Capítulo 4
FERA NARRANDO
Momentos antes...
Junin é insistente pra carälho. Quando ele coloca uma ideia na cabeça, parece que tá com bicho carpinteiro no ouvido e não larga do meu pé. Mandou mensagem cedo, depois ligou, depois mandou mensagem de novo, era uma porrä mesmo.
— Cola aqui na boca, irmão — ele mandou mensagem logo cedo. — Te mostro o bägulho. Vai curtir.
Curioso, desci pra ver que merdä era essa que ele tava falando desde ontem. Fui pra minha sala e ele chegou com aquele sorriso de quem acha que resolveu o problema do mundo.
— Aqui, ó. Perfil da mina. — Ele deslizou o dedo. Vi foto, mais foto, mais foto.
Na tela, uma mina toda montada, cabelo escovado, unha gigante, cara cheia de maquiagem, cintura apertada em body, pose de modelo de Instagräm, legenda com frase coach e mil comentário de “linda, amiga”. Rosto bonito, sim. Corpo de academia com drenagem, sim. Mas… plástico demais.
Parecia pronta pra entrar num reality show, não pra aguentar o peso de parir filho de dono de morro.
Eu olhei e já fechei a cara.
— Junin, nunca uma mina dessa vai querer estragar o corpo parindo — falei seco.
Ele deu de ombros.
— Dinheiro bom até santo duvida. Com o valor certo, até essa aí vira devota do teu legado.
Revirei os olhos. Acendi um balão e soltei a fumaça devagar, olhando sem ver. O algoritmo cuspiu um monte de outras parecidas, todas encaixotadas no mesmo molde. Bonitas, sim. Mas eu não tô comprando enfeite de estante.
— Não gostei. E não quero saber dessa porrä de ficar procurando perfil em aplicativo. Parece leilão de gente. É isso que tu chama de “resolver”?
— Cäralho, Bruno, tu é chato pra porrä — ele riu, guardando o celular no bolso. — Parece velho de 70 reclamando do Spotify. Tu quer que a mulher caia do céu com um bilhete amarrado na testa “barriga de aluguel disponível”?
— Eu quero alguém que sirva pro que eu preciso. É melhor do que ficar gastando meu tempo vendo mina que eu já sei que não serve — respondi, sem elevar a voz. — Postura. Cabeça. Silêncio. E que vá embora depois. Essas daí querem holofote. Querem história. E eu não sou história de ninguém.
Junin ergueu as mãos, rendido.
— Tá bom, ô príncipe difícil. Então vamos fazer o seguinte: esquece essa porrä de perfil e cola no point comigo e com a tropa. Bora dar uma descontraída.
Eu ia negär. Meu primeiro instinto foi dizer “não”, como sempre. Eu não sou muito de sair assim, sem motivo. Mas aí ele insistiu de novo, jogando aquele argumento de que eu vivo só enfurnado na boca ou no alto do morro, e que até pedra precisa de um gole de cerveja às vezes.
Eu funciono melhor no alto, no silêncio, com a favela inteira debaixo. Junin tinha razão numa coisa: pedra também trinca se ficar no mesmo lugar.
Acabei cedendo.
— Tá, vamos nessa merdä. Mas é rapidinho. — falei, pegando o boné. — Não quero papo furado.
— Sabia que cê vinha. — Ele sorriu. — O morro merece ver tua cara hoje.
Descemos pro point. O som tava estourando nas caixas, aquele funk pesado que faz o chão tremer. Luzes piscando, gente rindo, copo cheio pra todo lado. Aquele clima que eu já conheço de cor. A tropa tava quase toda lá, espalhada nas mesas, risada alta, brinde batendo, soldado contando vantagem. Aquele clima que eu conheço de cor, só que visto de fora, como quem observa um aquário cheio de peixe inquieto. Junin foi logo cumprimentando geral.
Cumprimentei alguns com o queixo. Não sou de abraço, não sou de abrir os dentes atoa.
Junin foi abrindo caminho, chamando a galera no braço, e me jogou uma garrafa gelada na mão.
— Relaxa, porrä. — disse ele, quase gritando pelo barulho. — Hoje não é dia de pauta.
Dei um gole. A cerveja desceu gelada, riscando o caminho.
Eu fiquei na minha, só observando. Soldado conversando sobre carregamento de arma, outro falando de umas minas que tavam por aqui, nada que eu já não tivesse visto mil vezes.
A conversa chegou em mim com o de sempre: logística, acerto de giro, recado de olheiro, uns dois comentários sobre facção vizinha mexendo peça, rumor de polícia com saudade de fazer mídia no morro. Eu ouvi, cortei, finalizei. Assunto encerrado. Quis me calar e só existir aqui, duas músicas, uma garrafa, nenhuma pergunta.
Foi quando eu virei o rosto e vi.
No balcão, atendendo rápido, cabelo preso num coque sem frescura, camiseta simples, calça jeans de guerra, ela.
Sem maquiagem gritando, sem unha de capa de revista, sem pose. Postura. Olhar atento. Não esbarrava o corpo em ninguém pra pedir passagem. Não jogava charme pra soldado. Não pegava o pedido com risadinha. Fazia o trampo: anotava, voltava, servia, limpava, resolvia problema do freezer como se já tivesse nascido dentro desse bar.
Algo nela me puxou o olhar.
Eu nem percebi que tinha ficado um tempo demais encarando, até o Junin largar o papo com um dos gerentes e me olhar de lado.
— Que foi?
— Quem é aquela? — apontei com o queixo, sem modulação.
Ele seguiu o meu olhar e sorriu fácil.
— Milena. Cria do morro. Gente da melhor qualidade.
— E o pai?
— Gilberto. Cara responsa, dos antigos. Já jogamos muita bola com ele no campinho. A mulher dele morreu no parto da menina, acredita? O cara criou ela sozinho. Humilde, sem caô. — Junin foi despejando informação com a vontade de sempre.
Virei a cara pra ele com desdém.
— Eu perguntei quem era, não pedi a ficha completa.
Ele gargalhou, levantando a mão.
— É que eu me empolgo, porrä. Mas é isso: Milena. Filha do Gilberto. Sempre morou aqui.
Virei pra olhar de novo. Ela tava na ponta do balcão, discutindo de leve com um cliente bêbado, sem perder a classe. Chegou mais perto, falou baixo, o bêbado recuou. Ela virou, pegou duas cervejas, abriu as garrafas no estalo seco e passou adiante. Sem cena, sem treta.
— Nunca vi essa menina aqui.
— Viu sim. — Junin rebateu na lata. — Tu que não presta atenção. Ela sempre morou aqui, sempre foi daqui.
Soltei um “hum”. Talvez. Ou talvez tinha alguma coisa nela que eu nunca tinha permitido enxergar. O morro te mostra tudo; a gente é que escolhe o que vê.
A música trocou. A batida cresceu, o público também. Um dos soldados fez graça com duas meninas, outra mesa gritou “desce mais uma”, copo batendo em copo, o calor subindo em camada. Eu bebi calado, mas continuei observando. Existindo na borda, eficiente em ser sombra onde todo mundo quer holofote.
Ela tinha um jeito diferente. Enquanto as outras ficavam jogando charme pros soldados e pro pessoal da tropa, ela parecia nem ligar. Fazia o trampo dela e pronto.
Voltei a conversar com a tropa, mas depois voltei a olhar pro balcão. A menina — Milena — já tava do outro lado, limpando uma bandeja, prendendo a respiração pra passar no meio de uma roda sem derramar uma gota. Tinha um jeito que eu respeito: foco. Zero olhar pedindo atenção. Zero “me nota”. É isso. Quem quer ser visto demais, some. Quem faz o que tem que fazer, fica.
— Tu tá analisando ela né? Te conheço filho da putä! — Junin provocou, rindo. — Vai que essa é a tal “mina diferenciada” que tu pediu pro céu.
Ignorei. Dei um gole. O gargalo frio tocou o lábio, baixei o olhar e observei, mas sem mäldade. Era leitura. No meu mundo, gente é mapa: aprende-se o terreno pelos passos.
As horas foram passando do jeito que passa na favela quando tudo parece normal: rápido sem pressa. A luz foi trocando de lado, o bar enchendo, esvaziando, enchendo de novo. Eu resolvi dois assuntos por mensagem, cortei uma fofoca da Magda com a mão, mandei um soldado ir pra outra ponta da quadra reforçar presença. Junin apareceu e sumiu três vezes, sempre trazendo a notícia do nada “tá tudo em dia”.
A gente bebeu mais umas, riu de umas piadas, trocou ideia sobre uns corres que tavam por vir, mas de vez em quando eu me pegava olhando pro balcão pra ver onde ela tava. Não era interesse, era curiosidade. Era só o fato de eu não lembrar de já ter visto ela antes que me deixava intrigado.
E aí, no meio de um refrão de funk que a rua inteira já sabia, aconteceu.
Vi Milena largar o copo que tava servindo no balcão como se o objeto tivesse ficado pesado demais de repente. O rosto dela mudou. Foi de foco pra urgência em um segundo. Ela levou a mão na cintura, como quem busca o celular, olhou pro visor com os olhos arregalados e… correu.
Não andou rápido. Correu.
Com cara de quem tinha acabado de receber notícia rüim.
Saiu do balcão sem pedir licença, passou por um cara na mesa do canto, quase derrubou uma cadeira, pediu “desculpa” no automático, prendeu o cabelo com um elástico que puxou do pulso e sumiu na direção da rua. A porta a engoliu. O bar ficou dois tons mais baixo e depois voltou ao normal, como se nada tivesse acontecido.
Eu franzi a testa.
— Viu isso? — perguntei, sem tirar os olhos do vão da porta.
Junin virou o rosto na hora.
— O quê?
— A garota. Saiu correndo como se a vida tivesse arrancado um pedaço dela.
— Deve ter dado rüim em casa. — ele chutou, simples. — Acontece. Aqui é morro.
Fiquei calado. O “aqui é morro” é explicação pra tudo e pra nada.
Soltei o ar devagar, sentindo a cerveja já morna na mão. O som voltou a crescer, os soldados voltaram a rir, e a rua retomou o teatro de sempre. Mas a minha cabeça ficou no vão da porta, na imagem dela sumindo sem olhar pra trás. Não era correria de quem lembrou do gás aberto, de quem discutiu com namorado, de quem perdeu a hora. Era desespero. E desespero tem cheiro. Eu sei.
Levei a garrafa à boca de novo, mas não bebi. Apoiei no joelho, os dedos batendo de leve no vidro, pensando sem querer pensar.
Estranho.
Muito estranho.
E, por algum motivo que eu não soube explicar, fiquei com aquilo na cabeça.