Terra. O cheiro de terra tomava força em minhas narinas de uma forma nada agradável. Como quem acreditava ter acordado de um pesadelo, eu tentava me levantar. A tentativa foi falha, me causando náuseas e jorrando vômito de minha boca me obrigando a molhar o chão, bem ao lado da esteira amarelada e grossa em que eu estava deitada. Levei um minuto para derramar toda água que saía da minha garganta, respirei fundo sentindo minha cabeça doer e me sentei, guardando o amargo dos lábios para mim.
Eu não conseguia entender o que estava acontecendo. Eu podia jurar que estava em um avião, morrendo no ar, na água… Mas, agora só estou sobre uma esteira de palha grossa, sentindo uma leve dor de cabeça, estou inteira e dentro de um lugar nada parecido com um hospital.
O barulho de passos e vozes me fizeram entrar em alerta. Um misto de dúvida, junto a uma pilha de perguntas subiam para minha cabeça e o vômito no chão me fez ficar envergonhada. A mulher n***a que abriu as cortinas grossas tinha atrás de si duas mulheres. Ela quase não se moveu quando me viu sentada, mas aos poucos abriu um sorriso mostrando todos os dentes. Quando deu passagem para as duas moças igualmente vestidas, estendeu as mãos em minha direção e caminhou até a beira da esteira
— Louvada seja a Grande Mãe! — A cada passo da mulher, seus cordões de ouro balançavam junto com a manta branca que usava no corpo.
A mulher tinha algumas rugas, usava nos braços e pescoço inúmeros cordões de ouro e tinha sobre o alto do cabelo crespo uma faixa igualmente dourada. A roupa me lembrava a antiga era grega, do tipo que os seres humanos amarravam lençóis no corpo. Não era feio, só era esquisito, principalmente porque ela não usava sapatos...Imagino que a xoxota das mulheres naquela época tomavam um vento absurdo e se soasse, fedia xana pra todo lado. Enfim, não importa, nos dias de hoje toma-se banho todos os dias, e inventaram a santa calcinha.
— Me desculpe eu… — apontei o chão sem graça.
— Retirem a sujeira. — ordenou a mulher antes mesmo de eu concluir.
As moças simplórias e igualmente vestidas agiram de imediato. Saíram do cômodo voltando segundos depois com um jarro de barro, uma bacia e panos nas mãos. Foi no mínimo estranho vê-las se ajoelhar para limpar a sujeira, e um pouco nojento.
— Me desculpe, eu não queria fazer isso, só que foi a primeira coisa que fiz quando abri os olhos. — achei um tanto inusitada a situação e acabei perguntando — Não seria mais fácil usar um rodo?
A mulher sentada ao meu lado franziu a cara, mas nada disse. Aliás, disse sim, mas não sobre a limpeza.
— Estivemos esperando por muito tempo, pedindo que a Grande Mãe findasse seu sono e a levantasse para os novos sóis. Ela atendeu as nossas preces.
Dessa vez foi eu que não entendi nada. O que é essa de “grande mãe”, a virgem Maria? O que ela quer dizer com “novos sóis”? Novos dias? Roupas da era grega, mulheres que limpam vômitos sem luvas ou rodo e uma religiosa estranha cuidando de mim… Me deram um sedativo fodido!
— Pode repetir isso de novo? Desculpa é que eu não entendi…
— Como devo chamar a fêmea que está diante de meus olhos? — perguntou séria — Tens um chamado de batismo?
Mas que merda… Porque essa mulher fala desse jeito?
— Olha só, se com isso você quer saber o meu nome, é Stella. Stella, e eu vim do Queens. Desculpa eu não quero ser chata, mas porque você está falando desse jeito?
— Jeito? — perguntou confusa — Falas de um modo tão peculiar… Me chamam por Andrômeda, agraciada por ter dado a vida ao governante de nossas terras.
Eu já devo ter dito que franzi o cenho… Franzi de novo. E mais ainda.
— Ah... Legal, seu filho é o prefeito, governador ou uma parada desse tipo?
Sinceramente pareciamos duas loucas, onde uma franzia o cenho para a outra cada vez mais. Enfim, se não fosse pela movimentação das moças no lugar, sabe se lá quanto tempo a gente ia ficar se olhando, bancando as retardadas mentais.
— Olha, Andrômeda, foi muito bacana da sua parte me ajudar, mas eu gostaria de entender algumas coisas. Minhas últimas lembranças não são muito claras…
— O corpo inerte da fêmea foi encontrado à beira das águas, é disso que não se recorda? — respondeu direto.
— Águas… — murmurei para mim mesmo — Tipo, praia? Vocês me acharam à beira de uma praia?
— A encontramos onde a terra acaba e as águas começam. Meu filhote caçava quando encontrou o corpo quase sem vida da estrangeira.
Só com aquelas poucas palavras eu já sabia que todo aquele pesadelo tinha sido real, e foi instantânea as lágrimas que surgiram no rosto. No segundo seguinte eu tinha mil perguntas para fazer, desde as buscas até as notícias sobre minhas amigas… Será que mais alguém sobreviveu?
— Está umedecendo sua face com as águas do sentimento… — murmurou carinhosa, limpando meu rosto.
— Onde estão os meus pais? Sabe de alguma coisa? Fizeram buscas? Tem mais sobreviventes? Há quanto tempo estou aqui? Eu…
— É necessário que seja silenciosa para entender os barulhos de seu coração. — anunciou calma — Tudo o que é de meu conhecimento, é que a fêmea estava sozinha sob a luz do grande pai ardente, enviada pelas águas violentas a mais de trinta sóis. Não havia nenhuma outra alma, e nem outro ser.
Sem sobreviventes. Sem sobreviventes. Se com grande pai ardente ela quer dizer sol, e com trinta sóis ela quer dizer dias; acho que estava à mercê da beira da praia, debaixo do sol a mais de trinta dias atrás! Merda!
— Trinta dias é muito tempo! Preciso de um telefone, já devem ter cessado as buscas e eu preciso avisar que estou viva! Já falaram com as autoridades? Chamaram a polícia? Vieram me visitar? Sabem que estou viva? — mas a mulher só fazia entortar a cara. — Me desculpe, mas será que pode me emprestar um telefone? — repeti insistente.
— Do que se trata um telefone? — perguntou curiosa, realmente curiosa.
Pânico. Como é que um ser humano em pleno século XXI não sabe o que é um telefone? Será que vim parar no meio de uma ilha no atlântico, entre canibais? Entre criaturas irracionais? Impossível… Olhando ao redor das minhas acomodações reparo estar dentro de uma espécie de tapera velha, com redes e potes de barro nos cantos. Eu posso ser esperançosa e achar que aquilo é um acampamento de buscas, mas sem um sistema de primeiros socorros? Tem alguma coisa errada...
Sem pensar duas vezes puxei o cobertor de minhas pernas, na primeira tentativa de ficar em pé quase fui ao chão. A mulher tentou se aproximar, mas eu me apoiei ao balaústre do centro da cabana e não deixei a mulher se aproximar.
— Eu estou bem… — eu não estava bem, mas precisava fazer alguma coisa. Caçar um telefone, encontrar alguém que saiba conversar, me entender…
— Não tens permissão para sair… — advertiu cuidadosa.
— Posso sim. — retruquei firme.
Passei pela mulher que me olhava de olhos arregalados, atravessei as cortinas vermelhas da cabana, barraca ou sei lá que bosta era aquela, e o que vi do lado de fora quase me tirou o ar do peito. Eu via homens de todos os tipo atravessando o lugar, carregando peso nas costas, dividindo carregamentos em dois ou coisa assim. Eles vestiam saias grossas de couro, tinham cicatrizes, feições duras e tudo era um misto de terra, barro e o verde da mata. Homens que trabalhavam usando de uma força descomunal, carregando até troncos de árvores inteiros. p****s largos de fora, pés misturados ao barro e as vestimentas eram saiotes e panos. Nada de calças.
Eu estava literalmente no meio de uma floresta, com inúmeros casebres levantados, no meio de um povo no mínimo diferente. Os homens eram grandes. Se houvesse algum baixinho ali, eu não saberia dizer. Andando em passos vagarosos e perdidos, pude avistar mais ao longe mulheres. Essas carregavam jarros, se dobravam no chão bem na porta de pequenas construções de barro, palha e madeira; e estavam fazendo artesanato ou coisa parecida. Havia de todo o tipo, de todas as cores, tampando só o suficiente do corpo em tecidos amarrados, trançados ou improvisados.
As crianças ficavam perto das mulheres, e todos os meninos eram maiores que qualquer menina. Todos andavam de pés no chão, brincavam com brincadeiras violentas, de um jeito que as mães sorriam achando graça. Eu achava bizarro.
Havia mulheres de cabeça raspada, cabeludas, magras, gordas, pequenas e altas. Algo em comum nelas era o excesso de colares, pulseiras e adornos. Potes de barro, cumbucas nas mãos, folhas longas de árvores e os brinquedos das crianças eram todos de madeira.
Cadê as fiações elétricas? Por que todo mundo está me olhando como se eu fosse um bicho? Cadê as casas com construções altas, as ruas asfaltadas, os carros e os… Que meio de comunicação esse povo deve usar?
O peito arfava com tantas perguntas, dúvidas e pânico. Meus pés se tornaram puro barro, em alguns momentos eu até achei que ia escorregar, mas quando me dei conta, eu corri. Eu já não sabia se estava longe de onde acordei, pra onde estava indo e que lugar era esse. As imagens eram estranhas, a situação estranha e a parede que encostou as minhas costas também era estranha. Eu andava tão confusa que não vi onde cheguei e quando me virei, senti o arrepio do medo percorrer em minhas veias.
O homem em minha frente era alto. Dois metros? Um metro e noventa? Ou eu que sou muito baixinha? Ele não tinha feições amigáveis...
A imagem poderosa vinha carregada de cabelos até os ombros, a barba desenhava toda mandíbula quadrada. Jesus…! O peito da criatura era sarado, o ser humano usava saias de couro, mostrando em alguns espaços as coxas torneadas. Nos punhos a mesma peça de couro das saias nórdicas também abraçavam o espaço entre sua mão e o antebraço. Assim como os outros, os pés estavam socados no chão. Seria belo, se não fosse a lança de um de seus amigos encostar em minha garganta.
— Curve-se perante o seu líder! — o dono da lança rosnou entre os dentes.
O guarda costas do grandão mostrou todos os dentes brancos. A pele dele era tão n***a quanto a noite, também usando saias e mostrando o físico bem desenhado. Este era careca e tinha inúmeras tatuagens brancas distribuídas pelo corpo. Era o Blade da tribo, certeza! E sem ter escolha, eu levantei as mãos. Vai que esse cara aí é o "seu polícia.”
— Eu só quero um telefone, juro que não fiz nada. — me defendi preocupada.
— Kith! — A voz de Andrômeda surgiu dos fundos, se aproximando aos poucos e se envolvendo na cena. — Seja piedoso. A criatura está sem o seu juízo perfeito, acabou de despertar e não entende o que se passa. É um ser em confusão.
— Aí Dona, meu juízo está tchan. Só pedi um telefone… — tentei me justificar para o tal líder.
Porque falávamos a mesma língua, mas eu estava sendo considerada louca? O pior, foi o olhar sombrio do tal líder, nada amigável para a minha linda pessoa.
— Aquieta a maldição de sua boca! — ordenou o homem da lança, encostando a ponta afiada em minha carne, o que doeu e acho que tirou um fio de sangue — Jamais dirija a palavra ao grande líder, se esta não lhe for concedida.
— Tá… — murmurei baixo — Tá legal, pode abaixar isso aí. Não vou falar com ninguém não, tudo bem?
Em nossa volta havia um círculo de curiosos e eu, tentando raciocinar só tentava entender o que estava acontecendo. Andrômeda pegou em meus pulsos, olhava para o chão e tentou me puxar.
— Venha. — ordenou baixinho.
— Mas e o telefone? — perguntei baixinho — O tal líder também não tem telefone? Ele não é o seu filho? Você não falou que era agraciada por isso? O cara nem abriu a boca!
— Cala-te fêmea… — murmurou a mulher.
— Você é a mãe dele, deve conseguir um jeito..! — cochichei insistindo.
— Algum problema para domar seu adorno de estimação, Andrômeda? — perguntou o homem de voz grave, grossa e viril demais para a minha xoxota — Falhas em teu pedido, e a estrangeira será enviada para os portões da morte.
Mas, eim? Adorno de estimação? Que p***a é essa!? Eu? Eu virei um adorno de estimação? Que cara mais i*****l! E que parada é essa de portões da morte?!
— Vai deixar ele falar assim com você? — olhei para ele e pouco me lixei com a lança do carinha do m*l — Aê, sua majestade, você devia ter mais respeito com a sua mãe, sacou? E eu não sou um adorno de estimação não, viu? Vai mandar pros portões da morte seu ego. Eu exijo um telefone e um advogado!
Paisagem. O cara tinha a maior cara de paisagem, pouco se lixando com as minhas reclamações, ou foi o que pensei. A mulher insistia em me puxar pelos pulsos e tentar me afastar daquela cena, até que minha boca calou quando no outro pulso a mão grossa do tal líder me tocou e com uma força escandalosa me puxou das mãos de Andrômeda, apertou a minha carne e me fez ajoelhar com um único toque.
Minha boca abriu disposta a dizer “ai”, mas nenhum som saiu.
— Estrangeira, eis me um líder, e sua negativa não será o espírito que irá me submeter a vergonha. — ele se abaixou segurando o meu pulso enquanto eu tentava tirar sua mão de mim sem nenhuma espécie de êxito — Este é o meu legado, e se quiser viver, respeitará primeiramente a mim.
— Eu só… — senti o aperto cada vez mais dolorido, assim como seu rosto cada vez mais perto — Quero ir… Embora…
— Nenhuma criatura com vida desta ilha sai sem o meu consentimento. Com a fêmea não haverá diferença. — o homem me soltou, deixou visível as marcas quase roxas que os dedos fizeram em meu pulso e ordenou — Procure serventia para a estrangeira Andrômeda, se esta não tiver utilidade, mate-a.
Não foi bem um beliscão, mas o aperto foi o suficiente para me colocar na atual realidade. Seja lá onde for que eu esteja, não é o Queens. Que lugar é este e que povo é este, eu não faço ideia, mas de uma coisa eu sei. Eu estou muito longe de casa, e se meu único meio de sair daqui for aquele homem, eu estou muito ferrada.