Yara ajeitou a alça da bolsa no ombro enquanto caminhava pela rua lateral do bar, já longe das luzes fortes e do cheiro de cerveja que impregnava o lugar. O vento frio londrino passou por ela, fazendo-a fechar um pouco o casaco leve que usava sobre o vestido floral. Era sempre um choque sair do ambiente quente, cheio de vozes e música, para o silêncio úmido daquela madrugada inglesa.
Ela suspirou. Mais um turno de quase dez horas.
Mas, diferente da maioria dos funcionários que saíam exaustos e m*l-humorados, Yara carregava no rosto o mesmo sorriso fácil que mantivera a noite inteira.
— Mainha, eu tô indo pra casa agora… — disse em português ao telefone, a voz suave e cantada, típica de quem mistura Salvador e Rio no mesmo sotaque. — Tô morta de cansada, mas deu tudo certo hoje, graças a Deus.
Do outro lado, a mãe falava animada, perguntando se ela tinha comido, se estava se agasalhando, se Londres continuava “fria feito geladeira”.
Yara riu.
— Tá, mainha. Mas eu me acostumo. Já faz nove meses, né? Não vou reclamar agora.
Ela desviou de um grupo de jovens bêbados que saíam de outro bar, sempre com a postura educada que aprendera a adotar nas ruas movimentadas de Londres.
— Eu já tô chegando no metrô. Semana que vem juro que mando o dinheiro. Só tô esperando fechar o pagamento do mês, tá bom?
Sua voz suavizou.
— Eu prometo, mainha. Eu tô bem. De verdade.
E estava mesmo, mesmo com a saudade de casa, do cheiro de dendê, do som do mar, do barulho do samba do Rio… Londres era dura, mas dava oportunidades. E Yara se agarrava a isso com força.
Enquanto caminhava, lembrou do rapaz sério na mesa do fundo aquele que a observava como se tentasse decifrar língua, origem e talvez até alma. Ele tinha um olhar diferente, pesado, carregado de alguma coisa não dita. Parecia um homem que carregava problemas demais… e sono de menos.
Mas Yara não pensou muito nisso. Seu mundo era outro: contas, aluguel, turnos, metrô noturno e esperança. Sempre esperança.
— Tá bom, mainha… vou desligar porque já vai chegar. Beijo. Te amo.
Ela encerrou a chamada, puxou o cachecol para o queixo e parou sob o ponto iluminado, o vestido floral balançando no vento frio como se desafiasse o clima cinzento.
Mesmo cansada, mesmo longe de casa, Yara ainda sorria.
Porque era assim que sobrevivia.
Com graça.
Com leveza.
Com força escondida atrás de delicadeza.
A porta do pequeno apartamento rangeu quando Yara a empurrou com o quadril. O local cheirava a café requentado e incenso barato o perfume típico da casa que dividia com Beatriz. Yara tirou os sapatos na entrada, massageando os pés doloridos, quando percebeu uma luz acesa na sala.
— Bia? — ela chamou baixinho, franzindo a testa. — Mulher, o que você tá fazendo acordada essa hora?
Beatriz apareceu da cozinha com uma caneca na mão e o cabelo preso num coque torto. Os olhos estavam arregalados, claramente sem sono.
— Amiga, até que enfim! Eu tava te esperando, — ela disse, visivelmente elétrica. — Hoje aconteceu tanta coisa, você não tá entendendo!
Yara soltou um riso cansado, jogando a bolsa no sofá.
— Beatriz, são três e meia da manhã. Pelo amor de Deus, me diz que você não tomou café agora.
Beatriz ergueu a caneca.
— Tomei. Dois. Pra te esperar.
— Você é maluca, — Yara murmurou, afrouxando o casaco e se jogando no sofá, exausta. — Fala logo, que amanhã — quer dizer, hoje eu trabalho cedo de novo.
Beatriz sentou-se ao lado dela, com os olhos brilhando de animação.
— Primeiro: você não vai acreditar. Eu consegui aquele extra no restaurante italiano! É só por duas semanas, mas já vai ajudar a pagar o gás.
— Bia! — Yara abriu um sorriso sincero, orgulhoso. — Que notícia boa! Graças a Deus!
— Pois é! — ela bateu palmas, animada. — E segundo… — Beatriz inclinou-se curiosa. — Como foi no bar hoje? Você parece… sei lá. Leve. Cansada, mas leve.
Yara esticou as pernas, pensativa.
— Foi normal. Turista bêbado, casal discutindo no canto, gerente enchendo o saco… o de sempre.
Beatriz arqueou uma sobrancelha.
— Hum. Sei. E aquele sorriso aí?
— Pronto, começou… — Yara virou o rosto, rindo.
— Te conheço, Yara Santos da Silva. Quando você chega assim é porque alguém mexeu com seu juízo.
— Ninguém mexeu nada, Bia. — Yara balançou a mão no ar. — Só teve um cliente estranho… ficava me olhando demais. Um cara sério, postura firme, ele usava terno, parecia alguém importante.Tava com o amigo dele. Devia estar passando por algum drama familiar, sei lá.
Beatriz, é claro, arregalou os olhos.
— Olhando demais? Estranho como? Estranho tipo “vou te sequestrar”? Ou estranho tipo “ingles de filme, bonito, rico e problemático”?
Yara bufou uma risada.
— Segundo tipo. Mas deve ser só mais um inglês metido, daqueles cheios de problema na cabeça.
Beatriz deu um tapinha na perna da amiga.
— Amiga, presta atenção: esses são os piores. E os mais perigosos.
— E os que nunca olham pra gente duas vezes, — Yara completou com humor resignado, se levantando. — Eu vou tomar um banho quente antes que eu durma aqui mesmo.
Beatriz a observou caminhar até o corredor.
— Só me promete uma coisa? — ela chamou.
Yara virou-se.
— O quê?
— Se esse cara aparecer de novo… você me conta tudo. Detalhado. Eu vivo por esse tipo de fofoca, ã-mo.
Yara riu, sacudindo a cabeça.
— Prometo. Agora me deixa ir, antes que eu apague em pé.
E desapareceu pelo corredor, enquanto Beatriz sorria sozinha, totalmente certa de que a amiga escondia mais do que estava dizendo.