Marcas do Tempo

1743 Palavras
KEYLA O silêncio do banheiro era um bicho vivo, rosnando no meu ouvido. A porta fechada não abafava o som do mundo lá fora – o funk estourando de algum lugar, a gritaria de molecada na laje, o ronco distante de uma moto – mas aqui dentro, era como se eu tivesse entrado numa bolha. Uma bolha quente, úmida e pesada, cheia do fantasma de um choque. Fechei a torneira. A água parou de correr, mas o barulho dentro da minha cabeça só aumentava. Ergui os olhos e me encarei no espelho. Aquele pedaço de vidro prateado, cheio de manchas e embaçado pelo vapor, era meu confessor particular. E hoje, ele tinha uma história nova pra contar. A mulher que me encarava não era a mesma de duas horas atrás. Algo tinha rachado. Algo tinha vazado. — E aí, Keyla? — sussurrei pra meu próprio reflexo, um cumprimento meio torto, meio de zoação. Trinta e três anos. Trinta e três voltas ao redor do sol, a maioria delas queimando aqui no morro. A idade não era o problema. O problema eram as marcas que cada um desses anos tinha deixado pra trás, como rastros de uma guerra que eu nem sempre soube que estava lutando. Meu olhar desceu, fazendo um inventário implacável. Não era o corpo de uma novinha, longe disso. Minhas curvas, que os homens babavam, eram cortadas por estrias prateadas nos quadris e nas coxas. Eram como mapas de uma época em que meu corpo esticou pra caber o Douglas, lembranças permanentes de quando carreguei uma vida dentro de mim. Tinha uma cicatriz fininha, quase invisível, perto do umbigo – de uma apendicite que quase me levou aos dezoito. Outras, menores, nas mãos e nos joelhos, memórias de quedas de infância, de correr na laje, de brigar com os irmãos. Eram as marcas do tempo. As marcas de uma vida dura. Mas, pô, eu não era uma ruína não. Longe disso. Meus s***s ainda eram firmes, um orgulho particular, mesmo sustentando um sutiã barato de uma lojinha do morro. Minha cintura ainda afinava, um milagre da genética e do suor de carregar sacola pesada subindo a ladeira. E minha boca… sempre foi meu cartão de visita. Carnuda, vermelha sem precisar de batom, um convite que eu já tinha aprendido a disfarçar, mas que nunca consegui apagar completamente. Eu me achava jovem. Me achava bonita. E, pelo olhar dos homens que se viravam quando eu passava na feira ou no ponto de ônibus, eu sabia que ainda era atraente. Mas era uma beleza que dava trabalho. Uma beleza que atraía olhares que eu nem sempre queria. Como o de hoje. Minhas mãos, ainda tremendo um pouco, foram até a pia. A água fria jorrou, e eu mergulhei o rosto, tentando lavar não só o suor, mas a sensação. A sensação de toque. A sensação de choque. A mão dele. Calejada. Forte. Uma mão de homem que resolvia problemas, que mandava, que… tocava fogo. Quando nossas mãos se encontraram na alça daquela sacola de mercado, foi como um soco no meu estômago, seguido de um curto-circuito em todo o meu sistema. Um estalo seco, elétrico, que correu do meu braço direto pro meu centro, deixando um rastro de formigamento e um calor absurdo no meu ventre. Eu puxei a mão como se tivesse colocado o dedo na tomada. E naquele segundo, olhando pra ele, pro Ben, eu vi que não era coisa da minha cabeça. Ele tinha sentido também. Aquele olhar vazio dele, aquele deserto que todo mundo temia, por um instante foi invadido por um clarão. Um clarão de fogo. O mesmo fogo que eu senti crepitar dentro de mim, depois de tanto, mas tanto tempo apagado. E agora, aqui, sozinha no banheiro, meu corpo ainda tremia. Era uma traição. Uma traição a tudo. Ao Eduardo, meu marido, lá na cadeia. O Matemático. O apelido era uma piada, porque ele era caixa de banco, foi preso ao se envolver em um esquema de desvio de dinheiro, o sujeito inteligente que caiu porque confiou em gente errada. Está preso há dez anos. A gente se vê duas vezes no mês, visita íntima e visita familiar com o Douglas e eu falo com ele uma vez por semana, num telefone r**m, com a linha cheia de chiado. A conversa era sempre a mesma, um tédio. — Tá tudo bem, Keylinha? — Tá, Eduardo. E contigo? — Segurando. O Douglas tá se comportando? — Ele tá… sendo ele. Um vazio. Um buraco. Um matrimônio que agora era mais uma lembrança desbotada do que uma presença. Mas era um vínculo. Um jugo. E aquele choque com o Ben tinha sido o primeiro pensamento real, sujo e proibido, que eu tinha sobre outro homem desde que o Rogério foi levado algemado. E era uma traição ao Douglas, meu filho. Meu menino. O Ben era o parceiro dele. O chefe. O ídolo. E eu, ali, naquela ladeira, tinha olhado pra aquele "menino" – ele com seus dezoito, dezenove anos, um menino perto da minha idade – e tinha sentido uma coisa de mulher. Uma coisa que não era de mãe. Uma coisa que fez minhas pernas amolecerem e meu coração, esse desgraçado, bater no pé do ouvido. — Mãe, cê tá aí? A voz do Douglas do lado de fora da porta me fez pular, como se ele tivesse me pegado no flagra. Meu coração deu um salto do c****e no peito. — Tô, filho! — minha voz saiu um pouco estridente. — Já saio! Respirei fundo, me recompondo na frente do espelho. Peguei uma toalha e sequei o rosto, com um pouco mais de força do que o necessário, tentando apagar o rubor que teimava em ficar nas minhas bochechas. Abri a porta. Douglas estava paradão no corredor, aquele moleque alto e desengonçado, com o boné da Oakley virado pra trás e o celular na mão. Ele me olhou com um cansaço estampado no rosto. — Cê tá bem? Tá branca que nem giz. — ele perguntou, os olhos analisando o meu rosto. Mentir era um instinto de sobrevivência aqui. A gente mentia pra se proteger, pra proteger os outros, pra evitar treta. E naquela hora, a mentira saiu mais fácil que um suspiro. — Tá doido, neném? É só esse calor dos infernos. — disse, passando a mão na testa como se estivesse enxugando suor. — Tá um forno. E ainda subi a ladeira com as sacolas. Quase morri, pô. Ele pareceu acreditar, relaxando um pouco a postura. — p***a, mãe, eu te falei! Me espera que eu vou contigo pra carregar as parada. Cê é teimosa, hein? — E você, onde tava? — revidei, botando um ar de brava. — No barzinho? Com essas novinhas aí? — "Novinhas" era o termo dele pra garotas que andavam com ele, umas minas de menor, que me davam um medo do c*****o, pois são tudo s*******o. Ele deu uma risada envergonhada, desviando o olhar. — Nada, mãe, tava resolvendo uns b.o do Ben. Ben. O nome soou como um trovão dentro do corredor apertado. Eu senti um frio na barriga, seguido de outro calor. Meu corpo, aquele traidor, reagiu ao simples som do nome dele. — É? — foi tudo que consegui articular, virando e indo em direção à cozinha, precisando me afastar, precisando fazer algo com as mãos. — É, ele é o cara, tá ligado? — Douglas veio atrás de mim, animado, o fanboy falando mais alto. — Ninguém mexe com ele. Hoje mesmo, lá na parte baixa, um o****o tentou dar uma de esperto, e o Ben só chegou, deu aquela olhada, aquele gelo… o maluco borrou as calças, mano! Pediu desculpa e vazou. É respeito puro. Eu comecei a tirar as compras das sacolas, colocando o arroz, o feijão, o óleo no lugar. Minhas mãos ainda tremiam levemente. Eu conseguia sentir o peso das sacolas na mão dele, a facilidade com que ele tinha tirado elas de mim. A sombra dele, tão grande, tão perto, bloqueando tudo. — Cuidado com isso, Douglas — falei, sem olhar pra ele, a voz mais séria. — Respeito uma hora vira medo. E medo… medo é uma parada perigosa. Pode virar ódio fácil, fácil. — Ah, mãe, para com isso. O Ben é suave. Ele é diferente. Ele é… é meu brother. Eu finalmente olhei pro meu filho. Aquele menino, com seus dezoito anos, cheio de sonhos tortos e uma admiração perigosa por um poder que ele não entendia direito. Ele via o Ben como um herói. E eu, naquela ladeira, tinha visto o lobo. Um lobo lindo, com olhos vazios que, por um segundo, tinham se enchido de um desejo que me assustou e me fez sentir viva ao mesmo tempo. — Só toma juízo, filho — suspirei, cansada. — Esse mundo aí não é brincadeira não. Um dia tá tudo beleza, no outro… Não terminei a frase. Não precisava. A gente sabia o fim dela. A gente vivia o fim dela todo santo dia. A gente via o fim dela nos jornais. Douglas ficou quieto por um segundo, e então mudou de assunto, falando de um boné novo que ele queria comprar, de um baile que ia ter no final de semana. Eu concordava com a cabeça, fazendo de conta que prestava atenção, mas minha mente estava longe. Estava na ladeira. Revi o suor escorrendo pelo pescoço dele. Revi a força no braço quando ele pegou as sacolas. Revi o choque. Aquele choque que não era normal, não era só atrito. Era química. Era uma p***a de um sinal, um aviso dos deuses do caos. Lavei o rosto de novo na pia, a água fria não adiantando de nada. A marca estava por dentro. Aquele menino com olhar de lobo havia me feito sentir algo que há anos estava adormecido — e isso me assustou mais que qualquer tiro na favela. Porque tiro a gente escuta, se esconde, e passa. Mas aquele sentimento… aquele calor no ventre, aquele frio na espinha, aquele tremor nas pernas… aquilo tinha se instalado. Tinha vindo pra ficar. E o pior de tudo? No fundo, no fundo do meu ser, no lugar que eu não contava pra ninguém, uma parte pequena e apavorada de mim sussurrava uma pergunta que eu não tinha coragem de responder: E se…? ESSE LIVRO É UM SPIN OFF DO MEU LIVRO: FILHA DO MEU PADRASTO ADICIONE NA BIBLIOTECA COMENTE VOTE NO BILHETE LUNAR INSTA: @crisfer_autora
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