📖 CAPÍTULO 2 — TIGRE
O dia nem clareou direito e o rádio já chia no barraco.
Lá fora, a favela acorda aos trancos: panela batendo, gritaria, gente indo e vindo, som de moto subindo ladeira.
Tô largado na cadeira de plástico, camisa jogada no encosto, café preto amargo descendo queimando.
Fumo na mão, olho vidrado no movimento.
O vapor encosta na porta, cara de quem traz notícia r**m.
— Patrão… — ele sussurra, coçando o pescoço, olhando pros lados antes de falar.
Eu não gosto de enrolação.
— Desembucha logo, pivete. Não tenho o dia todo não.
Ele respira fundo, ajeita o boné na cabeça.
— É o seguinte… o casal da viela ali da curva, sabe? Aquela casa cinza perto da mureta.
— Tô ligado. O que tem eles?
— Tá devendo uns mês já, patrão. Três aluguel atrasado.
A mulher foi pedir fiado no armazém, falaram que o marido tá desempregado desde a última operação.
Eles tão dizendo que vão pagar, mas até agora… nada.
Dou um gole no café, olho pra rua.
Vejo a mulher do casal, lenço amarrado na cabeça, carregando um balde no colo.
O cara, magrelo, sumido desde a batida da polícia no mês passado.
— E aí, vapor, tu acha que eu sou pai de família agora?
Ele dá um meio sorriso, mas tá nervoso, sabe que ali não tem espaço pra fraqueza.
— Não, chefe. Mas o povo tá comentando. Se não pagar, outros vão querer fazer igual.
Dou risada, aquela risada de quem já ouviu de tudo nesse morro.
— Aqui não é casa de caridade, menor.
Quem mora na minha área sabe a regra: pagou, fica. Não pagou, vaza.
Morro é lei, favela não é bagunça.
Bato o cigarro no parapeito da janela e olho pro Juninho, o vapor ainda ali, de cabeça baixa, esperando ordem.
— Vai buscar o desgraçado, Juninho. — falo calmo, mas o tom já é ameaça. — Quero o Zezão aqui agora. Quero olhar na cara de quem acha que manda conta pro dono do morro.
O moleque não discute. Sai na corrida, gritando ladeira abaixo:
— Ô, Zezão! Patrão quer tu lá em cima, cê tá fudido, irmão!
A rua ferve. As janelas fecham. Mulher puxa menino pelo braço. Até o cachorro para de latir.
Quando Tigre chama, o morro cala.
Minutos depois, o Juninho volta. Dois caras vêm arrastando o Zezão, braço torcido, tropeçando nos chinelos. O homem tá pálido, suando, com medo pingando até do olhar.
— Bota ele aqui. — aponto pra cadeira de plástico na minha frente.
O Zezão senta devagar, tremendo. As mãos juntas, pedindo piedade antes mesmo de abrir a boca.
— Patrão… eu juro… eu vou acertar. Eu tô correndo atrás. Só preciso de mais tempo, patrão…
— Tempo? — repito, rindo curto. — Tempo é coisa de rico, Zezão. Aqui embaixo, quem deve paga, quem chora morre devendo.
Ele abaixa o olhar. O silêncio pesa. O vento traz o cheiro da rua — mistura de fritura, esgoto e pólvora velha.
— Eu perdi o trampo, patrão… a polícia me levou tudo… minha filha, ela é de Deus, uma noviça… não pode ajudar… — a voz quebra.
Olho pra ele por cima da fumaça do cigarro.
— Noviça? — levanto uma sobrancelha. — E desde quando tem santa morando no meu morro e eu não tô sabendo?
Ele engole seco, rápido.
— Ela quase não vem… só desce pra ver a mãe e volta pro convento… juro que é moça direita, patrão…
Dou um riso torto, encosto na cadeira, cruzo os braços.
— Moça direita num mundo torto… essa eu quero ver.
Dou um trago longo, solto a fumaça devagar e olho pro Zezão sem pressa.
— Olha só, parceiro... eu até acredito na tua reza, mas aqui oração não paga aluguel.
Tu quer milagre? Vai pro céu.
Aqui embaixo é lei de homem, e lei de homem é simples: deveu, paga.
Ele engole seco, cabeça baixa, o suor descendo pelo rosto sujo.
— Eu tô tentando, patrão, juro... é que tá difícil, a polícia fechou tudo, ninguém dá trampo pra quem já foi preso...
— E eu com isso? — corto, voz firme. — Cê acha que eu subi esse morro sendo bonzinho? Eu cresci vendo n**o morrer por meio copo d’água e não chorei, parceiro.
Se tá vivo, agradece. Se deve, paga.
A rua tá muda, todo mundo ouvindo atrás das janelas.
Até o vento parece respeitar o silêncio do dono.
Me levanto devagar, cada passo pesado batendo no chão de cimento.
Paro na frente dele, aponto o cigarro no ar.
— Vou te dar um mês, Zezão. Um. — falo, dedo em riste. — Depois disso, se o aluguel não cair na minha mão, tu vai cair da ladeira.
Volto pra cadeira, pego o copo com café frio e viro num gole só.
— Agora vaza, Zezão. E reza pra tua filha rezar forte, porque se eu descer nessa viela e não ver dinheiro, nem santo vai segurar tua alma.
O homem levanta, tropeça nas próprias pernas e vai saindo, balançando a cabeça, murmurando “Deus é pai”.
Eu só dou um sorriso torto.
— Deus é pai. Eu sou cobrança.
A rua ainda tava muda quando o Zezão virou a esquina.
O silêncio que ficou depois dele era pesado, tipo ar antes de tempestade.
Peguei o cigarro do canto da boca, olhei pro Juninho que ainda tava parado na porta, esperando o que vinha depois.
— E aí, pivete, cê já viu essa tal de noviça por aqui? — perguntei, coçando o queixo.
Ele franziu a testa, meio rindo, meio sem graça.
— Noviça, chefe? Ah, deve ser alguma véia, dessas de lenço na cabeça que reza até pro botijão não explodir.
Soltei uma risada curta, seca.
— Véia coisa nenhuma, menor. Cê acha que eu ia perder tempo com beata enrugada? Se o Zezão tá escondendo ela, é porque tem motivo. E eu vou descobrir.
Me levantei devagar, a cadeira raspando no chão de cimento. Fui até a janela, olhei a ladeira descendo.
O morro ainda acordava, mas o que eu via era sempre o mesmo: moleque de chinelo furado, mulher estendendo roupa, polícia lá embaixo fingindo que não via nada.
Meu território. Meu inferno particular.
— Faz o seguinte, Juninho — falei, jogando a bituca longe. — Tu vai descer lá e ficar de campana na viela do Zezão. Vinte e quatro horas, entendeu?
Se essa tal santinha aparecer, cê me liga na hora. Quero saber quem é, de onde veio e o que faz descendo pro morro.
O moleque arregalou os olhos.
— Mas, patrão, e se for coisa de igreja mesmo? Tipo mulher de véu e terço na mão?
— Então tu reza junto, p***a. — falei rindo torto. — Mas não tira o olho. Se for santa, eu quero ver o milagre. Se for outra coisa… eu mesmo faço o exorcismo.
Ele riu, nervoso, e assentiu rápido.
— Fechou, chefe. Vou ficar na contenção.
— E leva o Neguinho contigo. Dois olhos é pouco pra morro grande.
Se eu souber que cês dormiram no plantão, eu quebro o rádio no dente dos dois.
— Pode deixar, patrão.
Juninho ficou ali na porta, segurando o rádio contra o peito, com a testa franzida.
— Mas patrão… cê pensa fazer o quê, se achar essa tal de santinha aí? Vai cobrar dívida com mulher de Deus? — ele perguntou, meio rindo, meio tenso. — Porque, sei lá… mexer com gente de igreja dá zica, né não?
Soltei a fumaça devagar, o cigarro queimando no canto da boca.
— Tu é muito supersticioso, pivete. — falei baixo, o olhar fixo lá fora. — Eu não mexo com Deus, não. Mas se Ele tá mandando uma santa pro meu morro… eu quero saber o porquê.
Juninho coçou a nuca, nervoso.
— Vai ver é só isso mesmo, patrão. Filha do coroa lá, noviça, vive de véu e reza. Melhor deixar quieto.
— Quieto? — soltei uma risada seca. — No morro nada fica quieto, Juninho. Quando o vento sopra diferente, é sinal que tem coisa vindo. E se for pra dar merda, eu prefiro saber o cheiro antes de pisar nela.
— Agora vaza, Juninho. — falei, a voz seca, sem levantar o olhar. — Some antes que eu arrume serviço pior pra tu.
O moleque nem respondeu. Saiu rápido, quase tropeçando nos próprios chinelos, sumindo na ladeira.
Fiquei ali, sozinho no barraco, o rádio chiando de fundo e o eco da favela acordando devagar.
Peguei o espelhinho que tava no canto da mesa, o pozinho branco já espalhado.
Cortei a fileira com o cartão, ajeitei firme, e aspirei sem piedade.
O gosto amargo subiu queimando o nariz, invadindo o cérebro.
Fechei os olhos por um segundo, sentindo a mente ficar leve, o corpo pesado, o sangue acelerando.
A adrenalina vinha junto com a lucidez.
Era ali que eu pensava melhor.
Era ali que o mundo fazia sentido.
— Santa no meu morro... — murmurei, limpando o nariz com as costas da mão. — Isso eu ainda quero ver.
A fumaça do cigarro misturava com o cheiro da coca, o chão sujo, o ar pesado.
Encostei na janela e olhei pra baixo.
O morro era meu cada viela, cada barraco, cada grito abafado.
Mas mesmo sendo dono de tudo, eu sabia que paz era coisa que não existia pra mim.
Peguei a pistola que tava na mesa, encaixei no coldre e bati o cigarro na borda da janela.
O sol começava a nascer lá atrás do morro, tímido, batendo fraco nas telhas de zinco.
E no meio daquele caos inteiro, um nome ficou martelando na cabeça.
“Noviça.”
Uma mulher de véu, no meio da minha quebrada?
Ou era mentira, ou era aviso.
E se tinha aviso, eu ia descobrir do meu jeito.
Aspirei mais uma vez, o pó queimando na alma.
— Se for santa, vai descer do céu pra me olhar nos olhos. — murmurei, rindo de canto. — Se for só mulher… vai aprender a rezar pra mim.
Encostei na cadeira de novo, perna esticada, batucando o dedo na mesa.
A mente fervendo, o peito aceso.
Lá fora, o morro seguia o ritmo.
Mas eu já sabia: tinha coisa grande vindo.
E quando a tal santinha pisasse aqui… o inferno ia se ajoelhar diante do Tigre.