Discretamente, ela o pegou e o escondeu sob o casaco da NYU. Ellis não notou. Estava absorta, folheando o álbum com os olhos pesados de memórias e cansaço.
Donna se sentou ao seu lado. Por um tempo, não disseram nada. Deixaram que as imagens falassem por elas — fotos de uma criança com dentes tortos, vestido cor-de-rosa, sorrindo para a câmera; uma festa no jardim com balões azuis; o primeiro dia de aula de Donna, com a mochila maior que ela.
Foi então que Ellis parou numa imagem. Donna tinha cinco anos e vestia uma fantasia de bailarina. Ao seu lado, um homem loiro, de sorriso largo e olhos gentis, segurava sua mão.
— John Smith — sussurrou ela, com os dedos sobre o rosto do homem.
Ellis sorriu com melancolia, puxando outra foto: Donna com dois anos, dormindo no colo do mesmo homem.
— Sim… — murmurou Ellis, pegando outra foto dela com ele ainda bebê — … ele sempre foi seu fã número um.
Donna observou em silêncio. O pai que ela conheceu na infância. O homem que, segundo a história que lhe contaram, havia morrido como herói. Ela olhou para outra imagem. John estava nela, de terno escuro, sua expressão grave suavizada pelo carinho com que segurava a mão de uma Donna ainda muito pequena.
— Eu não consigo me lembrar dele — confessou. — De verdade. Tentei no começo, mas é como se o meu cérebro tivesse apagado tudo.
Ellis desviou os olhos da imagem.
— Talvez tenha sido o trauma. A forma como ele morreu...
— Tentando nos salvar naquele galpão do Jácomo Grecco — completou Donna, sem emoção.
A menção ao nome fez o corpo de Ellis enrijecer. Engoliu seco.
Aquela era a versão que ela e Vittorio haviam construído com esmero, anos atrás, quando Donna era apenas uma menina de seis anos, confusa, vulnerável, incapaz de suportar toda a verdade.
Porque a verdade não era que John havia morrido como herói. Ele era o vilão daquela história. Um sequestrador. Um traidor.
Na realidade, John Smith jamais existiu. O homem que segurava sua mão nas fotos era Jácomo Grecco, seu sequestrador. O homem que um dia Ellis confiou, mas que depois revelou sua verdadeira face ao raptá-las — ela e Donna — e levá-las àquele galpão. Um homem que levou Ellis e Donna para aquele galpão com intenção de matá-las.
— Mãe... — a voz de Donna vacilou. — E se ele tivesse sobrevivido? Como teria sido minha vida? Quem eu teria me tornado? A senhora já se perguntou isso?
Ellis segurou a respiração, enquanto folheou o álbum mais uma vez.
— Talvez — respondeu Ellis com cautela — você teria crescido com outra visão do mundo. Talvez... mais inocente. Ou talvez não. A vida encontra um jeito de nos moldar, Donna. O que importa é quem você escolheu ser... depois de tudo.
Donna não respondeu de imediato. Olhou de novo para a certidão de nascimento escondida sob o casaco. Ela sabia que havia algo ali.
Ellis pousou o álbum sobre uma cadeira coberta e se virou completamente para a filha.
— E agora você se pergunta se foi boa por si só ou só porque carrega o nome Amorielle.
Donna olhou para a mãe, surpresa. A pergunta de Lorenzo ressoou outra vez em sua cabeça.
— Como...?
— Eu sou sua mãe, Donna. Mas antes disso, fui uma mulher que também teve que provar que merecia o lugar onde estava. E antes disso, fui só uma americana de Nova York tentando sobreviver no meio da máfia italiana. Você acha que eu nunca me perguntei isso? Se consegui o respeito deles por quem sou... ou por conta de quem estava deitado na minha cama?
A sinceridade cortou o ar entre elas.
— E qual foi sua resposta?
Ellis sorriu, melancólica.
— Eu ainda estou buscando. Mas hoje... — ela tocou o rosto da filha — hoje eu olho para você e vejo a resposta que eu precisava.
Donna se permitiu um instante de fraqueza. Encostou a testa no ombro da mãe e fechou os olhos.
— Eu não sei mais se quero esse mundo. Não sei se sou feita para ele... ou se ele está me moldando até eu não conseguir mais me reconhecer.
Ellis abraçou a filha, apertado.
— Você não precisa decidir isso agora. Nem sozinha.
— Mas ele vai me obrigar a escolher. Você sabe disso. O papà...
— Seu pai é um homem de extremos, mas ele ama você. E isso é mais poderoso do que qualquer Dieci Comandamenti della Mafia. Ele vai se enfurecer, vai gritar, talvez até tentar te mandar embora, mas ele vai ouvir você.
Donna se afastou, passando as mãos pelo rosto.
— E se ele não ouvir?
— Então eu faço ele ouvir.
Donna sorriu, cansada.
— Você ainda é a única que ele teme.
— E você é a única que consegue irritar ele mais do que eu — disse Ellis, com um brilho nos olhos.
As duas riram, e por um momento, a mansarda não parecia mais tão fria.
Ellis apontou para uma cadeira.
— Senta. Vou fazer um chá.
— Vai mesmo? Aqui em cima?
— Claro. Escondi uma chaleira elétrica ali naquele armário velho e aquele freezer do canto não está desligado, é onde guardo minhas águas. Isso aqui se tornou um santuário, pois preciso de um lugar para escapar dessa casa que é cercada por homens de vez em quando.
Enquanto Ellis preparava o chá com folhas de camomila, Donna se sentou, observando o teto inclinado da mansarda. A estrutura de madeira antiga ainda parecia sólida, apesar dos anos. Era como a família dela — resistente, mesmo quando tudo parecia desabar.
— Você sente falta? — perguntou Donna de repente.
— De quê?
— Da vida que tinha antes de tudo isso.
Ellis se virou, mexendo o chá com uma colher.
— Às vezes. Às vezes eu me pego sonhando com cafés em Nova York, com a neve nas ruas que eu andava tranquilamente sem me preocupar com pessoas me perseguindo, seguranças a todo momento, do transporte público... Das minhas amizades, da rua do bairro onde cresci... Mas então eu lembro de você, dos seus irmãos, do homem que eu amo. E percebo que não importa onde eu esteja. Se vocês estiverem comigo, é onde eu deveria estar. É a minha casa.
Donna engoliu em seco.
— Eu não sei se quero uma casa como essa , Mama.
— Então construa outra. Mas sem fugir da que te fez quem você é.
Ellis entregou a xícara à filha. As mãos de Donna tocaram a porcelana quente. Era como receber uma benção silenciosa. Um gesto pequeno, mas cheio de significado.
— Obrigada.
— Sempre — respondeu Ellis.
Silêncio desceu entre elas. Um silêncio confortável, como um cobertor que cobre antigas feridas.
— Acho que vou ficar por aqui essa noite — disse Donna, quase num sussurro.
— Já imaginei isso — respondeu Ellis, com um meio sorriso. — O seu quarto ainda é o mesmo.