Capítulo 3
MILENA NARRANDO
A noite foi longa e me virou do avesso.
Eu dormi mäl, quando consegui cochilar, sonhei pior.
Sonhei que estava correndo pela Rocinha atrás de dinheiro, mas quanto mais eu corria, mais ele se afastava.
Acordei com o coração disparado, suor frio e aquela sensação de que nada ia melhorar tão cedo.
A cabeça rodava igual latinha em beco: barulho por dentro, silêncio por fora. Cada vez que eu fechava o olho, a frase do meu pai aparecia, seca, sem piedade: “É muito caro, Milena.” Não era só dinheiro. Era medo. Era tempo. Era a sensação de que a vida tinha virado uma ampulheta de areia grossa, caindo direto no meu peito.
Fiquei um minuto parada no meio do quarto, encarando a parede descascada como se dali fosse sair uma solução. Não saiu. Suspirei, prendi o cabelo num coque torto e fui pra cozinha.
Meu pai, mesmo doente, acordou antes de mim. Quando fui pra cozinha, ele já estava lá, mexendo um café e cantando baixinho uma música antiga, como se nada tivesse acontecido.
Ele olhou pra mim e abriu um sorriso cansado, desses que não enganam ninguém, mas mesmo assim aquecem.
— Que cara é essa, pequena? Parece que passou a noite brigando com o travesseiro.
— Bem isso. — respondi, tentando brincar.
— Eu ouvi tu virando pra lá e pra cá… — ele mexeu no café. — Vai dar tudo certo, Milena. Sempre deu, não é? A gente é teimoso. A vida tenta derrubar e a gente levanta.
— Eu sei — menti. Porque eu não sabia.
— Olha… eu sei que ontem te assustou, mas volto a repetir vai dar tudo certo. A gente vai achar um jeito.
Ele sempre tenta animar, mesmo quando é ele quem mais precisa de ânimo.
Eu queria acreditar no que ele dizia, mas tinha um aperto no peito que não passava.
— Quer que eu faça um cuscuz pai?
— Já fiz. Senta, come. Tu não é de ferro.
Sentei. O cheiro do café misturado com manteiga no cuscuz me trouxe uma memória bestä: eu pequena, pé no chão, ele atrasado pro trabalho e mesmo assim cantando “Aquarela” torto, fora do tom, só pra me fazer rir. Engoli a lembrança junto com a primeira colherada. Tinha gosto de saudade.
— Pai… — comecei, e parei. Eu queria dizer mil coisas: que eu ia dar um jeito, que eu ia conseguir, que ele não tava sozinho. No lugar de um discurso, saiu o de sempre: — Se sentir qualquer coisa estranha, me chama.
— Ô, minha filha — ele sorriu de lado —, eu sei que ontem foi um choque. Mas não me olha como se já tivesse me enterrado, não. Ainda tenho fogo pra queimar.
— Eu nunca pensei em te enterrar — rebati, e a palavra me rasgou por dentro. — Eu só… não quero te perder.
Ele esticou a mão e apertou a minha. O toque do meu pai sempre foi meu lugar seguro.
— Vai se arrumar e trabalhar, Milena. Não adianta ficar aqui me olhando com essa cara de preocupação. Eu vou ficar bem.
Quis acreditar. Não acreditei.
Beijei a testa dele e fui pro banho.
A água fria bateu na nuca e acordou a parte de mim que tava paralisada. Lavei o rosto com força, vesti a calça jeans surrada, a camiseta do point, tênis gasto. No espelho, duas olheiras me encararam. Passei um batom só pra ver se enganava o mundo. E, talvez, a mim mesma.
— Volto cedo — falei da porta.
— Vai com Deus, minha pequena.
O caminho até o point é curto, mas nessa manhã pareceu mais longo e pesado.
A rua tava cheia, barulho de moto subindo e descendo, música alta vindo de algum barraco, cheiro de pastel e churrasquinho misturado com fumaça de escapamento.
Cheguei no point e fui direto pro balcão. A manhã começou devagar, mas logo o movimento aumentou. Gente pedindo refrigerante, pedindo pastel, pedindo cigarro. Eu atendi todo mundo no automático, mas minha cabeça estava longe.
Atendi, anotei, troquei, sorri. “Pastel de carne, anota dois.” “Tem gelada?” “Vê uma coca pra mim, sem gelo.” O meu corpo tentava trabalhar, a minha cabeça me sabotava — e voltava para a sala lá de casa, do lado do sofá, vendo meu pai coçar a ponta do nariz, jeito clássico dele quando tá tentando disfarçar preocupação.
No meio da correria, percebi que a tropa do dono do morro tava presente. Apareceu mais moto. Aceleração seca. Dois, três giros. Um grupo de soldados cruzou a quadra, fuzil nas costas, cara fechada. Outros espalhados pelas esquinas. Um terceiro encostou no poste e ficou varrendo tudo com o olho, alguns no portão de um barraco abandonado, outros encostados na parede só observando. Era o tipo de presença que deixava o ar mais pesado.
— A tropa desceu hoje — disse a Cida, que faz o caixa quando a dona se atrasa. — Deve ter alguém importante por vindo pra cá.
Quando o dono do morro tá por perto, o clima muda. Não sei explicar… parece que até o som do morro fica diferente.
Eu assenti. E devolvi: “hum”.
Com certeza deve ser o dono do morro, nunca vi ele de perto, mas para tudo isso, só pode ser ele.
Eu pensei que ele podia até já podia estar aqui, mas não me deixei distrair. Tinha bandeja pra limpar, garrafa pra encher, troco pra arrumar.
Só que o coração… o coração tava apertado desde que acordei.
Segui servindo. Cada pedido, uma reza. Cada troco, um pedido mudo de que o celular tocasse com milagre do outro lado. Não tocou.
— Tá com a cara miúda hoje, menina — Seu Valmir falou, apoiando os cotovelos no balcão, cheiro de cigarro grudado no bigode. — Briga com o namorado?
— Nem namorado eu tenho — dei um sorriso curto. — É só cansaço.
— Cansaço de quê? — ele riu. — Vai comer um pastel que passa.
Comi nada. O estômago tava de greve.
O sol foi subindo, batendo em cheio no telhado de zinco e transformando o point numa estufa. Suor na nuca, camiseta grudando, calor colando a gente no chão. Eu me distraía limpando o balcão com mais força do que precisava, só pra não pensar. Só que pensamento, quando quer, entra por baixo da porta.
E se ele piorar? E se for rápido? E se não der tempo?
Eu não vi a hora passar. Vi o céu perder o azul escuro da manhã e ir clareando, vi a sombra do poste mudar de lado, vi a fila diminuir. E então, no meio do barulho, veio o som que cortou tudo: o meu celular vibrando no bolso de trás.
Olhei o visor. Dona Neide, minha vizinha.
Atendi no primeiro toque.
— Alô?
— Milena? — a voz dela veio apressada, ofegante, um pouco tremida. — É tua vizinha, Neide. Tu pode vir agora?
Meu coração despencou.
— O que aconteceu?
— É o teu pai, filha. Tava aqui na porta me ajudando com a cadeira da minha mãe, aí ficou pálido do nada… sentou, suou frio… tô com medo.
O bar sumiu. O ponto sumiu. A quadra sumiu. Só ficou a voz dela do outro lado e a minha respiração.
— Ele… ele tá consciente? — perguntei, tentando manter a cabeça no lugar.
— Tá, mas muito fraco. Eu tentei ligar pro meu sobrinho pra ver se ele leva no médico, mas ele tá no trabalho lá em baixo e eu não tenho como deixar a minha mãe sozinha, cê sabe… ela tá acamada.
Pisquei, e o mundo voltou rápido demais: o barulho, as vozes, a fritadeira estourando. O chão parecia mole.
— Tô indo. Agora. — a minha voz saiu firme, não sei de onde.
— Vem correndo, filha. Se der, traz uma garrafinha d’água filtrada também. Ele disse que tá com gosto amargo na boca…
Desliguei sem responder não tinha tempo pra isso.
Não falei nada pra ninguém no point.
Não pedi autorização, não expliquei, não fechei caixa.
Só larguei tudo e saí correndo, passando por baixo da corrente, quase tropecei na caixa de cerveja no chão.
— Milena, onde tu vai? — a Cida gritou.
— Depois eu explico! — falei por cima do ombro, já no meio da calçada.
Desci a calçada com pressa, quase trombando nas pessoas. O ar parecia mais quente, e cada passo era uma martelada no meu peito. O morro tem dessas: o caminho que você conhece de cor parece infinito quando tá com pressa.
Passei por dois soldados armados, que me olharam rápido, mas não disseram nada. A rua estava mais cheia do que de manhã, e cada voz, cada moto passando, me irritava. Eu só queria chegar logo.
As ladeiras ficam maiores, os becos mais estreitos, o ar mais curto. Senti cada pedacinho do meu pulmão arranhar por dentro. Tênis batendo no cimento quente, respiro alto, mão na mochila pra não bater na lombar. Passei por dois meninos soltando pipa, um gritou “calma, tia!”, nem ouvi direito. Uma moto cortou perto demais; o vento quente bateu na minha cara e quase levou o meu coque torto junto.
Cada esquina tinha um som. Um casal discutindo baixo, um bebê chorando, o plá plá plá do chinelo batendo seco na sola de alguém apressado. Meu olho procurava caminho livre e minha cabeça fazia promessa.
Deus, eu faço qualquer coisa. Eu juro. Me dá tempo. Só tempo.
Eu queria ligar de novo pra Dona Neide, perguntar “respira, ele tá respirando?”, mas a mão suava e o pensamento dizia que cada segundo no telefone era um segundo a menos correndo. Apertei o passo.
Dobrei a ruazinha estreita onde sempre tem uma poça eterna — pulei, errei, molhei o tênis. O cheiro de mofo subiu. Apressada, corri mais. Senti o coração pulando na garganta. Senti vontade de chorar. Segurei.
O telefone vibrou de novo. Atendi sem parar de correr.
— Tô chegando, Dona Neide — falei ofegante.
— Ele tá deitado agora, eu coloquei uma almofada, botei a perna dele pra cima, mas ele tá muito suado… — a voz dela veio num fio. — Milena, vem com cuidado, mas vem.
— Tô na ladeira da vendinha do Anselmo, falta pouco — menti, faltava mais do que eu queria. — Fala pro meu pai que eu já tô subindo, tá? Que eu tô chegando.
— Eu falo. Ele perguntou de ti. — ela baixou a voz, como quem não quer que o medo escute. — Disse: “cadê minha pequena?”
A frase me atravessou.
Minha pequena. Eu sempre fui.
— Eu tô chegando — repeti, desligando antes de desabar.
O sol ardeu mais forte, ou foi meu corpo pedindo arrego. Um cachorro latiu do meu lado, me assustei, quase pisei num brinquedo de plástico no chão. “Vai, Milena.” Minhas pernas obedeceram. Subi a parte mais íngreme com a boca seca, a visão piscando em preto nas laterais. “Vai, Milena.” A vontade de vomitar deu um oi e passou. Eu não ia parar.
Cada passo, uma promessa, um pedido, um pacto que eu não sabia com quem tava fazendo.
Respirei fundo, juntei todo resto de força que tinha e disparei. Meu corpo foi primeiro; minha cabeça veio atrás. O gosto de ferro na boca, o suor entrando no olho, ardendo. Ouvi alguém me chamar pelo nome — não virei. Ouvi outra voz gritar “tá tudo bem?” — não respondi.
Eu corro.
E corro.
E, no meio da subida que parece não acabar nunca, a única coisa que eu consigo pensar, repetindo como um mantra, é:
Pai, aguenta.
Eu tô chegando.