CAPITULO 9

1454 Palavras
Donna ainda segurava o casaco da NYU com as mãos apertadas ao redor do tecido grosso e levemente desbotado. O roxo escuro parecia ter absorvido anos de histórias, caminhadas, cafés amargos, provas difíceis e sonhos que poderiam ter sido construídos pelas mãos de sua mãe. Ellis notou o olhar quase reverente da filha para o casaco. Silenciosa, tomou um gole do chá, e então, num tom tranquilo, disse: — Se você quiser, pode ficar com ele. Donna ergueu os olhos, surpresa. — Tem certeza? Ellis sorriu, seu rosto iluminado por uma lembrança distante. — Claro que sim. É um bom casaco. De um bom tempo. Nada melhor do que ele ficar com você agora. O olhos de Ellis carregavam algo mais. Algo que talvez dissesse: tudo o que vivi, o que sonhei, agora é seu para sonhar também. Donna apenas assentiu, um “obrigada” escapando de seus lábios. A palavra era pequena demais para a avalanche de sentimentos que a acompanhava. Ela terminou o chá com lentidão, como se o calor da bebida ainda pudesse manter aquele momento vivo por mais um segundo. Depois, se levantou. — Acho que vou me deitar. — Tudo bem, meu amor. Que tenha uma boa noite de sono — respondeu Ellis, tocando de leve a mão da filha. Donna se inclinou e depositou um beijo leve na testa da mãe, como uma promessa silenciosa. Então saiu, descendo as escadas antigas de madeira, o casaco ainda firme nos braços. Ao virar o corredor que levava ao seu quarto, uma onda de nostalgia tomou conta de seu corpo. O cheiro. A luz suave. O rangido sutil do piso. Era como ser puxada para dentro de um quadro pintado à mão. O quarto estava exatamente como ela o deixara quando foi cursar Giurisprudenza com foco em Diritto Commerciale e Diritto Penale na Università di Bologna. Ela atravessou o quarto com passos lentos. Tocou a escrivaninha. Os livros empoeirados. O porta-retratos com uma foto antiga dela e dos irmãos. A almofada bordada por Ellis. Sentou-se na cama com um suspiro e se jogou para trás, ainda agarrada ao casaco. Fechou os olhos por um momento, inspirando o aroma envelhecido de lã e cânfora. Foi quando sentiu o barulho. Um estalo seco. Papel. Curiosa, ela tateou o interior do casaco e puxou uma folha antiga, amarelada nas bordas, com marcas suaves de dobras bem cuidadas. O topo estampava, em letras ainda legíveis: Birth Certificate. Donna sentou-se devagar, o coração acelerado. Leu o nome: Donna Smith. Filha de John Smith e Ellis Barker. Nascida em Seattle, Washington. Ela passou os dedos sobre as letras como se aquilo fosse um artefato perdido de outra era. Uma versão alternativa de si mesma. A garota que poderia ter crescido numa casa com quintal e cachorro, indo à escola pública, talvez frequentando a biblioteca da cidade, saindo com amigos ao cinema, sonhando com universidades. Sem o peso de um sobrenome como Amorielle. Sem a sombra de inimigos, rivais, pactos de sangue. Uma vida sem morte. Ela ergueu os olhos e encarou a escrivaninha. O velho notebook ainda repousava ali, coberto de poeira, mas intacto. Levantou-se e, com dedos hesitantes, pressionou o botão de ligar. Esperou. A máquina tossiu, vibrou, gemeu — e então despertou, para sua surpresa. A luz da tela acendeu como um farol tímido. Donna sorriu, meio surpresa, meio nostálgica. Abriu o navegador. Escreveu com cuidado: New York University School of Law. A página oficial surgiu diante de seus olhos. Imagens do campus, estudantes sorridentes, prédios imponentes de pedra e vidro, neve caindo nos jardins. Desceu até a aba de Postgraduate Programs. Leu: LLM for Foreign-Trained Lawyers. Clicou. No canto direito da tela: Deadline — May 10th, 11:59 PM (EST). Donna franziu a testa. Olhou para o canto do notebook. 00:01. — Droga — murmurou. Mas então, como uma centelha, algo brilhou em sua mente. Era meia-noite e um em Pedesina. Ela pegou o celular, abriu o fuso horário de Nova York: 18:01. — Ainda dá tempo — murmurou, sorrindo. Voltou para a tela e clicou em Apply Now. A página do formulário se abriu, pedindo seus dados pessoais. Nome, e-mail, documentos, carta de motivação. Donna analisou os requisitos. Documentação acadêmica. Traduções. Três cartas de recomendação. Diploma. Histórico. Comprovação de idioma. CV. Uma taxa de 85 dólares. Ela leu cada item com atenção. Cada um daqueles documentos já estava em sua posse. Afinal, ela era Donna Amorielle. Tinha tudo em ordem. Começou a digitar seu nome. D... o... n... n... a... A... E então parou. As mãos pairaram sobre o teclado. O cursor piscava como se aguardasse uma resposta existencial. Um nome. Uma identidade. Ela olhou para o casaco sobre sua cama. Depois para a certidão nas mãos. Aquela era uma chance real de recomeçar. Ser diferente. Não apenas escapar, mas escolher. Levantou-se e pegou a certidão de nascimento. — Donna Smith... Falou em voz alta, testando o som. Ela voltou para o notebook, fechou a aba do LLM. Clicou em outra. Juris Doctor – NYU School of Law. Um curso completo. Três anos. Imersão total. — Se é pra fazer, que seja de verdade — murmurou. O formulário era mais longo. Mais exigente. Exigia a pontuação do LSAT ou GRE. Ela teria que explicar porque queria estudar lá, porque queria ser aceita. Teria que ser convincente. Ela começou a preencher os dados com os olhos brilhando. Mas, de novo, os documentos todos diziam Donna Amorielle. Passaporte italiano. Diplomas. Histórico. Ela mordeu o lábio inferior. Era um problema, mas nada impossível. Afinal, ela era Donna Amorielle. Desde a adolescência sabia como contornar sistemas. Já falsificara identidade para entrar em festas em Capri. Já trocara passaportes para escapar de ameaças. Sabia como manipular documentos digitais sem deixar rastros. Abriu um programa de edição que ainda estava instalado. Começou a adaptar seu diploma, seus históricos. A cada alteração, sentia como se arrancasse parte da identidade que construíra ao longo da vida — a guerreira, a herdeira, a advogada da família Amorielle. E, ao mesmo tempo, algo novo nascia em seu peito. "Donna Smith." Uma jovem americana com diploma europeu, fluente em inglês, em busca de um novo começo. Ela sorriu com ironia. Sabia que a ironia era c***l: ela estava usando as táticas da máfia para fugir da máfia. Criou os documentos: diploma com o nome Donna Smith, passaporte digital, CV, histórico traduzido e reemitido. Tudo com data e selo. O único original era a certidão de nascimento que ela agora escaneava rapidamente. Adicionou como documento de comprovação de identidade. Fez upload dos arquivos um a um. Conferiu os detalhes. Preencheu o formulário. Cartas de recomendação? Usou o contato de dois professores de Bologna e uma antiga supervisora em Roma — todoss sabiam de seu talento, e também jamais iriam contestas aquelas informações por conta de seu sobrenome. Tudo pronto. Subiu os arquivos. Faltava a carta de motivação. Donna respirou fundo. Abriu um novo documento e começou: Personal Statement – Donna Smith “Meu nome é Donna Smith. Nasci em Seattle, Washington, mas minha vida tomou rumos inesperados que me afastaram das raízes que me definem. Por anos, segui caminhos impostos por contextos que estavam fora do meu controle. Agora, quero reescrever minha própria história. Estudar na NYU School of Law é mais do que um sonho — é um retorno. Um retorno às origens, aos valores que me formaram antes mesmo que eu soubesse quem era. Quero estudar Direito não apenas para conhecer a lei, mas para me reconstruir por meio dela. A justiça, para mim, não é um conceito abstrato. É um caminho para a liberdade.” Ela terminou com um ponto final firme. Nenhuma mentira. Apenas verdades que, até então, ela mesma não tinha coragem de ouvir. Subiu o arquivo. Olhou para o relógio. 05:56. Apressou-se. Inseriu os dados do cartão pré-pago que criou rapidamente em seu nome. O valor foi debitado sem erro. O recibo apareceu na tela. “Submit Application?” Ela hesitou. Apenas por um segundo. E então clicou. Tela branca. Um segundo de espera. “Application Submitted — Thank you for applying to NYU School of Law.” Quando a tela confirmou que sua inscrição fora recebida, Donna empurrou o notebook para o lado e caiu sentada no chão. O coração batia descompassado. Uma onda de adrenalina misturada com alívio correu por seu corpo. Ela sorriu. Donna Smith. Juris Doctor. NYU School of Law. Ali, no silêncio do seu antigo quarto, rodeada por lembranças de sua infância interrompida, ela havia acabado de abrir uma porta. Não sabia o que havia do outro lado, mas pela primeira vez em muito tempo, poderia atravessar sozinha.
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