Capítulo 5

1002 Palavras
Capítulo 5 FERA NARRANDO Eu já vi muita coisa nesse morro. Já vi homem cair com tiro no meio da quadra, mulher fazer escândalo por causa de amante, vagabundo se vender por dois trocados. Mas aquela garota… saindo desesperada daquele jeito… tinha alguma coisa ali que me incomodava mais do que eu queria admitir. Eu até tentei voltar a minha atenção pro som, pro cheiro de churrasco que vinha da barraca do Sabão, pros moleques soltando pipa no canto da quadra. Mas a cena dela batendo o pé apressado, o cabelo voando no rosto e a respiração curta não saía da minha cabeça. Aos poucos, fui perdendo a paciência de ficar aqui. — Qual foi, Fera? — Junin se aproximou com um copo de cerveja na mão e o olhar de quem já tinha reparado que eu tava desligado. — Tá cedo ainda, mano. Hoje tá tranquilo na boca. Dá pra curtir mais um pouco. Olhei pra ele e balancei a cabeça. — Não tô afim. — Tá afim é de quê, então? — ele provocou, rindo. — Vai deixar o morro achar que o dono não sabe se divertir? — Não enche, Junin. — Passei a mão no queixo, sentindo aquela raiva surda crescer. Eu até tentei me concentrar na conversa com Junin, na música alta, no copo gelado na mão… mas a cena da garota saindo correndo do point não me saía da cabeça. Não era normal. Eu conheço muito bem o jeito das pessoas quando tão com pressa, e aquilo não era simples correria. Era desespero. Não é possivel que eu tava errado nessa porrä. Cruzei os braços, encostei na parede e fiquei alguns segundos só lembrando da expressão dela. O peito subindo e descendo rápido, o jeito que largou tudo pra trás. Merdä… que porrä eu tô fazendo me preocupando com isso? Sacudi a cabeça, mas não adiantou. O incômodo ficou. — Vou vazar — falei, largando o copo na mesa. — Tem certeza? — Sim. — Abaixei o boné e ajeitei a corrente no pescoço. — E minha irmã tá sozinha lá em casa. Essa última parte era verdade, mas também era só desculpa. Eu não queria explicar que ia sair daqui pra ver se encontrava uma garota que eu nem conhecia direito. Ele ergueu as mãos, como quem diz "tá bom", e não insistiu. Junin me conhece bem o suficiente pra saber que, quando eu falo desse jeito, não é pra insistir. Saí da quadra, sentindo o ar mais frio da noite bater no rosto. A rua tava movimentada, mas já menos cheia que horas antes. Cumprimentei uns soldados no caminho, subi na moto e liguei o motor. Eu podia simplesmente pegar o caminho mais curto pra minha casa, mas não fiz isso. Virei na direção que leva até a casa do Gilberto. Eu não conhecia ela direito. Mas depois que o Junin falou quem era o pai dela, dele eu lembrei. Gilberto. A gente já jogou muita bola junto no campinho do morro, então sei exatamente onde ele mora. Não que eu tivesse certeza de que a filha dele ia estar lá… mas se o desespero dela tinha motivo, era quase certeza que tinha ido pra casa. O barulho do motor ecoava pelas vielas enquanto eu acelerava devagar, olhando pros lados. A cada esquina, eu pensava: “Se ela não estiver aqui, azar. Dou meia-volta e pronto.” Mas não precisei ir muito longe. Logo na frente, a vi. Milena. Andando rápido, quase caindo, os olhos marejados, a respiração pesada, com os braços cruzados na frente do corpo como se quisesse se proteger do mundo. O coração dela parecia bater no pescoço e o rosto… parecia que tinha acabado de sair de uma briga com a vida. Acelerei até chegar do lado dela. — Ei. — Minha voz saiu mais grave do que eu planejei. Ela parou, virou o rosto pra mim. — Tá precisando de ajuda? Ela hesitou por um segundo, mas depois soltou as palavras como se não tivesse tempo pra pensar. — Pode me dar uma carona até em casa? — a voz dela saiu quase num fôlego só. — Meu pai… ele tá passando m*l. Meu olhar endureceu na hora. Olhei nos olhos dela por um segundo. Não vi mentira, só urgência. — Sobe aí. — Apontei com o queixo pra garupa. — Mas não se acostuma, não. Ela não respondeu, não discutiu, só subiu rápido. Segurou na lateral da moto, como se tivesse medo até de encostar em mim. Acelerei, cortando o vento e o silêncio pesado que se formou. No caminho, ela não falou nada. Eu também não. O vento batia no rosto dela, mas dava pra sentir a tensão no corpo, como se cada segundo fosse precioso. Eu sentia o peso da respiração dela atrás de mim, o jeito como o corpo parecia tenso, pronto pra pular a qualquer momento. Quando cheguei na porta da casa do Gilberto, ela desceu antes mesmo de eu desligar a moto. Nem olhou pra trás. Saiu praticamente correndo, abriu o portão e entrou, desaparecendo lá dentro. Fiquei parado aqui por uns segundos, olhando a porta fechada. Nem um “obrigada”, nem “tchau”. Nem um aceno. Nada. — Tá de säcanagem… — murmurei pra mim mesmo. — garota folgada do cäralho! Virei a moto, pronto pra ir embora, mas alguma coisa me fez segurar mais um pouco. Eu não sabia se era por preocupação com o Gilberto, ou se era aquela raiva silenciosa que tinha começado a borbulhar quando vi o jeito que ela me ignorou, sem nem ao menos agradecer. A noite tava fria, mas eu tava quente por dentro. E não era só pelo incômodo dela. Era porque, lá no fundo, eu sentia que essa história não ia acabar aqui. Papo reto sou ligeiro pra cäralho com as paradas que eu sinto, meu instinto não erra e eu não era de ignorar, essa mina ainda vai cruzar meu caminho e o motivo eu ainda não sei.
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