📖 CAPÍTULO 1 — TIGRE
Noite de quinta, favela gritando no talo.
O batidão faz a janela da boate tremer.
Luz vermelha, fumaça subindo, cheiro de suor, cerveja e maconha misturado no ar.
Aqui é meu reino e quem não gosta, desce de camburão.
Tô largado no camarote, camisa aberta, corrente grossa brilhando no peito suado.
Uma das meninas sentada no meu colo, rindo alto, o batom vermelho borrando meu pescoço.
Outra agachada na minha frente, enchendo meu copo de uísque barato, olhando pra cima como se eu fosse deus ou d***o tanto faz.
— Tigre, cê tá quieto hoje, hein? — ela cutuca, rodando a mão na minha coxa.
Trago o cigarro, soltando a fumaça no rosto dela.
— Tô só olhando o movimento, princesa. Quem fala demais, se perde no próprio eco.
O parceiro do lado joga as notas em cima da mesa.
Dinheiro suado, sangue, pó, noite virada.
— Fechou a boca da subida, chefe. Hoje rendeu. — ele fala, sorriso de malandro, ouro brilhando no dente.
— Quero ver render amanhã, neguinho. Hoje é hoje. No morro ninguém dorme de sucesso. — respondo, rindo torto.
Dois menor entram correndo, quase tropeçando nos próprios pés.
Um segura o fuzil como quem abraça mãe no Natal, o outro já vem na humildade.
— Chefe, os alemão tão querendo fechar na linha do bonde, falou que vai vir buscar pedágio, tá ligado?
— Fala pra eles que aqui só entra com autorização minha ou sai com tiro. Morro da Penha tem dono, e o nome tá no portão aponto pra tatuagem no peito.
A menina me beija, a outra pede fogo, o camarote fede a mulher, poder e perigo.
O DJ grita meu nome no microfone, o baile inteiro levanta o copo.
— É o Tigre, p***a!
— Rei do morro!
— Domina tudo!
Solto um riso de canto, levanto o copo em resposta.
Eles aplaudem, gritam, querem ser eu ou morrer tentando.
Mas ninguém aguenta carregar o peso desse trono.
Nem sabe o preço.
Olho em volta olho tudo.
Vendo quem tá rindo, quem tá secando, quem é parceiro, quem é traíra.
No morro, confiança é luxo, lealdade é artigo de luxo roubado.
Ainda com a Morena sentada no meu colo, dou o toque no parceiro: — Prepara lá no beco, hoje eu não quero ninguém enchendo o saco aqui.
Ela me puxa, rindo, achando que manda. m*l sabe que mando até no desejo dela.
Levanto, arrasto ela pela cintura, atravesso o salão da boate daquele jeito que todo mundo já entende — “dá passagem, que hoje quem manda é o dono”.
No caminho, n**o me cumprimenta, os moleque do tráfico fazem fila só pra mostrar que tá tudo alinhado.
— E aí, Tigre, vai sumir? — um deles zoa, mas é na moral, porque ninguém passa do limite.
Desço os degraus da saída dos fundos, o funk abafado pela parede rachada.
Porta abre, e pronto, caímos no coração do morro.
Rua apertada, barraco colado um no outro, parede com grafite meu uma onça pintada, sangue escorrendo no focinho, “TIGRE É LEI” em vermelho berrante.
Na frente do beco, dois moleque com o radinho preso no short: — Tá liberado, chefe — avisam, afastando geral.
Entro no miolo da favela, sem medo, cabeça erguida.
Aqui ninguém encosta. Se encostar, já era.
Tem colchão jogado, cadeira de plástico, TV pendurada num fio roubado.
Mina rindo, pitando, olhando de canto pra ver se ganha moral com o chefe.
Levo a Morena pro meu canto preferido: um quartinho improvisado atrás do bar, janela pequena, cheiro de cigarro grudado na parede, lençol vermelho furado no colchão.
Nada de luxo, só privacidade e respeito.
Quem entra com o Tigre, sai falada o mês inteiro.
Ela joga a bolsa no chão, tira o salto, já se ajeita: — Tu só me chama pra bagunça, hein, Tigre?
— Pra missa, eu chamo padre — solto, largando o corpo no colchão, cigarro entre os dedos. — Aqui é lugar de esquecer o mundo.
Ela senta no colchão, perna cruzada, olho brilhando de vontade e malícia.
Puxa o cabelo pro lado, tira a blusa devagar, rindo daquele jeito de quem sabe provocar.
— Bora, Tigre. Tu é o dono do baile ou vai arregar pra mim?
Solto o cigarro no copo vazio, fico só de olhar olho de predador, de quem já cansou de brincar.
— Se acha fodona, né? Então mostra se merece o nome que fala por aí. Ajoelha, mostra serviço.
Aqui é sem massagem, sem amorzinho. Não é motel, é favela. Quem entra, sabe o que veio buscar.
Ela morde o lábio, se joga no chão, pronta pra cumprir o papel.
Meu olhar é comando, minha palavra é ordem.
A mão pesada segura na nuca, a outra ajeita a corrente no peito.
Quem manda sou eu. Quem obedece, aprende.
Na favela, carinho é só pra mãe.
Aqui é suor, é boca suja, é vida dura, é prazer sem romance.
Termina, ela ajeita o cabelo, pergunta se pode ficar mais.
Dou risada curta, pego a camiseta, limpo o suor do rosto.
— Já deu pra tu, Morena. Vai rodar, fala pra geral que pegou o dono, mas não se apega não, que aqui só fica quem aguenta o peso.
Ela sai do quarto ajeitando a saia, sorriso no canto da boca, orgulho e vaidade misturados no mesmo corpo.
Eu fico ali, sentado, olhando o mundo girar atrás da janela pequena do barraco.
Cigarro de novo na mão, coração gelado, olhar longe.
No morro, prazer é só mais um jeito de lembrar que a vida não é feita pra quem sonha é feita pra quem sobrevive.
A noite lá fora grita, mas aqui dentro é só eu e meus demônios.
Olho pro espelho rachado, passo a mão no peito o desenho da onça estampado no músculo, corrente grossa no pescoço.
Braço fechado de tatuagem, pele marcada de história e guerra.
Trinta e dois anos de vida, nenhum de paz.
Pra uns, Estêvão Magalhães.
Pro resto do mundo, só TIGRE.
Já ouvi de tudo nessa vida: bandido, monstro, rei, maldito, solução e problema.
Mas quem manda aqui sou eu.
No morro da Penha, meu nome é senha abre porta, fecha caixão.
Cresci no veneno, aprendi cedo que quem treme perde, quem sorri demais morre cedo.
Meu velho caiu pra polícia, minha mãe ralou até sumir.
O morro me ensinou a ser c***l.
Coração de pedra, mão de ferro, olho de bicho r**m.
Tenho trinta e dois, mas alma de oitenta.
Nunca confiei em ninguém.
Amizade aqui vale menos que nota falsa.
E mulher, parceiro?
Mulher aqui só sobe se souber abaixar a cabeça igual a Morena agora.
Quer mais? Procura na igreja.
Não sou bonzinho, não sou vilão de novela.
Sou o dono da p***a toda, aquele que o povo respeita na marra.
Coleciono inimigo igual coleciono corrente de ouro.
Pra cada traíra que já cruzou meu caminho, tem um buraco aberto e uma reza torta.
Aqui é fácil virar estatística.
Falam que no morro não existe fé.
Mentira.
Fé aqui é acordar e não tomar tiro de graça.
É botar o nome na boca do povo e ainda sorrir no final do dia.
Olho as câmeras da viela, cada canto do território piscando na TV de tubo, imagem chiada.
Se der merda, meu dedo coça no gatilho antes do inimigo piscar.
Sabe o que é pior?
Quando o baile termina, quando a mina vai embora, só sobra eu, a fumaça e a culpa.
No fundo, bandido também sente.
Só não mostra.
Puxo mais um cigarro, a fumaça faz desenho no teto.
O relógio bate três, e eu tô acordado.
No morro, quem dorme muito acorda morto.
A rua nunca descansa, e quem manda, menos ainda.
Meu nome é Estêvão Magalhães.
Vulgo Tigre.
Trinta e dois anos.
Rei do Morro da Penha.
Quem desafia… cai.
Quem beija minha mão… sobe.
E quem jura que vai mudar meu destino, ainda vai aprender do pior jeito:
Aqui, até a santidade sangra.
E o pecado…
O pecado tem meu rosto e minha voz.
Amanhã é outro dia.
E no meu reino, só tem lugar pra bicho selvagem.