NARRADO POR MIGUEL SANTANA
O relógio marcava 02h47.
O tipo de hora em que a cidade dorme e o inferno trabalha.
— “Equipe Alfa, em posição.” — falei no rádio, a voz abafada pelo capacete.
— “Positivo. Sem visual.”
O caveirão parou a duzentos metros do ponto.
O ar quente, denso, com cheiro de diesel e pólvora antiga.
Na viela, só o barulho das gotas escorrendo das calhas e o zumbido de mosca.
O alvo: uma casa de três andares no alto da favela do Jacaré.
Tráfico pesado.
Refém no segundo piso.
E, como sempre, pouca chance de alguém sair inteiro.
— “Santana, tu entra pela lateral.” — a voz do comandante veio firme.
— “Positivo. Eu e Touro vamos abrir o corredor.”
Desci do caveirão e senti o peso do chão molhado sob o coturno.
Fuzil no ombro, respiração no compasso, visão limpa.
O suor já escorrendo, mesmo no frio da madrugada.
Um passo em falso e o inferno acorda.
Avançamos.
Silêncio absoluto.
O beco estreito, o muro úmido, o vento parado.
O primeiro som veio do andar de cima.
Metal arrastando.
Movimento.
— “Contato.” — sussurrei.
Três dedos erguidos.
Sinal de invasão.
Explosão controlada.
BOOM!
A porta estoura.
A fumaça invade.
O mundo vira clarão e grito.
Homem armado na escada.
Rajada curta.
O som seco de corpo caindo no chão.
Subo.
Cada degrau uma ameaça.
Cada sombra, um gatilho pronto.
— “Refém visual!” — grita Touro.
Uma mulher amarrada, chorando, fita na boca.
Cabelo grudado de sangue.
Eu corto a corda, puxo ela pro canto.
— “Tá viva.” — confirmo no rádio.
Mais dois vultos surgem da cozinha.
Sem tempo pra pensar.
O primeiro leva dois tiros no peito.
O segundo tenta correr e é derrubado por um disparo certeiro.
O cheiro de pólvora domina.
O eco dos tiros ainda preso nas paredes.
O rádio chia.
— “Área limpa. Refém segura. Missão concluída.”
Respiro fundo.
O barulho de sirene ao longe.
A fumaça ainda no ar.
— “Vamos pra base.” — o comandante ordena.
No caveirão, o silêncio é o mesmo de um velório.
A adrenalina descendo devagar, o corpo cansado, mas alerta.
Touro acende um cigarro escondido.
O cheiro mistura com o sangue seco e o suor.
— “Mais uma noite no paraíso.” — ele murmura.
Eu só balanço a cabeça.
Pra quem é do BOPE, paraíso é qualquer lugar onde a bala para de cantar.
Horas depois, o sol já começava a nascer quando o caveirão cruzou o asfalto de volta pra base.
Mas eu não fui pra casa.
Não dava.
Não depois daquilo.
Peguei o carro e segui direção ao Cruzeiro.
Meu morro.
Meu passado.
Meu peso.
A cidade ainda acordava padaria abrindo, rádio tocando pagode velho, as ruas molhadas de chuva.
Mas quando o carro começou a subir a ladeira, tudo ficou igual antes: o cheiro de café, o grito das crianças, o som das motos no beco.
O Cruzeiro nunca muda.
Só a gente muda.
Desliguei o motor, tirei o colete e subi os degraus até o alto da laje.
O vento da manhã batendo forte, misturando cheiro de churrasco antigo e maresia distante.
E lá estava ele.
Reinaldo Santana.
O homem que ainda é o Rey do Cruzeiro, mesmo sem precisar levantar um dedo.
Quem manda no morro sem piscar, e ao mesmo tempo é o cara que vira moleque quando tá com os filhos por perto.
Sentado na beira da laje, camisa aberta no peito, cigarro esquecido entre os dedos, olhando o amanhecer como quem observa o próprio reinado.
O sol ainda tímido coloria as vielas embaixo, o Cruzeiro acordando aos poucos barulho de rádio, panela batendo, gente gritando “bom dia” lá da esquina.
Subi devagar, o corpo ainda pesado da operação.
O fuzil ficou no carro, mas o cheiro de pólvora ainda tava em mim.
Rey virou o rosto quando me viu, e o sorriso apareceu lento, verdadeiro.
Daquele tipo que não se vê no morro, só em casa.
— “Olha só quem resolveu dar as caras.” — a voz dele saiu rouca, meio arrastada, mas carregada de orgulho.
— “Missão longa.” — respondi, me aproximando. — “Mas acabou bem.”
— “Eu vi na TV. BOPE desceu o Jacaré, né? Foi tu lá no comando?”
Assenti.
Ele tragou fundo o cigarro e balançou a cabeça, o olhar fixo no horizonte.
— “Orgulho, moleque. Tu fez o que eu nunca pude fazer. Entrar armado… e sair limpo.”
Aquela frase pesou mais que qualquer medalha.
Porque ali, naquele morro, todo mundo sabia quem ele era e saber que o Rey se orgulhava de mim era mais que bênção.
Era como se o Cruzeiro inteiro me aceitasse de novo.
Antes que eu respondesse, uma voz leve veio correndo pelos degraus:
— “Miguel!!!”
Olhei e vi a pequena Manuela vindo descalça, o cabelo preso torto, sorriso aberto.
Minha irmã.
Cinco anos. Um furacão em tamanho miniatura.
Ela se jogou no meu colo sem freio nenhum.
— “Mamãe disse que tu tava no jornal!” — falou ofegante. — “Eu vi! Tu é o policial que corre com arma de verdade!”
Soltei uma risada curta, ajeitando ela no braço.
— “Sou, mas tu promete que nunca vai fazer o que eu faço, hein?”
— “Prometo nada.” — ela respondeu, com aquele atrevimento Santana no olhar.
Rey riu alto, batendo a palma no joelho.
— “Essa aí puxou a língua da mãe e a coragem do pai. Tamo ferrado, Miguel.”
O riso dele encheu a laje.
Era raro.
Mas quando vinha, fazia até o vento parar pra ouvir.
A Manu encostou a cabeça no meu ombro, curiosa.
— “Tu vai embora de novo, é?”
Engoli seco.
— “Daqui a pouco. Tenho que voltar pra base.”
— “Então promete que vem pra festa do meu aniversário. Mamãe disse que vai ter bolo de chocolate.”
— “Prometo.” — falei, sem pensar. — “De qualquer jeito, eu volto.”
Rey me olhou nesse instante.
Aquele olhar dele firme, calmo, cheio de verdade.
— “E volta mesmo, filho. Porque tua mãe só dorme tranquila quando te ouve chegar.”
Ficamos em silêncio por alguns segundos.
Ele apagou o cigarro, apoiou o cotovelo no joelho e me encarou com aquele orgulho sereno de quem já viu de tudo.
— “Tu honra o nome, Miguel. Farda bonita, cabeça no lugar. Eu sei o peso que tu carrega, mas tu tá indo no caminho certo.”
— “Nem sempre eu tenho certeza.” — confessei, olhando o chão. — “Tem dia que parece que o certo e o errado se misturam.”
Rey assentiu, sem hesitar.
— “Mistura mesmo. O mundo é isso, meu filho. Mas o sangue bom não se perde. Tu é Santana… e isso significa que quando o fogo vem, a gente aguenta.”
A voz dele tinha aquela firmeza tranquila, o tipo que dá força sem precisar levantar tom.
— “E se um dia o mundo quiser te dobrar…” — ele completou, colocando a mão pesada no meu ombro — “... lembra que teu pai tá aqui. Sempre.”
Olhei pra ele.
Pro homem que um dia foi o terror dos becos e hoje era o alicerce da nossa família.
E percebi o que todo mundo no morro sempre soube:
Rey não precisava mandar pra ser rei.
Ele só precisava existir.
O sol já subia quando minha mãe apareceu na porta, com o avental e o sorriso de quem sabe de tudo.
— “Cês vão tomar café ou vão deixar o pão esfriar?”
Rey riu, me empurrou de leve.
— “Vai lá, soldado. Antes que ela venha buscar a gente a chinelada.”
Peguei minha irmã no colo e desci os degraus, sentindo o cheiro do café se espalhando.
Por um instante, tudo pareceu simples.
Família, risada, o morro acordando.
Mas lá no fundo, eu sabia.
A calmaria nunca dura pra quem nasceu entre a farda e o trono.
E quando o rádio no meu cinto começou a chiar de novo, anunciando nova operação, eu só fechei os olhos e respirei fundo.
Porque o homem pode tentar ser dois.
Mas o destino… só escolhe um.
✨ Recado da Autora — Val Veiga ✍🏻
Meninas… respirem fundo, porque a tropa vai descer.
🚨 Entre o tráfico e o bope estreia dia 01 de novembro com atualizações diárias.
A história do Capitão Miguel Santana, o homem que nasceu no morro, vestiu a farda e carrega no peito o peso de dois mundos.
Um filho criado entre o crime e a lei.
Um soldado que o Estado aplaude… e o morro respeita.
Mas quando o alvo tem o mesmo sangue que ele, a guerra deixa de ser missão vira escolha.
⚡ Se preparem: o BOPE vai subir, o Cruzeiro vai acordar, e o sangue vai cobrar o preço do trono.
👑 Entre a Tráfico e o Bope
🖤 Lançamento oficial: 01/11
📲 Atualização diária até o último respiro.