đŸŸ„ CapĂ­tulo 3 – Entre Sombras e RefĂșgios

1900 Palavras
O apartamento de Atena era pequeno. Um estĂșdio abafado, com mĂłveis simples e livros empilhados no chĂŁo. Um cavalete no canto, com uma pintura inacabada — uma mulher de costas, dançando entre chamas. O vermelho ainda predominava. Ela chegou em casa com os dedos trĂȘmulos. O capuz cobria os cachos despenteados e os olhos ainda marejados pelo encontro com Leonardo. Trancou a porta com duas voltas de chave e empurrou uma cadeira para reforçar. Velho hĂĄbito. Na cozinha, o micro-ondas piscava 00:00. O silĂȘncio era quase c***l. Sentou-se no chĂŁo da sala, encostada Ă  parede. Abraçou os prĂłprios joelhos. Chorou sem fazer barulho — como sempre fazia. LĂĄgrimas silenciosas que caĂ­am nĂŁo apenas pelo medo, mas pela sensação de impotĂȘncia. > Por que tudo volta? Por que mesmo depois de tanto lutar, ainda sou aquela menina quebrada que dançava pra sobreviver? Na tela do celular, o nome de Noah estava ali, no histĂłrico. Ela queria ligar. Mas ainda nĂŁo sabia como pedir ajuda sem sentir que estava fracassando. --- Noah, por outro lado, nĂŁo conseguia dormir. Ele andava de um lado para o outro no quarto, o celular ainda na mĂŁo. Tinha enviado uma mensagem para ela horas atrĂĄs, e nada. Nenhuma resposta. Nenhuma notificação. > “VocĂȘ tĂĄ bem? Me diz que sim.” Mas o silĂȘncio respondia mais do que qualquer palavra. Ele sabia. Algo tinha acontecido. E nĂŁo sabia se ela estava segura. Por fim, vestiu o casaco, pegou a chave da moto e saiu. NĂŁo podia ficar parado. --- Do lado de fora do prĂ©dio, Noah observou as janelas. Ele nĂŁo sabia exatamente onde ela morava, mas lembrava da vez em que a seguiu de longe, por pura preocupação, atĂ© vĂȘ-la entrar por aquela mesma rua. Era um gesto impulsivo. Mas o coração dele dizia que ela precisava dele agora. Depois de alguns minutos de espera, uma janela acendeu no segundo andar. Luz fraca. Ele apostou. --- A campainha tocou. Atena sobressaltou. O corpo reagiu por reflexo — como quem espera o pior. Aproximou-se da porta em silĂȘncio. Olhou pelo olho mĂĄgico. Era Noah. Ela nĂŁo sabia se queria deixĂĄ-lo entrar. Mas tambĂ©m nĂŁo queria mais estar sozinha. Destrancou devagar. A porta se abriu. — VocĂȘ... como...? — Me desculpa. Eu precisava ver vocĂȘ. Ela nĂŁo respondeu. SĂł abriu espaço para ele entrar. E fechou a porta. Noah entrou como se pisasse em territĂłrio sagrado. O silĂȘncio entre eles era denso, mas nĂŁo desconfortĂĄvel. Era sĂł... dolorido. — VocĂȘ estĂĄ machucada? — ele perguntou, com cuidado. Ela negou com a cabeça. Mas os olhos diziam outra coisa. — Ele te encostou? Atena desviou o olhar. — NĂŁo como queria. Ele cerrou os punhos. Mas nĂŁo falou. Apenas respirou fundo, tentando controlar a raiva. Ela caminhou atĂ© o sofĂĄ e sentou-se devagar. Ele se sentou ao lado, mantendo certa distĂąncia. — Eu nĂŁo sei por que deixei vocĂȘ entrar — ela disse, sem encarĂĄ-lo. — Talvez porque vocĂȘ precise saber que nĂŁo estĂĄ sozinha. Atena virou o rosto lentamente, os olhos vermelhos. — E se eu quebrar vocĂȘ tambĂ©m? — Eu sou mais forte do que pareço. — E se me odeiar quando descobrir tudo? — SĂł me conta quando estiver pronta. E mesmo se for difĂ­cil... eu nĂŁo vou embora. O silĂȘncio entre eles se preencheu de algo diferente. NĂŁo era romance. NĂŁo era paixĂŁo. Era algo mais raro: confiança nascente. Ela encostou a cabeça no ombro dele. Pela primeira vez, permitiu-se relaxar. As defesas começaram a cair. E Noah, imĂłvel, deixou o tempo parar ali. NĂŁo havia beijo. NĂŁo havia toque alĂ©m do necessĂĄrio. Mas havia um começo. O silĂȘncio ainda reinava na sala de Atena, mas era um silĂȘncio diferente agora. NĂŁo mais pesado e sufocante, mas delicado, como uma pausa entre duas notas tristes. Ela permanecia com a cabeça encostada no ombro de Noah. Os olhos fechados. O corpo tenso aos poucos cedia, como se aquela presença fosse um cobertor sobre uma ferida aberta. — VocĂȘ vai ficar calado o tempo todo? — murmurou ela, sem se mover. — SĂł se vocĂȘ quiser — ele respondeu, suave. Ela sorriu de leve. Pela primeira vez em dias. Ainda triste, mas sincero. — A Ășltima vez que alguĂ©m ficou comigo depois que eu chorei... foi minha mĂŁe. Antes de morrer. Noah virou o rosto em direção a ela, sem saber se devia falar. Mas seu instinto o guiava. — VocĂȘ quer me contar sobre ela? Atena ficou em silĂȘncio por um tempo. E depois, respondeu: — Ela era professora de piano. Forte. Elegante. Sempre me dizia que a arte era a Ășnica forma de sobreviver ao mundo sem se tornar como ele. — Ela fez uma pausa, engolindo a emoção. — Morreu quando eu tinha dezesseis. CĂąncer. Foi rĂĄpido. Fez a dor parecer um vendaval. E depois... sĂł ficou o eco. Noah apertou levemente os dedos dela, que estavam sobre o colo. NĂŁo disse nada. SĂł ficou ali. Presente. — Meu pai... tentou segurar as pontas. Mas era um homem de sonhos fĂĄceis. Um negĂłcio r**m aqui, um investimento errado ali... e a gente perdeu tudo. E eu perdi ele. NĂŁo fisicamente. Mas o homem que ele era sumiu. Hoje vive numa casa de repouso com a mente perdida entre passado e presente. — Ela engoliu seco. — Eu sĂł queria cuidar dele. Pagar o tratamento. E entĂŁo... a boate. Leonardo. A promessa de dinheiro fĂĄcil. A prisĂŁo invisĂ­vel. Noah sentiu o peito arder. NĂŁo de pena — mas de impotĂȘncia. Ele queria arrancĂĄ-la daquele mundo. Mostrar que existia um depois. Mas sabia que ela era feita de muralhas. E isso exigia paciĂȘncia. — VocĂȘ nĂŁo Ă© o que aconteceu com vocĂȘ — ele disse, firme. — VocĂȘ Ă© o que sobreviveu apesar disso. Atena olhou para ele. Um olhar demorado, cheio de rachaduras, mas tambĂ©m de esperança. — Por que vocĂȘ estĂĄ aqui, Noah? Ele sorriu, como se a resposta fosse mais simples do que ela imaginava. — Porque eu nĂŁo consegui esquecer o que vi quando vocĂȘ dançou. Ela riu, baixo. — A maioria diz isso. E depois some quando descobre o que tem por trĂĄs. — Eu nĂŁo sou a maioria. — EntĂŁo... me prova. Noah nĂŁo a beijou. NĂŁo a tocou. Apenas tirou devagar o casaco e o colocou sobre os ombros dela. — Eu nĂŁo estou aqui pra te possuir, Atena. Estou aqui pra te lembrar que vocĂȘ ainda Ă© livre por dentro. Mesmo que o mundo tente te convencer do contrĂĄrio. Ela mordeu o lĂĄbio, os olhos marejando de novo. E, dessa vez, nĂŁo lutou contra isso. — VocĂȘ vai se machucar se ficar perto demais de mim. — Talvez. Mas vocĂȘ tambĂ©m pode se curar, se deixar alguĂ©m ficar. --- Noah passou a noite no sofĂĄ. Atena dormiu no colchĂŁo, leve como hĂĄ tempos nĂŁo sentia. Pela primeira vez em muito tempo, nĂŁo teve pesadelos. Mas enquanto dormia, do lado de fora, Leonardo observava de dentro do carro estacionado a poucos metros dali. Os olhos frios fixos na janela iluminada. Ele sorriu. O jogo ainda estava em suas mĂŁos. > VocĂȘ quer brincar de amar, Dama? EntĂŁo vamos ver atĂ© onde vai esse seu novo herĂłi. Na manhĂŁ seguinte, a luz invadia o apartamento de Atena com suavidade. Ela acordou antes do alarme, com os olhos ainda pesados, mas o corpo levemente mais leve do que o habitual. Era estranho sentir... segurança. Mesmo que por algumas horas. Noah jĂĄ estava acordado, sentado no chĂŁo com o notebook no colo e uma caneca de cafĂ© Ă  frente. Ela observou a cena em silĂȘncio por alguns instantes. Era uma visĂŁo rara. Um homem calmo, inteiro, que nĂŁo queria tomar nada dela. — VocĂȘ mexe no computador como se estivesse salvando o mundo — ela comentou, sonolenta. Ele sorriu sem tirar os olhos da tela. — Mais ou menos isso. — O que vocĂȘ estĂĄ fazendo? — Procurando informaçÔes. Sobre Leonardo. Ela congelou. — Noah... nĂŁo. — Atena, ele te ameaçou. Te perseguiu. Isso nĂŁo vai parar enquanto ele achar que tem o controle. Ela se sentou, puxando o cobertor sobre os ombros. A voz saiu mais baixa. — E se vocĂȘ se machucar por minha causa? — E se eu nĂŁo fizer nada e vocĂȘ continuar se machucando sozinha? O silĂȘncio entre eles era quente. Carregado. Mas ainda sem toque. Sem gesto. SĂł o peso daquilo que sentiam — e nĂŁo diziam. Atena respirou fundo. Depois se aproximou devagar e sentou ao lado dele no chĂŁo. — E o que vocĂȘ encontrou? Noah virou o notebook para ela. Uma notĂ­cia antiga, de dois anos atrĂĄs. > “Filho de empresĂĄrio Ă© inocentado de acusação de assĂ©dio contra funcionĂĄria de bar em Alphaville.” — É ele. — a voz dela quase falhou. — O sobrenome bate. E o rosto tambĂ©m. A moça nunca mais foi encontrada para depor depois do primeiro boletim. Dizem que ela se mudou. Mas... — Mas ela foi silenciada — completou Atena. Noah fechou o notebook. — Ele tem poder. E contatos. E estĂĄ acostumado a fazer o que quer. Ela passou as mĂŁos pelos cabelos, inquieta. — VocĂȘ nĂŁo pode enfrentĂĄ-lo sozinho. — Eu nĂŁo estou sozinho. Atena o encarou. Seus olhos estavam escuros de medo, mas tambĂ©m de algo que ela nĂŁo queria admitir: esperança. --- Mais tarde, Noah voltou para casa. Atena pediu um tempo. Precisava ir Ă  faculdade, colocar a vida no lugar, tentar respirar um pouco. Mas ficou claro que a dinĂąmica entre eles havia mudado. Eles confiavam um no outro. Silenciosamente. Inexplicavelmente. Enquanto isso, Leonardo recebia um relatĂłrio em seu celular. đŸ“Č “O garoto Ă© estudante de bioquĂ­mica. Universidade pĂșblica. Bolsista. Mora com a mĂŁe. Vida limpa atĂ© agora.” Ele sorriu com desdĂ©m. — Todo mundo tem um ponto fraco. Abriu outro aplicativo. Começou a seguir o perfil de Atena discretamente, atravĂ©s de uma conta falsa. Viu uma foto antiga dela sorrindo com uma amiga. Um comentĂĄrio marcava o nome da colega: Camila Ferreira. Leonardo sorriu. — Vamos ver atĂ© onde vai sua zona de conforto, Dama. --- Na mesma tarde, Camila encontrou Atena no refeitĂłrio da universidade. — Ei. TĂĄ tudo bem? — Por quĂȘ? — Um cara estranho me mandou mensagem no Insta. Perguntou sobre vocĂȘ. Disse que era da sua famĂ­lia. Mas o perfil era vazio. Atena congelou. — Camila... se alguĂ©m te procurar, qualquer pessoa, nĂŁo responde. NĂŁo entrega nada. — TĂĄ acontecendo alguma coisa? Atena hesitou. E pela primeira vez, foi honesta com alguĂ©m que nĂŁo era Noah. — Sim. E Ă© perigoso. Se eu te afastar, nĂŁo Ă© pessoal. É pra te proteger. Camila assentiu, sem insistir. Mas os olhos estavam assustados. — VocĂȘ confia naquele garoto? No Noah? Atena olhou para o chĂŁo por um instante. Depois para o cĂ©u. — Pela primeira vez... eu acho que sim. --- Ao anoitecer, no caminho de volta pra casa, Atena recebeu uma mensagem. Sem nome. Sem remetente. đŸ“Č “VocĂȘ ainda pode voltar atrĂĄs. Ele nĂŁo vale o preço. Todos pagam no final.” Ela parou no meio da rua. O frio percorreu sua espinha. Leonardo estava assistindo. E mandava recado. Mas dessa vez... algo mudou dentro dela. Ela respirou fundo, fechou os olhos. E respondeu: đŸ“Č “NĂŁo tenho mais medo de vocĂȘ.” O envio foi instantĂąneo. Mas o tremor nas mĂŁos permaneceu por minutos. A guerra tinha começado.
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