DEGUSTAÇÃO

1541 Palavras
NARRADO POR MIGUEL SANTANA O relógio marcava 02h47. O tipo de hora em que a cidade dorme e o inferno trabalha. — “Equipe Alfa, em posição.” — falei no rádio, a voz abafada pelo capacete. — “Positivo. Sem visual.” O caveirão parou a duzentos metros do ponto. O ar quente, denso, com cheiro de diesel e pólvora antiga. Na viela, só o barulho das gotas escorrendo das calhas e o zumbido de mosca. O alvo: uma casa de três andares no alto da favela do Jacaré. Tráfico pesado. Refém no segundo piso. E, como sempre, pouca chance de alguém sair inteiro. — “Santana, tu entra pela lateral.” — a voz do comandante veio firme. — “Positivo. Eu e Touro vamos abrir o corredor.” Desci do caveirão e senti o peso do chão molhado sob o coturno. Fuzil no ombro, respiração no compasso, visão limpa. O suor já escorrendo, mesmo no frio da madrugada. Um passo em falso e o inferno acorda. Avançamos. Silêncio absoluto. O beco estreito, o muro úmido, o vento parado. O primeiro som veio do andar de cima. Metal arrastando. Movimento. — “Contato.” — sussurrei. Três dedos erguidos. Sinal de invasão. Explosão controlada. BOOM! A porta estoura. A fumaça invade. O mundo vira clarão e grito. Homem armado na escada. Rajada curta. O som seco de corpo caindo no chão. Subo. Cada degrau uma ameaça. Cada sombra, um gatilho pronto. — “Refém visual!” — grita Touro. Uma mulher amarrada, chorando, fita na boca. Cabelo grudado de sangue. Eu corto a corda, puxo ela pro canto. — “Tá viva.” — confirmo no rádio. Mais dois vultos surgem da cozinha. Sem tempo pra pensar. O primeiro leva dois tiros no peito. O segundo tenta correr e é derrubado por um disparo certeiro. O cheiro de pólvora domina. O eco dos tiros ainda preso nas paredes. O rádio chia. — “Área limpa. Refém segura. Missão concluída.” Respiro fundo. O barulho de sirene ao longe. A fumaça ainda no ar. — “Vamos pra base.” — o comandante ordena. No caveirão, o silêncio é o mesmo de um velório. A adrenalina descendo devagar, o corpo cansado, mas alerta. Touro acende um cigarro escondido. O cheiro mistura com o sangue seco e o suor. — “Mais uma noite no paraíso.” — ele murmura. Eu só balanço a cabeça. Pra quem é do BOPE, paraíso é qualquer lugar onde a bala para de cantar. Horas depois, o sol já começava a nascer quando o caveirão cruzou o asfalto de volta pra base. Mas eu não fui pra casa. Não dava. Não depois daquilo. Peguei o carro e segui direção ao Cruzeiro. Meu morro. Meu passado. Meu peso. A cidade ainda acordava padaria abrindo, rádio tocando pagode velho, as ruas molhadas de chuva. Mas quando o carro começou a subir a ladeira, tudo ficou igual antes: o cheiro de café, o grito das crianças, o som das motos no beco. O Cruzeiro nunca muda. Só a gente muda. Desliguei o motor, tirei o colete e subi os degraus até o alto da laje. O vento da manhã batendo forte, misturando cheiro de churrasco antigo e maresia distante. E lá estava ele. Reinaldo Santana. O homem que ainda é o Rey do Cruzeiro, mesmo sem precisar levantar um dedo. Quem manda no morro sem piscar, e ao mesmo tempo é o cara que vira moleque quando tá com os filhos por perto. Sentado na beira da laje, camisa aberta no peito, cigarro esquecido entre os dedos, olhando o amanhecer como quem observa o próprio reinado. O sol ainda tímido coloria as vielas embaixo, o Cruzeiro acordando aos poucos barulho de rádio, panela batendo, gente gritando “bom dia” lá da esquina. Subi devagar, o corpo ainda pesado da operação. O fuzil ficou no carro, mas o cheiro de pólvora ainda tava em mim. Rey virou o rosto quando me viu, e o sorriso apareceu lento, verdadeiro. Daquele tipo que não se vê no morro, só em casa. — “Olha só quem resolveu dar as caras.” — a voz dele saiu rouca, meio arrastada, mas carregada de orgulho. — “Missão longa.” — respondi, me aproximando. — “Mas acabou bem.” — “Eu vi na TV. BOPE desceu o Jacaré, né? Foi tu lá no comando?” Assenti. Ele tragou fundo o cigarro e balançou a cabeça, o olhar fixo no horizonte. — “Orgulho, moleque. Tu fez o que eu nunca pude fazer. Entrar armado… e sair limpo.” Aquela frase pesou mais que qualquer medalha. Porque ali, naquele morro, todo mundo sabia quem ele era e saber que o Rey se orgulhava de mim era mais que bênção. Era como se o Cruzeiro inteiro me aceitasse de novo. Antes que eu respondesse, uma voz leve veio correndo pelos degraus: — “Miguel!!!” Olhei e vi a pequena Manuela vindo descalça, o cabelo preso torto, sorriso aberto. Minha irmã. Cinco anos. Um furacão em tamanho miniatura. Ela se jogou no meu colo sem freio nenhum. — “Mamãe disse que tu tava no jornal!” — falou ofegante. — “Eu vi! Tu é o policial que corre com arma de verdade!” Soltei uma risada curta, ajeitando ela no braço. — “Sou, mas tu promete que nunca vai fazer o que eu faço, hein?” — “Prometo nada.” — ela respondeu, com aquele atrevimento Santana no olhar. Rey riu alto, batendo a palma no joelho. — “Essa aí puxou a língua da mãe e a coragem do pai. Tamo ferrado, Miguel.” O riso dele encheu a laje. Era raro. Mas quando vinha, fazia até o vento parar pra ouvir. A Manu encostou a cabeça no meu ombro, curiosa. — “Tu vai embora de novo, é?” Engoli seco. — “Daqui a pouco. Tenho que voltar pra base.” — “Então promete que vem pra festa do meu aniversário. Mamãe disse que vai ter bolo de chocolate.” — “Prometo.” — falei, sem pensar. — “De qualquer jeito, eu volto.” Rey me olhou nesse instante. Aquele olhar dele firme, calmo, cheio de verdade. — “E volta mesmo, filho. Porque tua mãe só dorme tranquila quando te ouve chegar.” Ficamos em silêncio por alguns segundos. Ele apagou o cigarro, apoiou o cotovelo no joelho e me encarou com aquele orgulho sereno de quem já viu de tudo. — “Tu honra o nome, Miguel. Farda bonita, cabeça no lugar. Eu sei o peso que tu carrega, mas tu tá indo no caminho certo.” — “Nem sempre eu tenho certeza.” — confessei, olhando o chão. — “Tem dia que parece que o certo e o errado se misturam.” Rey assentiu, sem hesitar. — “Mistura mesmo. O mundo é isso, meu filho. Mas o sangue bom não se perde. Tu é Santana… e isso significa que quando o fogo vem, a gente aguenta.” A voz dele tinha aquela firmeza tranquila, o tipo que dá força sem precisar levantar tom. — “E se um dia o mundo quiser te dobrar…” — ele completou, colocando a mão pesada no meu ombro — “... lembra que teu pai tá aqui. Sempre.” Olhei pra ele. Pro homem que um dia foi o terror dos becos e hoje era o alicerce da nossa família. E percebi o que todo mundo no morro sempre soube: Rey não precisava mandar pra ser rei. Ele só precisava existir. O sol já subia quando minha mãe apareceu na porta, com o avental e o sorriso de quem sabe de tudo. — “Cês vão tomar café ou vão deixar o pão esfriar?” Rey riu, me empurrou de leve. — “Vai lá, soldado. Antes que ela venha buscar a gente a chinelada.” Peguei minha irmã no colo e desci os degraus, sentindo o cheiro do café se espalhando. Por um instante, tudo pareceu simples. Família, risada, o morro acordando. Mas lá no fundo, eu sabia. A calmaria nunca dura pra quem nasceu entre a farda e o trono. E quando o rádio no meu cinto começou a chiar de novo, anunciando nova operação, eu só fechei os olhos e respirei fundo. Porque o homem pode tentar ser dois. Mas o destino… só escolhe um. ✨ Recado da Autora — Val Veiga ✍🏻 Meninas… respirem fundo, porque a tropa vai descer. 🚨 Entre o tráfico e o bope estreia dia 01 de novembro com atualizações diárias. A história do Capitão Miguel Santana, o homem que nasceu no morro, vestiu a farda e carrega no peito o peso de dois mundos. Um filho criado entre o crime e a lei. Um soldado que o Estado aplaude… e o morro respeita. Mas quando o alvo tem o mesmo sangue que ele, a guerra deixa de ser missão vira escolha. ⚡ Se preparem: o BOPE vai subir, o Cruzeiro vai acordar, e o sangue vai cobrar o preço do trono. 👑 Entre a Tráfico e o Bope 🖤 Lançamento oficial: 01/11 📲 Atualização diária até o último respiro.
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