“... se esta não tiver utilidade, mate-a.”
A voz do homem repercutia em minha cabeça como uma vibração constante. Como assim, me matar? Só porque o cara manda, quer me matar? Enfim, tudo aqui era estranho, com gente esquisita e sem telefone. Eu estava perdida e indignada.
— Vocês usam cartas? — perguntei alisando a mão, de volta à velha tapera onde acordei.
Andrômeda molhava com um pano frio as marcas quase arroxeadas de meu pulso, por algum motivo que desconheço, ela sorria. Ela molhou as manchas pacientemente até apertar com uma faixa, usando de uma santa paciência e cuidando de mim como se eu fosse algo muito importante.
— Não precisa disso tudo, eu não quero incomodar. — comentei observando-a.
— Quando um Alpha quer machucar, na ocasião, um simples toque pode ser perigoso. — contou, com uma certa admiração na voz.
— Alpha? É assim que chamam aquele poço de ignorância? — eu nem vou dizer que ri por dentro.
A mulher suspirou desanimada, mas ao menos dessa vez parece que ela me entendeu. Certo, eu confesso que também não fui a mais gentil das mulheres, mas o homem falou sobre me descartar como se eu realmente fosse uma criatura inútil e sem importância.
— Em sua origem, não existe um ser superior? Um líder sábio e onipotente? Um que os protege sob seus braços, disposto a vestir o manto da proteção em seus semelhantes? — perguntou curiosa.
— Sim e não. É isso o que eles prometem, mas quando conseguem alcançar o poder, não é isso o que eles fazem. Eles metem demais. — respondi, imaginando que os políticos daqui, não são como os políticos de lá.
— Imagino um caos… — murmurou com pesar.
— Dá pra viver… — desviei o assunto e resolvi insistir num meio de comunicação — E então, vocês escrevem cartas por aqui?
— O envio de mensagens é algo que praticamos. — sorriu — Mas, não está disponível para a fêmea. — desfiz o sorriso.
— E porquê não? — perguntei curiosa, já que isso seria um empecilho.
— Ainda há muito o que se desvendar, e a estrangeira ainda não provou ser digna de nossa confiança. Nossa tribo possui inimigos e o nosso Alpha é extremamente cuidadoso. Então, Andrômeda nada poderá fazer por ti. — recitou com cuidado.
— Isso é ridículo. Eu só quero falar com a minha família, e vão me impedir de mandar uma mensagem? — questionei incrédula.
De repente a mulher parou de juntar os potes com os panos úmidos e abriu os olhos quase os arregalando. Algo que eu disse a perturbou.
— Família? — perguntou preocupada.
— É família. Eu tenho uma e todo mundo deve estar morrendo de preocupação… — respondi esperançosa por ter uma atenção a mais da parte da mulher..
Sem nada me dizer ela pegou em minhas mãos, olhou em meus braços, ombros e passou a examinar meu corpo. Eu não entendia aquilo, a mulher parecia estar querendo me passar a mão até na b***a, então resolvi não permitir aquela s*******m.
— Ei! — afastei a mulher quando puxou os panos quase expondo meus s***s — O quê você pensa que está fazendo? — perguntei irritada, puxando os panos de volta para o lugar.
— Seus lábios estão cometendo um pecado horrível! A mentira é uma injúria pesada para sua própria criação. Ela condena sua alma através de sua língua. Sendo assim, quem mente, não respeita a si mesmo! A fêmea não possui nenhum objeto precioso e nem mordidas pelo corpo! — retrucou a mulher, extremamente ofendida.
Eu juro que não faço ideia se vou conseguir durar até o próximo capítulo… O que essa maluca falou agora? Injúria, pecado horrível, mentira e blá blá blá… Eu só quero falar com meus pais, mas até isso está difícil. Eu só quero escrever a droga uma carta! Desde quando a família se resume a objetos preciosos e mordidas, e que tipo de suposição era essa?
— Mordidas? Ficou maluca?! — franzi o cenho muito mais do que eu podia fazer até agora — Eu disse que tenho família, mas não é uma família de canibais!
— C-canibais? — repetiu Andrômeda, também, em extrema confusão — Explique-se, estrangeira, ao que se refere a família?
— Ué, o de sempre. Pai, mãe e irmãos. — ela me olhava com extrema atenção, disposta a me dar uma chance — Como você e o seu filho. Quero dizer, filhote. — me corrigi e tentei fazê-la entender. — Olha, eu sou um filhote, entende? Eu tenho pai e mãe, e eles têm outros filhotes. Família, entendeu?
Suas feições se suavizaram, dando assim mais calmaria à situação.
— Então a fêmea não tem família. — retrucou ela — É um pedaço de uma família de dois seres unidos. Um ponto de responsabilidade e honra. Seu pátrio tem família, sua matriz tem família. A fêmea é a família de alguém, mas não possui uma.
Ouvindo desse jeito, até consigo entender o que ela quer dizer. Eles devem entender isso como um costume deles, ou algo parecido. É como explicar para uma religião diferente que o Deus dele é o mesmo Deus da minha religião, mas com formas diferentes de representar sua fé. É uma divergência de cultura. Nesse caso, família é a mesma coisa, mas olhada por outro ângulo. No fim, é família. Foi satisfatório nos entender, mas cansativo o processo.
— Tá legal, eu já te entendi. — respirei fundo, abracei minhas pernas e tentei raciocinar deixando transparecer a minha tristeza interna — Não importa o motivo, eu só quero voltar pra minha casa. Eu sou um pedaço importante para minha família, então preciso voltar.
— Andrômeda vai lhe desejar a melhor das sortes, mas nunca conte com a minha existência para ultrapassar as ordens de Malekith. — respondeu com serenidade — Sua origem não tem importância neste ponto, já que nesta ilha nada é possível sem as mãos de nosso protetor. Está sumamente proibida de fazer um escrito e atravessá-lo qualquer linha que ultrapasse as fronteiras de nosso povo. — ditou.
Ela se levantou com os potes na mão e me deu um último sorriso, deixando um fino rastro de esperança. Sem discussões ou insistência, e eu não consegui escrever uma carta. Isso me fez repensar minha chegada e meu estado atual. Sozinha e meio perdida, sem acessos e sem entender, não me deixa escolhas a não ser me aliar. Farei o possível para tomar cuidado, entender o que está acontecendo e dar um jeito de voltar pra casa, mas vou precisar dela para isso. Preciso de alguém que saiba tudo o que eu não sei, e que de preferência não deseja minha morte.
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O barulho daqui é diferente. Não tem carros, buzinas, talheres, barulhos de formas e forno, gritos de pedido… Não é como no meu trabalho no restaurante do senhor Adams, nem parecido com o Queens. Não tem barulho de cidade. As vozes natural daqui se fazem ouvir, talvez pela falta de barulho urbano. Era como se fosse possível admirar o silêncio.
Eu estava sentada e aguardando, conforme as ordens de Andrômeda. É claro que minha vontade era sair e procurar escapatória, mas só achei mato nas brechas da tapera que espiei. Sem contar a falta de luz, o sol estava se pondo cada vez mais e ainda não vi eletricidade e nem velas. Foi quando as duas moças brancas, de olhos puxados e igualmente vestidas, entraram através da cortina de entrada. Ambas tinham os pés descalços e colocaram diante a beirada da esteira um jarro pequeno com água e outro cheio de sopa.
— Será que podem me dizer onde está Andrômeda? — perguntei ansiosa, mas elas se entreolharam, se ajoelharam deixando os potes diante as beiradas, mas não me responderam. — Eu só quero saber onde está Andrômeda. E quando vão acender a luz?
Uma olhou para a outra, se levantaram, mas por fim ouvi uma resposta.
— Os criados estão proibidos de se comunicar com a estrangeira. — a resposta veio seca, junto com as costas de ambas saindo do lugar.
Ótimo, nem as tias da comida e da limpeza não podem falar comigo? Estão de s*******m né… E mais uma coisa para se notar, nesse lugar não tem colheres. Pelo menos não para comer. Ainda bem que é sopa, ou teria que comer com a mão e talvez até enfiar a cara na comida se eu quisesse me alimentar. Será que eu também não tenho direito a colheres? Ah, esquece...
Enquanto comia, um silêncio absurdo foi plantado no ambiente. Se antes o barulho era pouco, agora não se ouvia quase nada. Mas ao longe, bem longe, eu ouvi uivos. O frio na espinha foi grande, levando em consideração que eu estava no meio do mato e que agora tinha lobos, a coisa não passou muito bem pela minha cabeça. Afim de me certificar que a pequena população ainda estava ao redor, nem que fosse dentro de seus casebres, eu deixei o pote no chão e fui até a cortina grossa da porta. Infelizmente não encontrei nada. Não havia luz saindo dos pequenos casebres, o silêncio era aterrorizante e o interior da cabana só estava iluminado pela luz forte da lua que, aliás, é extremamente grande. Muito maior do que a visão que eu tinha no Queens. Eu podia jurar que ela estava até mais perto.
— Ei! — chamei colocando meu pés para fora — Alguém?! Andrômeda?! — dei mais alguns passos, mas não aconteceu nada e nem ninguém surgiu — Eu só preciso de luz, e estou disposta a conversar sobre isso numa boa… Tudo bem?
O barulho de um galho se quebrando as minhas costas se fez ouvir, foi por isso que eu me virei e foi por isso que os pelinhos da minha nuca arrepiaram. Meu corpo tremeu e minha boca soltou o pior grito que poderia existir, levando meu medo ao extremo e os alertas do perigo ao grau máximo. Minha reação foi virar ao lado oposto e correr o máximo que os meus pés aguentassem. Infelizmente estava escuro e até onde eu ia enxergar era um mistério, mas a vontade de viver e não esperar alguma reação da criatura se tornou maior.
Meus pés pisavam sobre a grama molhada, o silêncio das casas era assustador, não havia uma alma sequer para me ajudar e logo eu estava gritando por ajuda e adentrando o meio das árvores sem pensar. Minha garganta doía a cada grito, o peito disparava a cada passo e eu não fazia ideia de como ainda não tinha caído…
Pensar em coisas ruins, atrai coisas ruins. Deve ter sido por isso que eu tropecei.
Meus pés se engancharam no que deduzi ser uma raiz, caí com o corpo esticado no chão e gemi com o baque. Na batida, senti vários pontos do corpo entrar em choque, do tipo que me fez endurecer e sentir algum estrago. Tentei virar para me certificar, o pé latejou e eu tinha certeza que o torci. “Merda”, pensei com raiva e medo, principalmente medo. Piorou ainda mais quando ouvi o barulho de passos e a visão distante de dois olhos vermelhos m*l iluminados pela luz da lua. “Eu vou morrer…”, pensei no desespero. Gritei com a dor ao ouvir meu osso estalando quando tentei puxar o pé, e ouvi os passos cada vez mais perto.
A criatura n***a era mais alta que um ser humano, peluda, fedendo a cachorro molhado, tinha alguma coisa vermelha pingando entre os dentes e os olhos eram avermelhados. As patas da criatura eram grossas, e pendurado em seu pescoço havia um colar. Um lobo. Um lobo que usa colar?
“Esquece o colar, se preocupa com a sua vida!”
Eu não sabia que lobos daquele tamanho existiam e achava que aquilo era coisa de filme, mas esse aí ainda tem um colarzinho. Podia tentar e chamar ele de “totó” e fazer um carinho, mas na verdade eu só consegui achar que a criatura iria me devorar! Já estava cansada, com frio e com dor. Minha face estava cheia de lágrimas, e a boca tremia com as expectativas negativas do próximo segundo. Não dava para levar minha morte na esportiva...
— Por favor… Seja rápido… — pedi clemência em meu último segundo, como se fosse possível a criatura me entender.
O lobo se aproximou o suficiente para eu sentir a lufada de ar quente saindo da boca, quando o mesmo baixou o focinho na raiz grossa, fincou os dentes na madeira e libertou meu pé. Respirei de alívio, mas ainda com muita dor e gemidos. Me encolhi no chão mesmo, alisando o tornozelo e focando nos olhos da criatura. Já estava suja, com medo e não conseguiria ficar de pé a menos que um milagre me tomasse. Mas, a criatura não seguiu em frente...
Quer dizer então que ele não vai me comer?
Para a minha surpresa, os barulhos de ossos estalando e quebrando surgiram no ambiente. A criatura grande começou a diminuir na grossura e tamanho, passando a ter deformidades no corpo. Quando esta ficou sobre duas patas, o peito se rasgou em dor deixando uma pele surgir, e diferente da transformação bonita dos filmes, aquilo parecia doer. E muito.
O homem que surgiu peladão na minha frente, era quem eu menos imaginava encontrar. O senhor da p***a toda, o tal do Alpha e líder. Agora eu entendi o porquê chamavam ele de Alpha. É claro que antes do peito estourar de vez em medo, ansiedade, expectativa e confusão, meus olhos desceram para o meio da virilha do homem. Uma pena que eu não consegui enxergar bem, o escuro não ajudava e a luz da lua pegava somente em cima, fazendo suas partes ficarem seguras de minhas vistas. Isso me fez levar um susto quando o homem tocou em meus punhos, puxou meu corpo e me pegou em seus braços.
Voltando a realidade...
— Porquê Andrômeda ainda não lhe tirou a vida? — foi a última coisa que ouvi antes de desmaiar de vez.