NARRADO POR MIGUEL SANTANA
O relógio marcava 05h12.
Ainda escuro.
O tipo de madrugada que parece segurar o ar antes do caos.
O pátio do batalhão tava vivo.
Homem andando pra todo lado, colete sendo ajustado, fuzil conferido, capacete travando no queixo.
A respiração era calma, mas o clima… tenso, como sempre é antes de descer.
— “Senhores, atenção!” — a voz do comandante cortou o ar, seca, firme.
Todo mundo parou.
O mapa do Complexo do Castelar tava aberto em cima da mesa metálica, com marcação vermelha em três becos.
Ponto Alfa, Bravo e Charlie.
Informante tinha passado o recado: o tráfico tava estocando armamento pesado dentro da escola abandonada no alto do morro.
Fuzil importado, granada, até lança-foguete.
Se o caveirão não subisse hoje, amanhã ia ser guerra de verdade.
— “Santana, tu puxa a linha de frente. Touro e n***o contigo. Entrada pelo Bravo. Sem margem pra erro.”
Assenti com a cabeça.
Sem palavra.
Caveira não promete. Cumpre.
Cada um sabe o que tem que fazer.
A tropa não conversa se entende no olhar.
Verifiquei o fuzil.
Carregador cheio, travado, conferi a mira.
Colete ajustado.
No bolso, só o básico: carregador extra, lanterna tática, granada de luz e o Santo Antônio no bolso esquerdo presente da minha mãe.
O caveirão já roncava lá fora.
Motor diesel, cheiro de ferro queimando e chuva fina caindo.
Entrei, sentei na frente.
Touro do lado, n***o atrás.
O comandante passou o rádio:
— “Equipe Alfa em movimento. Mantenham o rádio limpo. Comunicação só se for pra salvar vida.”
O barulho do motor engoliu o resto.
Ninguém fala no caveirão.
Todo mundo pensa.
Cada um conversa com o próprio medo do jeito que dá.
Touro puxou o cigarro, olhou pra mim e soltou:
— “Mais um dia no paraíso, capitão.”
— “O paraíso é o que vem depois da missão, irmão.”
Ele riu.
Riso seco, sem alegria.
Aquele tipo de riso que homem aprende quando já viu sangue demais.
O caveirão parou no sopé do morro.
Ponto Bravo.
— “Desembarca!” — gritei.
Porta abriu com tranco.
O barulho ecoou.
O chão ainda molhado da chuva, cheiro de barro e diesel.
Avançamos.
Em silêncio.
Formação tática.
Um atrás do outro, fuzil empunhado, olho vivo.
No beco, só o som das goteiras.
Luz fraca piscando no poste.
Cachorro latiu lá em cima sinal r**m.
Negão fez sinal de “dois” com os dedos.
Duas sombras, movimento lateral.
— “Contato.” — sussurrei no rádio.
A tropa se dividiu.
Touro seguiu pela esquerda, eu pela direita.
O primeiro tiro veio seco, rasgando o ar.
Reflexo.
Abaixei, mirei, respondi.
Três disparos curtos.
Um corpo caiu no barro.
O outro correu pro beco.
— “Avança!”
Subi correndo, o fuzil quente na mão.
Beco estreito, parede de tijolo, o barulho do coração misturado ao do rádio.
— “Um ferido confirmado. Homem armado fugindo pelo telhado.” — voz do n***o no rádio.
— “Sobe, sobe, sobe!” — gritei, e o time respondeu.
O morro virou labirinto.
Porta batendo, gente gritando, cortina abrindo.
O cheiro de café fresco misturado com pólvora.
No alto, o som dos passos.
Peguei impulso, subi o muro, encostei o joelho no telhado.
O homem corria com o fuzil nas costas.
Camisa rasgada, olhar de desespero.
— “Larga a arma! Polícia!” — gritei.
Ele virou o rosto devia ter uns vinte anos.
O tipo que nunca teve escolha.
Mas escolha ou não, apontou o fuzil.
Era ele ou eu.
Não pensei.
Treinei pra não pensar.
Dois tiros.
Secos.
Certeiros.
Silêncio.
O corpo caiu no telhado, o fuzil escorregou pro chão.
Desci devagar.
O coração batendo no mesmo ritmo do rádio.
Olhei o rosto do moleque.
Parecia cansado.
Só isso.
Fechei os olhos por um segundo.
Respirei fundo.
A missão não acaba quando o tiro para.
Acaba quando tu consegue respirar de novo.
— “Área segura.” — falei pro rádio. — “Material apreendido. Um neutralizado.”
O comandante respondeu:
— “Positivo, Capitão. Retorna com a equipe.”
Desci os degraus devagar, com o sol começando a nascer por trás do morro.
Lá de cima, dava pra ver o caveirão esperando, preto, imponente, cercado de fumaça e vapor.
A cidade acordava lá embaixo.
E eu…
Eu só pensava que cada missão deixava um pedaço de mim pra trás.
O rádio chiou de novo.
Outra operação. Outro nome. Outro endereço.
O mesmo inferno.
Abaixei a cabeça e subi no caveirão.
Pra quem é do BOPE, descanso é só o intervalo entre dois tiros.
.....
Meu nome é Miguel Santana, tenho vinte anos e carrego no peito o brasão do BOPE.
O mesmo peso que muitos homens mais velhos que eu não aguentam nem por um mês. E sim, esse “Santana” é o mesmo que o morro aprendeu a respeitar e temer.
Filho do Reinaldo Santana.
O Rey do Cruzeiro.
O homem que transformou caos em ordem e botou o nome da nossa família no alto à força, no sangue e na dor.
Mas eu não nasci pra continuar o trono.
Nasci pra provar que dá pra carregar o nome sem o peso do crime.
E é isso que eu faço, todo santo dia.
Deitado na cama da base, o fuzil do lado, o corpo ainda latejando da última operação, eu penso em tudo que precisei ser pra chegar aqui.
O BOPE não é quartel, é inferno controlado.
E pra entrar, tem que ser mais que forte tem que ser frio.
A cabeça no lugar, o coração blindado.
Tenho cicatriz no ombro esquerdo lembrança da primeira troca de tiro.
Tenho tatuagem no antebraço, escrita que carrego desde os 17: “Sem medo, sem volta.”
E tenho o sangue do meu pai correndo quente nas veias.
Só que o meu campo de guerra é outro.
Quando o caveirão desce o asfalto, o corpo inteiro se prepara.
O barulho do motor é batimento.
A mão vai pro gatilho sem pensar, mas a mente tá lá na frente, calculando.
É assim que a gente sobrevive.
Tem cara aqui dentro que acha que ser do BOPE é glória.
Eu sei que é dívida.
Dívida com o meu passado, com o nome que carrego, e com o morro que viu o filho do Rei vestir farda.
E eu não fujo disso, não.
Nunca perguntaram a profissão do meu pai e talvez seja melhor assim.
Mas se um dia perguntarem, eu não vou mentir.
E se alguém achar problema nisso, eu não penso duas vezes.
Porque eu sei quem eu sou.
Sou o moleque que aprendeu a mirar com o olhar do pai e a sentir com o coração da mãe.
Sou o homem que entra na guerra e volta limpo.
Sou Miguel Santana
filho do morro, homem da farda, e dono do próprio destino.