O portão da mansão se abriu sem que Rocco precisasse diminuir muito a velocidade. O sensor reconheceu a Ferrari Purosangue preta como parte do arsenal pessoal da família Amorielle, e os seguranças apenas acenaram com um movimento breve de cabeça, sem qualquer hesitação. O carro deslizou para dentro da propriedade com a elegância letal de um tubarão voltando ao oceano — um predador no seu habitat natural.
O terreno da mansão era amplo, com jardins esculpidos à perfeição e fontes antigas murmurando ao longe, como se tentassem abafar os sussurros que as paredes daquela casa conheciam. A luz suave dos postes criava sombras dançantes nos caminhos de pedra, e ao fundo, a mansão dos Amorielle se erguia como uma fortaleza moderna: linhas limpas, fachada fria, torres de vidro e aço. Era bela, mas não acolhedora. Era casa, mas não era abrigo.
Rocco parou o carro com suavidade diante da entrada principal. Virou-se para Donna, o rosto marcado pelo tempo, mas os olhos ainda tão nítidos quanto no dia em que ensinou a garota a atirar pela primeira vez.
— Tenha coragem — disse ele, a voz baixa e firme. — E só pra você saber… já enfrentei seu pai uma vez.
Donna arqueou uma sobrancelha.
— É mesmo? E o que aconteceu?
Rocco deu um meio sorriso e se recostou mais no banco.
— Ele apontou uma arma pra mim. Disse que eu estava banido da família.
Donna arregalou os olhos, surpresa.
— E depois?
— Depois que eu quase morri por ele… sua mãe me reintegrou. Ou melhor, ordenou que ele me reintegrasse.
Donna bufou, cética.
— Isso era pra me incentivar a falar com meu pai? Porque, sinceramente, não funcionou.
Rocco deu de ombros, ainda com um sorriso nos lábios.
— Não. Era pra te lembrar que, aconteça o que acontecer, você sempre vai ser filha dele. Vittorio pode ser duro, mas ele nunca vira as costas pra quem ama. Especialmente você.
Donna respondeu com acidez:
— Claro. Porque, se tudo der errado, é só eu quase morrer pela família e pronto. Fica tudo bem.
Rocco riu.
— Essa é a minha garota, entendeu direitinho.
Donna balançou a cabeça, mas um canto de seus lábios se curvou em um sorriso quase imperceptível. Então ela abriu a porta e desceu da Ferrari, os saltos finos fazendo um som seco sobre o piso de pedra. Cada passo era como uma batida de tambor antes da guerra.
Ela parou diante da porta principal da mansão. Sozinha.
Os portões atrás dela se fecharam com um clique metálico. A estrutura de madeira escura e pesada da porta parecia intransponível por um instante. Donna inspirou fundo, sentindo o ar frio do entardecer preencher seus pulmões. Empurrou com firmeza as duas folhas da porta.
O saguão da mansão era silencioso, mas não estava vazio.
O cheiro de madeira polida, lavanda e tabaco pairava no ar. O mármore claro do chão refletia suavemente a luz dos lustres altos. Passos soaram em algum corredor, e logo Andrea, um dos homens de confiança de Vittorio, surgiu.
— Signorina Amorielle — disse ele, surpreso ao vê-la.
— Onde estão meus pais? — perguntou Donna, sem rodeios.
— Don Vittorio ainda está em Milão. A Signora Amorielle se encontra na mansarda.
— Obrigada.
Sem esperar mais nada, Donna começou a subir as escadas de mármore. Poderia correr, fingir que tudo estava bem, adiar o inevitável… mas para quê? Nada mudaria. Nada se esconderia por muito tempo sob o teto da mansão Amorielle. A verdade sempre encontrava um jeito de escorrer pelas rachaduras.
Ao alcançar o último degrau, ela seguiu pelo corredor do último andar. A luz escapava por baixo da porta baixa da mansarda, aquele espaço esquecido no topo da casa onde as memórias moravam em caixas e poeira. O coração martelava forte no peito. Cada batida ecoava em seus ouvidos, lembrando-a de que ela não era mais a menina de Pedesina. Mas, ali, de certa forma, ainda era.
Empurrou a porta da mansarda com força. O rangido das dobradiças quebrou o silêncio, ecoando como um sussurro antigo pelas pedras da estrutura. O ar ali dentro era parado, carregado de cheiro de madeira envelhecida e lavanda seca. Lençóis amarelados cobriam móveis antigos. Baús e caixas estavam espalhados como pistas de um passado que insistia em permanecer.
No meio da confusão, sua mãe, Ellis, revirava uma caixa de papelão com movimentos delicados, quase metódicos. Os cabelos castanhos — ainda incrivelmente naturais para uma mulher acima dos cinquenta — estavam presos em um coque baixo. Ela usava um vestido azul-marinho simples, sóbrio, como uma típica matriarca italiana. Ao pescoço, uma medalha de Santa Ágata pendia com modéstia. A única coisa que traía sua idade eram os óculos de leitura repousando na ponta do nariz.
Donna sorriu.
— Coisas que o tempo não come. Ainda chama essas coisas assim?
Ellis ergueu o rosto. Os olhos castanhos se iluminaram.
— Donna?
— Mama — respondeu Donna, já entrando no cômodo.
— Sem essa de italiano pra cima de mim — disse Ellis, abrindo os braços.
Donna se aproximou, e o abraço foi apertado, com um calor que nenhuma primavera fria dos Alpes poderia apagar. Ellis beijou o rosto da filha e depois se afastou levemente, examinando-a.
— Você está magra — comentou Ellis. — Está se alimentando direito?
Donna se encostou na parede de pedra, cruzando os braços.
— Estou viva. Isso já é mais do que a maioria pode dizer.
— Essa resposta é digna de seu pai.
— Ótimo, talvez ele finalmente me entenda — Donna rebateu, a voz baixa, mas carregada de ironia.
— O que está fazendo aqui? — Perguntou Ellis por cima dos óculos.
Donna olhou ao redor.
— Eu é que pergunto. O que está fazendo aqui?
Ellis voltou-se para a caixa.
— Procurando fotos dos gêmeos para a festa de dezoito anos deles.
Donna franziu o cenho.
— O aniversário dos dois ainda está longe, mama. Você tem uns bons meses.
— Chi ben comincia è a metà dell’opera — respondeu Ellis com um leve sorriso, sem desviar o olhar das fotos.
Donna revirou os olhos.
— Ah, agora pode falar italiano.
Ellis riu baixinho, pegando outra fotografia.
— Eu sou a mãe. Eu posso tudo.
— Bom argumento — disse Donna, se aproximando mais. — Achou alguma boa?
Ellis estendeu uma foto com os dedos. Era dos gêmeos aos cinco anos, sujos de tinta, com Marco tentando pintar o rosto de Jason enquanto ele ria descontroladamente.
Donna pegou a foto, os olhos suavizando por um instante.
— Eles eram tão pequenos.
— Agora parecem dois furacões — disse Ellis, voltando para a caixa. — Marco quer organizar uma viagem para Capri com Vittorio para fechar alguns negócios para o pai. Jason, por outro lado, quer sumir com a câmera dele e fazer um documentário “experimental” em Gênova.
— Parece coisa deles mesmo — murmurou Donna, com um sorriso nostálgico.
— E você? — perguntou Ellis, parando e olhando diretamente nos olhos da filha. — Vai me contar o que veio fazer aqui, ou eu preciso tocar no assunto?