviu tudo sem interromper. O coração dele apertava a cada palavra. Mas não era piedade — era raiva.
— E você vai continuar dançando pra ele?
— Eu não danço pra ele. Eu danço pra sobreviver.
Noah respirou fundo. Sabia que não podia forçá-la. Mas também sabia que agora havia algo que os ligava. Um elo invisível, formado não pelo desejo, mas pela dor dividida.
— Me deixa ajudar.
— Não posso. Você tem uma vida normal. Uma família, amigos. Um futuro. Eu sou só...
— Não. Você não é “só” nada. Você é Atena.
Ela fechou os olhos. Quase deixou uma lágrima escapar. Mas não. Ainda não.
— Vai embora, Noah.
E ele foi. Mas não porque desistiu.
Porque respeitava.
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Horas depois, já em casa, Atena deitou-se com os olhos abertos. A madrugada estava silenciosa, e o relógio marcava 03:11.
Ela não conseguia dormir.
Os fantasmas não deixavam.
A dança, Leonardo, a galeria, Noah…
Ela tocou o próprio peito, onde o coração batia acelerado.
> E se eu quisesse outra vida?
E se ele fosse o começo de algo novo?
Mas o medo era maior.
> E se tudo isso for só mais uma ilusão?
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Na manhã seguinte, Noah recebeu uma mensagem anônima.
📲 “Fique longe da Dama. Ou vai se arrepender.”
Ele encarou a tela por longos segundos. Depois, bloqueou o número.
Mas o recado estava claro.
E o jogo... tinha começado.
O sol de fim de tarde projetava sombras longas pelas calçadas de paralelepípedos do centro. Atena caminhava com passos apressados, tentando não parecer tensa, mas cada músculo do seu corpo vibrava com o mesmo alerta: estão me seguindo.
Desde que saíra da aula, sentia a presença atrás de si. Passos pesados. Intervalos curtos. Ela conhecia esse padrão. Já tinha vivido isso antes.
Acelerou. Virou à esquerda, depois à direita, fingindo estar distraída, como quem olha vitrines. Mas ele seguia. Silencioso como uma sombra suja.
Quando dobrou a esquina da travessa mais isolada, a mão veio com força, puxando-a contra a parede de um beco.
— Acha que pode brincar de se esconder, Atena? — sussurrou a voz fria de Leonardo.
Ela tentou se soltar, mas ele a segurava com firmeza, os dedos cravados no braço dela.
— Me solta!
— Você sumiu. Você dançou pra mim como uma deusa, e depois me ignora? Me deve mais do que imagina.
— Eu não te devo nada! — ela rosnou, lutando para manter a voz firme.
Leonardo se aproximou ainda mais. O hálito dele tinha cheiro de uísque e podre.
— Vai sair com aquele moleque da faculdade agora, é isso? Acha que ele vai aguentar saber a mulher que você é? A mulher que dança pra homens todas as noites?
O coração dela disparava. Mas não era de medo. Era de ódio.
— Você não manda em mim, Leonardo. Acabou.
Ele riu, curto, frio.
— Não, querida. Começou. E se eu cair, você cai comigo. Quer que seu reitor saiba onde você trabalha de verdade? Quer que seu pai descubra quem é o anjo da guarda dele?
Atena ficou em silêncio, os olhos arregalados.
Ele sabia.
Sabia do pai. Da faculdade. Do lugar onde ela ainda tentava manter uma vida normal.
— Deixa a sua fantasia com aquele estudante bonzinho. Mas lembra: eu tô em todo lugar. E eu espero. Sempre volto. — Ele passou os dedos pelo rosto dela, como se marcasse território. — Intocável? Até quando?
Ela deu um t**a seco no rosto dele. Ele riu. E então a soltou, sumindo na escuridão com passos calmos, como se não tivesse acabado de declarar guerra.
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Atena encostou-se na parede, respirando com dificuldade. As mãos tremiam. O rosto ardia. O medo estava de volta — não só dele, mas do que viria depois. Ele não estava blefando. Leonardo era perigoso porque tinha poder. E agora estava disposto a usá-lo.
Seu instinto dizia que correr não seria suficiente.
Ela precisava agir.
Mas... estava sozinha?
Não. Não totalmente.
> Noah.
Ele tinha visto nela algo que ninguém via. Talvez... ele visse também uma saída.
Mas será que envolvê-lo não seria o mesmo que destruí-lo?
Ela deslizou pelas paredes do beco até sentar-se no chão, exausta.
Pela primeira vez, ela teve vontade de chorar.
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Enquanto isso, Noah lia e relia a mensagem anônima que recebera. Os olhos corriam as palavras ameaçadoras, e algo dentro dele se acendia. Um instinto protetor. Não era só sobre ela agora. Era sobre fazer a coisa certa. Ele sabia que ela estava em perigo. E não ficaria de braços cruzados.
Ligou o celular. Procurou o contato que jurou não usar.
Camila. A colega de aula de Atena.
Era um risco. Mas ele precisava saber onde ela estava.
— Oi. Desculpa te incomodar, mas... você viu a Atena hoje?
A pausa do outro lado foi curta.
— Ela saiu da aula mais cedo. Parecia tensa. Por quê?
— Nada. Só... tô preocupado.
— Noah... se você estiver envolvido com ela... toma cuidado. Ela tem inimigos demais.
Ele encerrou a ligação com o coração mais pesado do que nunca.
E sabia que, a partir daquela noite, não havia mais volta.