Os sapatos lustrados ecoavam pelos corredores m*l iluminados. Na medida em que o Imperador descia as escadas, mais escuro ficava. Os guarda costas formavam uma fileira atrás dele, e cochichavam em seus comunicadores avisando os carcereiros sobre a visita do governante. Quando ele se aproximou do final do corredor, o porteiro já mantinha os pesados portões de ferro abertos, curvando a cabeça respeitosamente.
O Imperador fez sinal com a mão, e os guarda costas pararam de se mover, adquirindo outra formação de guarda. Dali em frente, ele seguiria sozinho.
Vale de Ébano era uma prisão subterrânea antiga, da qual a maioria das pessoas sequer sabem de sua existência. Ou pensam que existiu algum dia, mas que se perdera com o tempo. Atualmente utilizada para aprisionar os mais perigosos criminosos do Império, mantendo-os sob constante vigilância e — dependendo do grau de periculosidade — sob tortura.
Um lugar onde não existia sol. Onde não existia liberdade. Apenas os movimentos mecânicos das câmeras de vigilância e os passos dos guardas.
Na câmara mais profunda, cuja porta era de ferro pesado sem nenhuma a******a, estava o seu alvo. O Imperador respirou fundo e acenou com a cabeça para o guarda, que girou a pesada maçaneta. O ruído da porta anunciava a sua chegada.
Dando um passo dentro, os lábios do Imperador se apertaram. Forçando-se a não esboçar nenhuma outra reação, ele deu alguns passos até o rapaz que estava acorrentado numa cadeira. Suas roupas estavam amassadas e rasgadas, sua pele suja de sangue e fuligem. Mesmo que estivesse uma bagunça completa, o rapaz parecia relaxado.
Lentamente os olhos flamejantes se ergueram e um sorriso malicioso despontou dos seus lábios.
— Oh… as suas constantes visitas estão começando a ser o meu único entretenimento.
O Imperador rosnou baixo, parando em frente do rapaz.
— Acredito que não esteja em posição para fazer brincadeiras. Por acaso não se arrepende do que fez?
O rapaz ergueu a cabeça, os cabelos brancos caídos sobre seu rosto delineado. Os olhos ferozes e brilhantes, numa sede de sangue imaginária, fez o Imperador hesitar.
— Por que eu deveria? Eu disse que foi legítima defesa.
— Você deu motivos suficientes para Haeron te colocar aqui e ganhar a simpatia dos figurões. Sua reputação está manchada.
Um riso seco ecoou por toda a câmara. O rapaz inclinou a cabeça, uma expressão perigosa se espalhando.
— Minha reputação foi construída por todas as fofocas m*l intencionadas. Apenas fiz o favor de tornar os seus sonhos realidade. O problema é que isso já está ficando entediante.
O Imperador soltou um suspiro pesado sentando-se numa cadeira. Ficando de frente ao rapaz, o Imperador cruzou as pernas mantendo a compostura séria de um governante tirânico.
— Posso te garantir a liberdade, caso aceite o meu acordo.
O silêncio permeou entre eles, até que o rapaz soltasse uma risada. Rouca, que reverberou pela câmera.
— Parece que alguém andou acertando os seus nervos. Por acaso quer que eu elimine alguém?
— Não seja tão bárbaro.
— Qual a necessidade quando é justamente isso o que está me pedindo? Nem mesmo negou.
O Imperador arqueou a sobrancelha, estalando a língua. Se sentia contrariado, mas não iria começar uma discussão sobre bons comportamentos agora.
— Haeron está indo para o Sul com a intenção de inspecionar a fronteira.
— Uau, parece que a rainha realmente não se esqueceu do Grão-duque — zombou o rapaz, que desviou a perna quando o Imperador iria chutá-lo — Olha a agressividade…
— Continua sendo um moleque m*l criado. Já que está a zombar de mim tão livremente, então ao menos faça isso longe dos meus ouvidos.
— E qual seria a graça? — O rapaz deu de ombros, mas as correntes restringiram seus movimentos — Além disso, ir para o Sul para dar um “oi” a Haeron seria chato demais. Ele deve esta com a guarda alta.
Levantando-se, o Imperador o olhou sobre os ombros. Parecia prestes a fuzilá-lo com o olhar, algo que divertiria o rapaz preso.
— Conheço o meu filho bem o suficiente para saber que só está fingindo ser mantido por meras correntes. E caso busque por um motivo para sua liberdade, então apenas aceite o meu pedido.
Sem esperar por uma resposta, o Imperador deixou a cela. O rapaz o observou quieto, sorrindo divertido. O pedido do Imperador não era absurdo. Haeron indo para o Sul inspecionar as fronteiras era uma desculpa para alguma coisa. Só que também era a desculpa perfeita para que ele próprio fosse para o Sul.
O silêncio voltou a reinar na câmara após a saída do Imperador. O eco da porta blindada se fechando reverberou como um selo de condenação. O rapaz permaneceu sentado na cadeira de contenção, as correntes prendendo seus pulsos. Um sorriso lento curvou seus lábios, como se estivesse saboreando a própria desgraça.
— …um expurgo, é? — murmurou, encarando o teto úmido da prisão. — Eles nunca aprenderam a jogar limpo.
Passos se aproximaram, mas não tinham o peso dos carcereiros habituais. O rapaz não moveu um músculo, continuou relaxado com a perna esticada. Apenas fechou os olhos, ouvindo o ritmo firme, controlado. Então, uma voz abafada pela máscara de policial soou baixa:
— Hora da refeição.
Ele abriu os olhos e arqueou uma sobrancelha. O guarda abriu a pequena janela da pesada porta, sendo possível ver apenas seus olhos e a aba do seu quepe. Seus traços eram comuns demais para se destacar, e justamente por isso era impossível de suspeitar.
— Oh, pensei que me deixaria morrer de fome — o rapaz provocou.
Eles trocaram olhares silenciosos por meros segundos, até que o guarda suspirasse e fechasse a pequena janela. O rapaz não ouviu nenhum som dentro da câmera, mas ele podia imaginar o que o estava acontecendo. Suas suspeitas foram confirmadas quando a imensa porta rangiu e fora aberta pela segunda vez naquele dia. Ali, o guarda entrou deixando para trás o carcereiro inconsciente no chão.
— Seria mais fácil eu morrer do que você, Alteza. — o guarda aproximou-se ajoelhando na frente do rapaz acorrentado — Finalizei minha investigação. Como suspeitou, a Rainha parece ter descoberto algo sobre o Grão-duque Arbane. O Segundo Príncipe está sendo enviado para confirmar a informação.
O rapaz inclinou a cabeça levemente. Então deve ser o motivo do Imperador querer que ele vá para lá também, para impedir Haeron de descobrir o que quer que fosse. Pensou que seu pai e o Grão-duque tivessem rompido laços há décadas, estava errado?
— Continue.
O guarda se manteve ajoelhado respeitosamente, não demorando em continuar seu relatório.
— O espião que implantamos no Sul disse que o Grão-duque não parece ter enfraquecido de poder militar, porém também não mostra sinais de rebelião. Contudo, a fronteira tem estado agitada com ataques do exército de Khevia ultimamente.
— Interessante. Um país vizinho fazendo bagunça, meu querido irmão visitando o Sul repentinamente. — sua voz ficou mais baixa e grave na medida em que digeria as informações — Não parece ser o motivo ideal para participar de uma festa? O que mais descobriram?
— Ah… bem… — Forak suspirou e ergueu o rosto. Ele baixou mais a voz, como se temesse que as próprias pedras escutassem — O espião disse que o Grão-duque tem outro herdeiro além do senhor Khalid Arbane.
— Outro herdeiro? E por que teria outro sendo que adotou Khalid?
— Uma filha bastarda, Alteza. Por volta dos vinte e poucos anos, segundo o espião. Infelizmente perdemos o contato recentemente, presumo que o seu disfarce tenha sido arruinado.
O príncipe ficou em silêncio. Um brilho inflamado percorreu seus olhos vermelhos, cogitando os cenários possíveis para usar tal informação. As pesadas correntes apertaram o seu corpo novamente quando ele se moveu. Virando a cabeça para verificar suas mãos acorrentes, ele via o sangue seco grudado em sua pele.
Uma sensação desconfortável lhe atormentava, como uma voz fantasmagórica sussurrando no fundo de sua mente: encontre-a, persiga-a, devore-a. Como se o próprio d***o sussurrasse em seu ouvido, o rapaz balançou a cabeça tentando se concentrar no assunto em questão.
— Parece que conseguimos uma informação bem valiosa dessa vez. Hora de sairmos deste lugar.
O clique metálico ecoou como um trovão na cela. O rapaz moveu apenas o dedo para libertar as correntes que o prendiam. O som pesado do metal caindo no chão ecoou pela câmara, e ele finalmente se libertou. O príncipe flexionou os pulsos livres, sentindo o sangue voltar a circular, e depois inclinou a cabeça para Forak, interessado:
— Por acaso o seu nascimento seria um segredo grande o suficiente para arruinar a honra do Grão-duque? Se ela tem vinte e poucos anos, bate com a época em que a relação entre os Arbane e a Família Imperial ficou estremecida.
Forak olhou sobre o ombro, checando se havia alguém por perto. Então, ele se levantou, concordando com a cabeça.
— Não é uma hipótese a ser descartada. Sua Majestade sempre fica sensível quando o assunto é tocado, lembra?
Um som ecoou pelos corredores. Forak virou a cabeça sobre o ombro e então tirou uma adaga e a entregou ao rapaz.
— Estão vindo, Vossa Alteza.
O rapaz pegou a adaga com elegância, como quem aceita uma taça de vinho. No instante em que a primeira porta se abriu, ele avançou.
O primeiro guarda não teve nem tempo de erguer o rifle; ele cravou a lâmina no espaço entre as costelas com precisão cirúrgica. Girou o corpo, usando o homem como escudo contra os tiros que vieram em seguida. O sorriso do príncipe só se alargava a cada movimento, como se a prisão fosse um palco montado apenas para a sua dança.
Um chute lateral arremessou outro soldado contra a parede. O príncipe não apenas lutava — ele encenava uma execução elegante, onde cada golpe era uma assinatura da sua frieza.
Forak cobria suas costas, ágil, mas era claro que o centro da tempestade era o príncipe. Mesmo cercado, ele parecia ditar o ritmo da batalha, obrigando os inimigos a reagirem ao seu compasso.
Em menos de um minuto, o corredor estava coberto por corpos desacordados e armas espalhadas. O príncipe limpou a lâmina no uniforme de um dos soldados e a devolveu a Forak.
— Você desligou o sistema de vigilância antes de vir? — falou, ajeitando a gola da camisa manchada de sangue sem perder a compostura.
Forak respirou fundo, ainda ofegante.
— Sim, senhor. Não cometeria um erro de iniciante.
— Sendo assim, espero que já tenha tudo pronto para partirmos para o sul — O príncipe o interrompeu, os olhos faiscando com uma chama perigosa. Forak piscou e então bateu a palma da mão na própria testa — Ha… você ainda tem muito o que aprender.
Ele se virou, caminhando pelo corredor destruído como se fosse um príncipe atravessando um salão de baile. Forak o seguiu em silêncio, com o mesmo respeito quase reverente de um cavaleiro diante de seu senhor.
O príncipe passou pela última porta aberta e respirou o ar frio da noite. O Vale de Ébano se estendia diante dele, envolto em brumas.
Ele fechou os olhos por um instante, saboreando a sensação da liberdade recém-reconquistada.
— Ah… Pensei que morreria de tédio. Por mais que seja divertido brincar de polícia e ladrão, tenho um cisne para caçar.