CAPÍTULO 2
YASMIM NARRANDO
Eu já tinha quase terminado de arrumar a mala quando o som da fechadura me fez congelar.
O barulho seco da porta batendo me arrepiou inteira.
— Não… agora não… — murmurei, o coração disparando.
Corri pro canto do quarto e enfiei a mala atrás da cortina, tentando disfarçar. O zíper ainda meio aberto, uma blusa caída no chão. Peguei rápido e joguei pra baixo da cama.
Os passos dele ecoaram no corredor, cada um mais pesado que o outro.
— Yasmim! — ele gritou, a voz alta, seca. — Que porrä cê tá fazendo trancada nesse quarto?
Engoli em seco, tentando parecer calma.
— Nada… só arrumando umas coisas.
A maçaneta girou com força, e a porta abriu num tranco. Ele entrou, o olhar já cheio de desconfiança.
— Arrumando o quê? — perguntou, estreitando os olhos. — Que cara é essa?
Tentei disfarçar, ajeitando o lençol na cama, mas a voz falhou.
— Só tô limpando, Gustavo.
Ele olhou em volta, devagar. O olhar dele passou pela cortina, pela cama, por mim.
Depois, se aproximou.
— Tu tá escondendo alguma coisa, né? — perguntou, chegando perto demais.
O cheiro de cigarro invadiu meu nariz. Tentei recuar, mas ele me segurou pelo braço.
— Me larga, Gustavo, por favor.
— Eu perguntei o que cê tá escondendo, porrä! — ele gritou, me empurrando pra trás.
A força me fez bater na cômoda, e o impacto derrubou o perfume em cima da mala que eu tentei esconder. O som do vidro quebrando denunciou tudo.
O olhar dele desceu e parou ali.
— Mala? — ele perguntou, rindo de canto. — Vai pra onde, Yasmim?
O medo subiu junto com a raiva que eu tentava engolir há meses.
— Eu… eu só ia pra casa da minha mãe. Passar uns dias.
— Mentira! — ele gritou, puxando meu cabelo com força. — Tu acha que eu sou i****a? Tá fugindo, né?
Tentei empurrar ele, mas ele me acertou um tapa tão forte que meus ouvidos zuniram.
— Gustavo, para! — gritei, chorando. — Eu não aguento mais viver assim!
— Cala a porrä da sua boca! — ele berrou, me sacudindo. — Tu é minha mulher! Vai fazer o que eu mandar!
As lágrimas já não paravam. O rosto ardendo, o corpo tremendo. Ele me jogou na cama, os olhos cheios de ódio.
— Tu acha que vai me deixar, é? — ele cuspiu as palavras, a respiração pesada. — Ninguém te quer lá fora, Yasmim. Tu não é nada sem mim!
Aquelas palavras cortaram mais fundo que qualquer tapa. Mas, dessa vez, algo dentro de mim quebrou de vez.
Eu olhei pra ele com tudo o que restava de coragem e falei baixo, quase num sussurro:
— Prefiro ser nada… do que ser tua.
Ele me acertou outro tapa.
Eu só lembro do gosto de sangue e do som da porta batendo quando ele saiu, gritando alguma coisa no corredor.
Fiquei ali, encolhida no chão, o corpo doendo, o peito em pedaços. Mas no meio daquele caos, uma certeza cresceu: eu ia embora.
Mesmo machucada, mesmo sangrando, mesmo com medo.
Peguei a mala, o celular, e a chave reserva que escondia na gaveta. Limpei o rosto, respirei fundo e sussurrei pra mim mesma:
— Acabou. Nunca mais.
Limpei o rosto com as costas da mão, ainda sentindo o gosto de sangue. Respirei fundo, olhei em volta e fui em direção à porta.
Mas quando girei a maçaneta… nada.
Ela não se mexeu.
Tentei de novo.
Nada.
— Não… não, não, não… — sussurrei, o desespero subindo pela garganta.
Girei a chave com força, empurrei, puxei… nada.
A porta tava trancada por fora.
— Gustavo! — gritei, batendo com força. — Abre essa porta, pelo amor de Deus!
Silêncio.
O barulho do meu próprio choro era a única resposta.
Comecei a socar a madeira, desesperada.
— Abre, desgraçado! Me deixa sair!
A raiva misturada com o medo me fazia tremer inteira. Eu batia, batia, até as mãos doerem.
Mas ele já tinha ido embora.
O som do carro arrancando lá fora confirmou.
Escorreguei pela parede, sentando no chão, o corpo inteiro tremendo. A mala caída do lado, o celular apertado na mão. Por alguns segundos, o silêncio da casa pareceu zombar de mim.
Eu ali — presa, machucada, sozinha — e ele lá fora, livre.
Fiquei alguns minutos ali, sem saber o que fazer. A respiração curta, o peito queimando, o gosto amargo da impotência na boca.
Mas eu não podia desistir. Não depois de tudo.
Peguei o celular com as mãos trêmulas e disquei o número do interfone. O som do toque pareceu eterno até que a voz do porteiro respondeu, sonolenta.
— Alô?
— Seu Paulo… sou eu, a Yasmim do 302… — falei, a voz embargada. — O senhor pode vir aqui, por favor? Minha porta tá trancada por fora, eu não tô conseguindo sair.
Um silêncio rápido. Depois ele respondeu, desconfiado:
— Trancada? Como assim, dona Yasmim? O seu marido não tá aí, não?
Engoli o choro pra conseguir falar.
— Não… ele saiu e me deixou trancada, por favor… me ajuda a abrir essa porta, eu preciso sair daqui, é urgente.
Dessa vez, o porteiro pareceu entender o desespero no meu tom.
— Tá bom, calma, tô subindo.
O coração disparou. Levantei devagar, limpando as lágrimas com a manga da blusa.
Alguns segundos depois, ouvi o som do elevador parando no andar.
— Dona Yasmim? — ele chamou do lado de fora.
— Tô aqui! — respondi, me aproximando da porta. — A chave tá virada, acho que ele trancou pelo lado de fora.
Ouvi o barulho da chave sendo forçada, o estalo metálico e, em seguida, o clique libertador.
Quando a porta abriu, seu Paulo me olhou assustado.
— Meu Deus do céu, o que aconteceu com a senhora? — perguntou, vendo meu rosto machucado.
Baixei o olhar, tentando esconder a vergonha.
— Só… só preciso sair daqui, por favor. Ele pode voltar a qualquer momento.
— Quer que eu chame a polícia? — ele perguntou, já tirando o rádio do bolso.
— Não, por favor. — interrompi rápido. — Só me deixa ir embora.
Ele assentiu, ainda sem entender direito, mas abriu espaço pra eu passar.
O ar frio do corredor bateu no meu rosto e, pela primeira vez, parecia que eu respirava de verdade.
Desci com ele pelo elevador em silêncio. Cada andar que passava era uma lembrança que eu deixava pra trás. Quando a porta se abriu no térreo, ele me ajudou a carregar a mala até a portaria.
— Quer que eu chame um carro pra senhora?
— Não precisa, seu Paulo. Eu… eu pego um uber mais embaixo. — menti, tentando disfarçar a urgência.
Ele me olhou com pena, mas não insistiu.
— Se cuida, dona Yasmim.
Assenti e segui andando, sentindo o vento frio da manhã bater no rosto machucado.
A rua estava quase vazia, só o som distante de um carro e o canto de um cachorro perdido.
Mas, pela primeira vez, eu não sentia medo.
Eu sentia liberdade.
Continua....