PRÓLOGO

1778 Palavras
📖 PRÓLOGO — A NOVIÇA DO TRAFICANTE Narrado por Catarina O cheiro da igreja sempre me acalma. A cera derretida das velas, o incenso subindo lento, o som oco dos passos entre os bancos de madeira. Aqui dentro, o mundo parece parar. A cidade lá fora corre, grita, blasfema. Mas dentro dessas paredes, tudo é silêncio e, mesmo assim, o silêncio hoje me pesa. Ajoelhei no primeiro banco, ajeitei o véu sobre os ombros e fechei os olhos. Os dedos deslizaram pelo terço, um a um, até que percebi que minhas mãos tremiam. Faz três dias que voltei do fim de semana em casa. Três dias desde que vi meus pais, desde que o sol parecia mais quente, desde que o morro parecia me chamar como se tivesse voz. Eu deveria estar em paz. Deveria sentir a leveza de quem serviu, ajudou, visitou a família. Mas não. Desde que voltei... há algo errado. Algo que não consigo nomear. As orações que sempre fluíam fáceis agora tropeçam na minha boca. O “Pai Nosso” sai partido. A “Ave Maria” engasga no meio. E o nome de Deus, pela primeira vez, me parece distante. Abri os olhos. O vitral à frente filtrava a luz do fim de tarde, tingindo o altar de dourado e sangue. Do lado de fora, o barulho dos carros, o apito de um vendedor, a vida comum. Mas aqui dentro, era só eu, o crucifixo e o vazio. — Senhor... — sussurrei, tentando prender o choro que já ameaçava vir. — Me mostra o que está acontecendo comigo. Eu não entendo. O vento passou pelas janelas, balançando as cortinas brancas. As velas tremularam. E o arrepio subiu pela minha nuca como se uma presença invisível tivesse acabado de entrar. Fechei os olhos outra vez. As lembranças daquele fim de semana vieram como uma maré: o barulho da viela onde cresci, o cheiro de café da minha mãe, o sorriso cansado do meu pai. E ele. Aquele homem que apareceu no portão da casa dos meus pais como se o tempo o tivesse esculpido à força. Camisa preta, tatuagens subindo pelo pescoço, olhos escuros que não desviavam e a voz... a voz que me fez esquecer o que estava rezando. Eu não deveria lembrar. Mas lembro. Lembro dele dizendo meu nome como se testasse cada sílaba. Lembro da forma como o mundo ficou pequeno quando ele olhou pra mim. Lembro da sensação de estar viva e em perigo ao mesmo tempo. Tentei afastar o pensamento, mas o corpo não obedeceu. O coração batia rápido demais pra uma oração, devagar demais pra uma fuga. — Deus... — murmurei, com o terço preso entre os dedos. — Eu vi o d***o, e ele tem olhos de homem. As palavras ecoaram dentro da igreja, baixas, roucas, sinceras. Engoli o ar pesado e continuei, quase num sussurro: > Fala meu nome como se rezasse, mas cada palavra dele queima. Se isso é tentação... então me perdoa, porque eu já caí. O silêncio da igreja me abraçava, mas já não trazia paz. Senti o nó na garganta crescer, pesado, como se cada pensamento fosse uma blasfêmia engasgada. Ajoelhei de novo, encostando a testa no banco frio. — Não quero sair do meu caminho, Senhor... — minha voz saiu trêmula, quase infantil. — Eu prometi. Eu entreguei tudo. Meu corpo, meus dias, minha fé. O eco devolveu minhas palavras como se a própria igreja me ouvisse e não acreditasse. Fechei os olhos com força. O rosto dele insistia em aparecer por trás das pálpebras, o sorriso torto, a voz rouca dizendo meu nome devagar, como quem prova algo proibido. — Afasta isso de mim... — supliquei, as mãos apertando o terço com força. — Afasta esses pensamentos, essa lembrança, esse olhar. Eu não quero sentir, meu Deus. Eu não posso. Respirei fundo, tentando apagar a imagem. Mas quanto mais eu pedia pra esquecer, mais ele voltava. Era como se o ar carregasse o cheiro dele, e o som da rua lá fora trouxesse a risada que me tirou o sono desde aquele dia. — Eu sei que foi só um encontro — continuei baixinho. — Eu sei que não devia olhar, nem ouvir, nem querer entender quem ele é. Mas o coração... o coração não obedece, Senhor. As lágrimas caíram sem aviso. Escorreram pelo rosto, frias, e se misturaram com o sal das promessas que eu fiz. Eu queria fé. Mas o que crescia dentro de mim era outra coisa uma curiosidade perigosa, um fogo que não combinava com o véu que cobria minha cabeça. — Eu sou tua, Deus... — murmurei, olhando o crucifixo. — Mas e se for ele que o Senhor mandou pra me testar? E se for isso? O vento soprou mais forte, como resposta. As velas dançaram, uma se apagou. E por um instante, a sombra do altar pareceu viva, movendo-se como um presságio. Segurei o terço junto ao peito, respirando fundo, forçando o corpo a ficar ali, firme. Ajoelhei de novo, as pernas doendo, o chão frio queimando nos joelhos. — Me guarda, Senhor. — pedi num fio de voz. — Me guarda de mim mesma. Do que eu senti. Do que ele fez nascer. O tempo dentro da igreja não corre, arrasta. O eco dos meus próprios passos entre os bancos vazios me acompanha como um pecado que se recusa a ir embora. Ajoelhei, o corpo pedindo descanso e a alma implorando perdão. O véu escorregava do meu cabelo e eu ajeitava outra vez, como se a roupa certa pudesse esconder o erro errado. O incenso queimava devagar, e o ar cheirava a cera, fé e culpa. — Me guarda, Senhor… — sussurrei. , Dos meus pensamentos, do que eu vi, do que senti… Mas Deus, naquele dia, parecia calado. Desde que voltei do fim de semana na casa dos meus pais, carrego um peso estranho. O tipo de peso que a oração não alivia. Os olhos dele ainda me perseguiam, mesmo ali, diante do crucifixo. Tentei respirar fundo, focar no som do sino lá fora, no murmúrio distante da cidade, mas era inútil. A lembrança dele era mais alta que qualquer hino. O barulho das portas do fundo cortou meu pensamento. Um som seco, violento, que fez meu corpo inteiro estremecer. A madeira bateu contra a parede e ecoou pelo templo. Dei um pulo. O terço escapou da minha mão e caiu no chão com um estalo. Virei. E o mundo pareceu parar de novo só que dessa vez, por medo. Três homens entraram, roupas escuras, rostos cobertos. Um deles apontou o fuzil pro alto. O som metálico da arma se misturou com o das minhas batidas cardíacas. Outros dois começaram a se espalhar pelos cantos, como sombras vivas. Eu me encolhi no banco. — Quem... quem são vocês? — minha voz saiu fina, quebrada, mais medo do que coragem. Nenhuma resposta. O primeiro homem avançou devagar, sem tirar o olho de mim, como fera farejando carne nova. O segundo fez sinal pra outro lado, o outro começou a circular pelo altar, fechando passagem. Pensei em correr instinto puro, sobrevivência gritando mais alto que qualquer oração. Corri pra lateral, mirando a porta menor, onde a luz ainda escapava pra rua. Antes que eu chegasse, ela bateu. Seca. De lá, entraram mais dois. Um deles fechou com o ombro, girou o trinco e se encostou na porta, como se tivesse todo tempo do mundo. A igreja virou cativeiro. O cheiro do incenso agora misturava com pólvora e suor. E no meio do caos, ele apareceu. Sem camisa, só as correntes e tatuagem falando alto peito largo, olhar de aço e aquela cara de quem não tem tempo pra frescura nem piedade pra oração. Era o próprio demônio de favelado, mas bonito de um jeito que até Deus ficava em dúvida se perdoava ou prendia. Deu um passo pro corredor central, a bota batendo seco no chão da igreja. — Fecha tudo, rapaziada. — a voz dele saiu firme, sem pressa, aquele sotaque rasgado do morro, giria de quem já matou muito pra não morrer — Quero ninguém entrando, ninguém saindo. O bagulho aqui hoje é só comigo e a santinha. O coração quis sair pela boca. Eu tremia, mas tentei erguer a cabeça, tropeçando nas próprias pernas. Ele me olhou de cima a baixo, devorando, olhos escuros de predador. Chegou perto. Perto de verdade. Eu podia ver as cicatrizes, a tatuagem subindo pelo pescoço até encostar na corrente de ouro. O sol batendo no vitral desenhava a cruz no peito dele. Ironia fina. — Cê não vai nem dar boa tarde, santinha? — ele riu, riso torto, m*****o. — Achei que igreja era lugar de acolher os perdido. Vim buscar salvação, ué. — Me deixa ir embora por favor... — eu sussurrei, a mão no peito, tentando segurar a coragem que já tinha fugido da cena. Ele esticou a mão, pegou meu terço do chão com dois dedos. Rodou entre as mãos, olhando o crucifixo como quem avalia se serve pra alguma coisa além de decoração. — Isso aí não vai te salvar hoje, não. — ele disse, jogando o terço de volta pro meu colo. Virou pras sombras atrás, voz de quem comanda exército: — Segura a entrada, irmão. Ninguém encosta na mina. Quem botar a mão, perde o braço. Olhou pra mim outra vez. Agora, mais perto ainda, aquele cheiro de cigarro, pólvora e homem perigoso invadindo meu espaço sagrado. — Sabe por que eu vim, né? — o olhar dele era ameaça e promessa na mesma frase. — Porque Deus te esqueceu aqui. Agora tu é minha, santinha. Fiquei muda. Não tinha palavra, só um medo quente, misturado com alguma coisa que eu não admitia nem pra mim mesma. A igreja inteira parecia pequena perto dele. O altar, o vitral, tudo virou cenário pra o espetáculo da minha queda. Ele passou o dedo pelo meu queixo, sem delicadeza, levantando meu rosto à força. — Reza o quanto quiser, noviça. No final, o seu amém vai ser meu nome. E eu só conseguia rezar em silêncio, sabendo que daquela igreja eu não saía do mesmo jeito. 📝 Recado da autora E aí, meninas? Será que a santinha do Tigre vai aguentar o peso desse pecado ou vai se render pro d***o mais lindo do morro? Vem aí A Noviça do Traficante, minha nova aposta no Dreame! Já adiciona na biblioteca e prepara o coração, porque assim que bater 50 adicionados vai ter atualização diária pra vocês! Vai perder? Marca presença, espalha pra geral e bora descobrir juntas até onde a fé aguenta quando o desejo bate na porta da igreja! 🔥⛪💥
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