Elisa narrando
Acordei assustada com o sol do Rio de Janeiro batendo no vidro e queimando meu rosto. Levanto, ainda de olhos fechados, e vou direto para o banheiro. Tiro o camisão e a calcinha, já entrando debaixo do chuveiro. Tomo um banho completo, aproveitando os shampoos que o hotel oferece, esfregando bem o corpo e o cabelo.
Saio enrolada numa toalha fofinha e macia, lembrando das coisas que o Farelo arranjou para mim. Menos uma preocupação, por enquanto. Pego a roupa suja, coloco no saquinho e a guardo na mala. Pego uma calcinha e um sutiã limpos, visto uma regatinha com renda no peito e coloco uma calça jeans. Calço uma meia soquete, meu Adidas branco, passo desodorante, um pouquinho de perfume e protetor solar no rosto e nos braços. Guardo tudo de volta na mala.
Coloco as coisas na bolsa, tiro o celular da tomada, guardo o carregador e abro o aplicativo do Uber. Chamo um carro, e assim que aceitam, já faço o pagamento. Guardo o celular no bolso, verifico se não estou deixando nada para trás e esvazio o frigobar, pegando duas garrafinhas de água. Viro uma de 500 ml de uma vez, jogo a garrafa no lixo e coloco a outra na bolsa. Com a bolsa pendurada no ombro, saio do quarto.
Passo pela recepção e deixo a chave. O celular vibra, avisando que o carro chegou. O porteiro me ajuda a colocar a mala no Uber.
Motorista: — Só na barreira?— Balanço a cabeça e reviro os olhos. Já estou ligada nessas paradas.
Farelo: — Olha, espera aí que eu pego pra tu, princesa!— diz ele, correndo até o Uber. Pega minha bolsa, me entrega e sai puxando as duas malas.
Desconhecido: — Já tá de olho na moradora nova, né, Farelo?— diz um, tirando sarro. Farelo faz cara marrenta, solta uma das malas e mostra o dedo do meio.
Farelo: — Já que trabalhar ninguém quer, vão tudo tomar no **! — responde nervoso.
Elisa: — Calma, Farelo. Eles estão falando a verdade? — Pergunto séria, ainda sem acreditar.
Farelo: — Fica sussa, enfermeirinha. Tô na minha, pô, papo reto, tô de boa.— Ele fala de um jeito que me faz sorrir. Ele assovia para um dos meninos que estava encostado no carro, que vem e coloca as malas no porta-malas. O garoto joga a chave para ele, e Farelo faz sinal para eu entrar no carro.
Elisa:— Obrigada, Farelo. Não sei o que seria da minha vida sem você.— digo, quando ele deixa minhas coisas na sala da minha nova casa.
Farelo: — Que isso, princesa, precisando é só chamar. — Ele assovia para um dos meninos lá fora. — Umas coisinhas que eu sei que tu vai precisar de início, mas não fica acanhada. Se precisar de algo, saia e compre, fique à vontade, a favela é nossa. — Diz, me entregando quatro sacolas pesadas.
Elisa: — Farelo, não precisava, sério.— Falo, franzindo as sobrancelhas. — Mas vou aceitar. Só que preciso fazer umas compras. — Ele sorri de lado e aponta para a cozinha. Quando olho, vejo a bancada cheia de frutas e verduras.
Balanço a cabeça, incrédula. Abro a geladeira e o freezer, ambos estão cheios.
Farelo: — Só uns presentinhos de boas-vindas. — Eu o encaro, sem acreditar. Ele, que m*l me conhece, fez mais por mim do que minha própria família faria. — Não precisa agradecer. Até logo. — diz, saindo antes que eu pudesse falar.
Subo com as malas e as deixo no quarto. Coloco tudo no pequeno closet, tiro a calça jeans e visto um short fresquinho. Tiro o sutiã e troco de blusa. Calço uma sandália, prendo o cabelo e pego o celular.
Desço e começo a organizar as coisas: guardo as compras nos armários, as frutas na fruteira. Preciso providenciar uma omeleteira e uma sanduicheira, são as duas coisas que me salvam a qualquer hora do dia, mas acho que consigo comprar no morro, não preciso sair.
Elisa: — Vencida? — Olho para o espelho e me vejo acabada, nem pareço a herdeira dos Andradas. — Com certeza fui vencida, aff. Queria ir ao comércio, mas vou me virar por aqui mesmo. Amanhã cedo vejo o que faço.
Desconhecida: — Ó, de dentro! — Ouço uma voz de mulher me chamando no portão. Desligo o fogo e vou até a porta.
Elisa: — Pois não? Deseja alguma coisa? — Pergunto ao ver uma morena de uns 18 anos.
Desconhecida: "Moradora nova?" — Paro, sem saber se respondo. Olho para o outro lado da rua e vejo os meninos da barreira de mais cedo, junto com o Farelo. — "Oi, terra chamando. Eu sou a Déia. Só queria olhar na sua cara e ver se você é isso tudo mesmo." — Me engasgo com o ar, sem acreditar no que ouvi.
Elisa: "Como é que é? Déia, né? Olha, eu não sou nada, sou uma mulher simples, do jeito que você tá vendo. Agora, se me dá licença, tô ocupada." — Sou educada, mas direta quando preciso.
Déia: "Desculpa aí, mas já vi que não é lá essas coisas." — Ela vira as costas, e penso em responder, mas decido deixar para lá. Bato a porta e entro.
Era o que me faltava. m*l cheguei e o povo já tá de olho. Mas, fazer o quê? Gente curiosa tem em todo lugar. Aqui no Rio não ia ser diferente. Pelo menos são uns Fifi diferentes dos meus vizinhos de Sampa. Mas se ela veio à minha porta, com certeza já estão falando de mim. Quero me manter longe de fofoca.
Elisa: "Agora vai ser toda hora?" — Abro a porta ao ouvir palmas.
Patolino: "De coé da Déia?" — Um dos meninos que vi ontem fala, me olhando de cima a baixo. Balanço a cabeça negando.
Elisa: "Nada demais. Você deseja alguma coisa?" — Ele fica calado, esfrega as mãos, olha para os lados, um olho meio fechado e outro aberto, passa a língua nos lábios.
Farelo: "QUER PORRÄ NENHUMA!" — Farelo chega, gritando, e o menino se assusta, levantando as mãos. — "Volta pro seu posto. Até onde eu sei, a Elisa tá bem, né, Elisa?" — Apenas balanço a cabeça. — "Então, fechou." — Ele sai, e eu abro o portão. Olho para os dois lados, a visão do início da noite é perfeita. Suspiro, esvaziando o pulmão. Déia, do outro lado da rua, faz um sinal e manda um beijo.
Sou desconfiada. Não é todo mundo que se aproxima de mim, porque sou arisca. Quando a esmola é muita, o santo desconfia..