Capítulo 2
FERA NARRANDO
O morro é o único lugar onde eu me sinto inteiro.
É aqui que eu mando, respiro, vigio.
Onde o mundo me respeita — ou me teme, que é quase a mesma coisa.
Quem olha de baixo, vê só o concreto amontoado.
Mas eu vejo tudo.
Vejo o sangue derramado, as traições enterradas, os erros pagos à bala.
Vejo o que construí com minhas próprias mãos — e com o silêncio de quem tentou me derrubar.
E sobrevivi.
Por isso, hoje eu sou o que sou.
O mais temido da Rocinha.
O nome que ecoa antes da ordem.
Fera.
Mas nem sempre foi assim.
Já fui só Bruno.
Filho de ninguém.
Menino de chinelo furado, correndo descalço pela viela, aprendendo a se defender com o olhar.
Não tive pai. Não tive referência.
Aprendi o que era respeito na rua.
E aprendi cedo que quem fala demais, morre.
Quem sente demais, perde.
Então eu calei.
E endureci.
Minha primeira arma veio antes do meu primeiro beijo.
Meu primeiro corpo caiu antes do meu primeiro amor.
E quando percebi, já era tarde: eu era o dono do morro…
e não tinha coração pra dividir com ninguém.
Hoje eu tenho tudo.
Dinheiro.
Poder.
Mulher, se eu quiser.
Arma na cintura e soldado leal no portão.
Mas a verdade é que isso tudo morre comigo.
Se eu cair, meu império cai junto.
E foi isso que começou a martelar na minha cabeça nas últimas semanas.
Junin foi o primeiro a falar.
— Cê já pensou que teu legado tá na beira da extinção?
Eu só fitei ele.
Junin fala demais às vezes, mas ele é o único que pode.
Meu braço direito. Cresceu comigo. Viu cada cicatriz.
— Se tu for preso, se tu morrer… quem vai segurar isso aqui?
Eu fiquei calado.
Mas a pergunta ficou.
Porque por mais durão que eu seja, eu sei: ninguém é eterno.
E eu tô com quase quarenta.
O tempo não me assusta.
Mas a ideia de que tudo que construí vire ruína quando eu cair… isso sim me dá raiva.
Ontem mesmo eu vi um soldado novo batendo no peito dizendo que era “o melhor da Rocinha”.
Faz duas semanas que ele entrou e já tá se achando melhor que vapor das antigas.
Se eu sumir, esse tipo de verme vira chefe.
E o morro vira bagunça.
Eu não construí um império pra virar piada.
Não enterrei parceiro, não mandei cortar pescoço, não sobrevivi ao fogo cruzado pra ser esquecido.
Eu quero mais.
Quero continuidade.
Quero sangue do meu sangue comandando isso aqui.
Mas sem mulher grudada no meu pé.
Sem “fiel”, sem aliança, sem plano de família feliz.
Amor não cabe no meu mundo.
Nunca coube.
Eu só quero um herdeiro.
Meu herdeiro.
Alguém que carregue meu nome.
Que ande nas minhas vielas.
Que nasça sabendo que aqui em cima, ninguém manda além da gente.
Fico pensando nisso quando subo no terraço à noite.
A Rocinha iluminada parece viva.
Como se respirasse junto comigo.
Como se ouvisse meus pensamentos.
É aqui, nesse silêncio pesado do alto, que eu traço meus planos.
Junin às vezes me acompanha. Hoje não.
Hoje eu quero só minha mente me respondendo.
Um herdeiro.
Mas com quem?
Essa é a parte complicada.
Mulher nenhuma aqui presta pra isso.
As que tão do meu lado só querem cama ou status.
As outras não aguentariam o peso.
Eu preciso de uma mina "diferenciada".
Com postura.
Sem apego.
Que saiba o que tá fazendo.
E que vá embora depois… sem olhar pra trás.
Sem criar laço.
Sem querer carinho.
Sem drama.
Só barriga.
Contrato.
Fim.
Minha irmã, Luara, é o único pedaço de mim que ainda brilha.
A única que me chama de Bruno quando estamos a sós.
A única que me faz lembrar que um dia eu já fui gente.
Ela tem 17 agora.
Linda, mimada, impulsiva.
E minha.
Eu protejo ela com tudo que sou.
Ninguém encosta.
Ninguém ousa.
Já matei homem na bala por muito menos.
Por ela… eu mato sorrindo.
O que é meu, é meu.
E ponto final.
Meu celular vibra.
Mensagem do Junin.
> “Já vi uma opção. Tá no perfil que cê quer. Vamo trocar ideia amanhã.”
Sorrio de leve.
Se ele achou alguém com o perfil certo, eu vou saber quando olhar nos olhos.
Mas não crio expectativa.
A maioria decepciona.
Quero só alguém que entre muda e saia calada.
Que cumpra o papel.
Que me entregue o que eu quero…
E desapareça.
A brisa da noite passa por mim.
Olho a favela lá embaixo.
As luzes, os sons, a vida pulsando.
Tudo isso é meu.
Mas nada disso vai durar…
se eu não fizer algo agora.
E eu vou fazer.
Nem que pra isso…
eu precise comprar um pedaço do destino.