Capítulo 19 – O Isco com Nome e Corpo

828 Palavras
O morro acordou mais calmo no dia seguinte. Mas foi aquele “calmo demais” que só engana quem não conhece a guerra. Eu já conhecia. E sabia: a próxima jogada era minha. --- — Tem certeza disso? — Gabriel perguntou, enquanto se vestia. — Tenho. — Bruna quer me atingir. Então vamos deixar ela tentar. — Amanda, isso é perigoso. — Se ela encostar em você… — Ela não vai encostar. — Ela vai se revelar. E aí você pega ela. Ele me olhou com aquele olhar de quem queria me proteger… mas também confiava. — Você é diferente. — Você me fez assim. — Não. — Você sempre foi assim. Só não sabia. --- Vesti uma calça jeans clara, uma regata justa e soltei o cabelo. Nada chamativo. Mas o suficiente pra dizer “eu tô bem”. Gabriel colocou dois homens me seguindo de longe. — Ninguém encosta nela. Só observem. — Quando ela aparecer, eu quero saber antes do primeiro passo dela. Eles assentiram. E eu desci o morro. Sozinha. Ou parecia. --- Fui até a feira. Cumprimentei a Dona Zuleide. Comprei pão. Fiz tudo que uma mulher comum faria numa manhã qualquer. Mas eu não era uma mulher comum. E aquela não era uma manhã qualquer. Senti o olhar antes de vê-la. Bruna. Encostada no muro do mercado, fingindo falar ao telefone. Ela me observava como se avaliasse um troféu. Ou uma presa. Mas eu era a iscada. Sorri de leve. Como se não soubesse. E continuei andando. --- Horas depois, Gabriel recebeu a mensagem: > “Ela mordeu. Mandou um dos caras dela atrás da Amanda. Tava fotografando.” Ele quase jogou o celular na parede. — Eu falei que ela ia cair — eu disse. — E você tinha razão. — Agora ela se colocou oficialmente contra mim. — O que vamos fazer? — Agora… a gente aperta. — Mas devagar. — Por quê? — Porque matar rápido é alívio. — Destruir devagar… é castigo. --- Nos dias seguintes, a movimentação no morro ficou intensa. Gabriel não dizia tudo que fazia. Mas eu sabia que as ruas estavam mudando. Bruna já não era vista com tanta liberdade. Alguns aliados dela sumiram. Outros… mudaram de lado. O jogo virou. E eu era parte do tabuleiro. --- — Você sabe o que me faz não cair, né? — disse Gabriel uma noite, enquanto olhava pela janela. — O quê? — Você. — Porque agora eu tenho algo a perder. E isso me deixa mais perigoso. — E se me tirarem de você? — Eu viro tudo aquilo que prometeram que eu nunca ia ser. — E o que seria isso? — Monstro. Me aproximei. Encostei a cabeça no peito dele. — Eu não vou sair do seu lado. — Mesmo que vire monstro. — Só não deixa que isso te consuma. — Eu sou morro agora. — E o morro também sangra. Eu aprendi isso. Ele me abraçou. Forte. Como quem segura um mundo inteiro nos braços. --- Mas o verdadeiro golpe não viria da rua. Viria de dentro. --- Na manhã seguinte, enquanto tomava café, recebi uma carta. Sim. Uma carta. Dobradinha. Escrita à mão. Abri. > “Todo castelo cai por dentro. E toda rainha tem uma dama traidora. Olhe pra quem senta ao seu lado.” Meu coração gelou. Mostrei pra Gabriel. — Isso foi entregue como? — O moleque disse que deixaram no portão. — Sem nome. — É da Bruna? — Com certeza. — Mas… quem seria essa "dama"? — Alguém próxima de você. Pensei. Revi tudo na mente. Dona Zuleide? As meninas da costura? Alguma vizinha? Ou… — A Cíntia. — murmurei. — Quem? — A nova vizinha. Se ofereceu pra me ajudar esses dias. — Se diz mãe solo. Sempre sabe onde eu tô. — Tá. — Vamos confirmar. --- Naquela tarde, deixei a Cíntia entrar pra “tomar um café”. Fingimos uma conversa leve. Mas no fundo, eu só observava. E vi. Ela olhou duas vezes pro meu celular. Perguntou por que Nando não estava por perto. Comentou sobre Gabriel de um jeito… íntimo demais. Meu corpo inteiro sabia. Ela era o elo. A “dama traidora”. Saí pra ligar pro Gabriel. — Confirma. É ela. — Não faz nada. — Só observa. — Hoje à noite, ela some. --- E assim foi. Na madrugada, Cíntia desapareceu do beco onde morava. Ninguém viu. Ninguém soube. E Gabriel também não explicou. Mas no dia seguinte, ele apareceu com um café na mão. — Aqui, minha rainha. — Pra começar o dia como merece. — Onde ela tá? — Onde não pode mais te machucar. — Isso é resposta? — É o que posso dar. — Nem toda justiça tem legenda. --- Pela primeira vez… me senti suja. Parte do mundo real que eu só tinha ouvido falar. Mas no fundo… eu também sabia: Era ela ou eu. E eu escolhi viver.
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