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O
dia terminara tranquilo e eu me sentia extremamente exausta. Cuidar de um paciente que não reagia e apenas dormia exigia mais do que cuidar de bebês o dia inteiro. Sim, o que Celeste havia suspeitado estava de fato acontecendo e teríamos muito mais trabalho agora que, depois de passadas 24 horas, o paciente Bryan Collors entrara de fato em coma indeterminado, me causando ainda mais preocupação.
Eu sabia que não estava me cuidando tão bem e isso era notável pelo olhar de preocupação que meus amigos lançavam cada vez que me encaravam.
Queria escapar de seus olhares questionadores, que me desgastavam mais do que o trabalho que fazia no hospital.
Quando finalmente adentrei em meu quarto, me joguei na cama sem pensar duas vezes. Não havia comido nada desde a tarde no hospital e nem sentia fome. Meus pés se recusavam a dar qualquer passo, meu corpo doía só de pensar em me mover. Apenas fiquei ali, sentindo o calor do cobertor relaxar meus músculos lentamente.
Nem sequer percebi quando peguei no sono, mergulhando de volta para aquele jardim, para mais um sonho com Bryan.
— Você voltou - escutei sua melodiosa voz. Mas seu tom parecia mais de pergunta do que afirmação.
Analisei sua expressão. Eu estava da mesma forma que havia me posto no sonho anterior, ajoelhada na frente do rapaz. Ele também mantinha a mesma posição: sentado com as pernas cruzadas em um X e me encarava cheio de dúvidas.
— Parece que sim já que está me vendo - rebati cheia de ironia fazendo o moreno arquear uma sobrancelha.
O rosto sério me fazia concluir que Bryan ainda não confiava em mim.
— O que quis dizer quando disse que não sabia se eu iria acordar em breve? - perguntou diretamente, dispensando as cumprimentações adequadas.
Eu ainda estava sem saber se ele podia me escutar do mundo real ou se só teríamos comunicação através dos sonhos. Mantive os lábios bem fechados, temendo falar a verdade.
Bryan respirou profundamente, impaciente, mas não insistiu em uma resposta. Seu olhar ficou distante enquanto fitava a grama entre nós, mexendo naquele verde com seus dedos.
— Eu pensei que acordaria logo após ve-la sumir mas... - o rapaz engoliu em seco, frustado — é como se algo me impedisse de sair desse sonho, como se eu não soubesse mais acordar - desabafou, finalmente me encarando. Seus olhos pediam respostas.
Suspirei fracamente, desviando o olhar de seu rosto e fitando a paisagem ao redor. Eu pretendia revelar toda a verdade a ele, tudo que estava acontecendo com ele, mas não sabia como começar.
— Vai mesmo cuidar de mim, Minah? - o encarei sobressaltada ao ouvir aquelas palavras.
Aquilo confirmara minhas esperanças de que ele pudesse me ouvir longe dos sonhos.
— Você me ouviu... de verdade? - quis confirmar, sentindo meu coração estranhamente acelerado.
Bryan assentiu, confirmando enquanto movia lentamente a cabeça.
— Não sei como, mas ouvi sua voz mesmo quando você já havia sumido. Você parecia sussurrar em meu ouvido - garantiu, ainda confuso.
Eu não conseguia imaginar o quanto devia estar sendo confuso para ele ter sua consciência presa em um sonho constante enquanto seu corpo não esboçava reação para a realidade. E ainda falar com uma pessoa que nunca havia visto antes e que não sabia se podia confiar.
— Quem é você, Minah? Por que posso ouvi-la mesmo fora de sonho? Por que não consigo acordar deste sonho? - a angustia e o desespero em seus questionamentos fizeram meu corpo arrepiar de pena.
Senti uma grande necessidade de protege-lo, de diminuir seu sofrimento. Eu estava cada vez mais certa de que precisava ajuda-lo.
Suspirei novamente, tentando organizar as palavras em minha cabeça e tomar coragem para dize-las.
— Você sofreu um acidente no mundo real e agora está em coma - revelei em tom baixo, mas estávamos próximos o bastante para ele me escutar — eu sou a enfermeira que está cuidando de você - o encarei, tentando não me sentir intimidada com sua expressão surpresa.
O homen ouviu tudo pacientemente, com o olhar perdido. Parecia estar forçando sua mente a lembrar de algo.
— Eu lembro do acidente - revelou, ainda pensativo — minha noiva e eu estávamos indo para uma viagem de férias e acabamos discutindo no volante. Acabei perdendo o controle enquanto dirigia - a medida que contava os detalhes seus olhos enchiam-se de lágrimas — o que aconteceu com ela? - me perguntou cheio de dor, tentando segurar as lágrimas.
Mordi o lábio, me preparando para revelar a pior parte daquela notícia.
— Ela não resistiu - o encarei fixamente e me arrependi ao ver as lágrimas escorrendo por seus olhos — sinto muito - murmurei, sincera.
O outro assentiu e se permitiu chorar enquanto eu permanecia ali, sem saber o que fazer. Sabia o que era perder sua única família, a pessoa que mais ama, mas não sabia se ele me permitiria consola-lo.
— Foi minha culpa. Eu não devia ter gritado com ela, se eu não tivesse começado a discussão ela ainda estaria viva - falou com dificuldade em meio ao choro, passando a mão pelos cabelos.
Era demais para mim, não suportava ve-lo se culpando daquela forma. Meu coração doeu ainda mais ao ver seu sofrimento. Sem pensar, me aproximei do mesmo e envolvi seu pescoço com meus braços, o abraçando fortemente. Ele pareceu surpreso no ínicio mas retribuiu depois de alguns segundos, repousando suas mãos em minhas costas e deitando a cabeça em meu ombro. Era estranho poder senti-lo mesmo sendo apenas um sonho, mas ao mesmo tempo era reconfortante. Sentia que estávamos dando apoio e conforto um ao outro.
— Você não teve culpa, tenho certeza de que sua noiva também não acharia isso - garanti, levando uma das mãos até seus cabelos e acariciando lentamente.
Estava tão focada em reconforta-lo que m*l percebi que Bryan estava sendo o primeiro garoto além de Minho a ter uma proximidade maior comigo. Eu nem sequer me lembrava da última vez que abraçara algum garoto além do meu melhor amigo.
— Minah, quero que me prometa uma coisa - ele nos afastou após passarmos um tempo abraçado, já mais tranquilo.
Ele me olhava de forma tão séria, tão firme, que fiquei tensa mas sustentei o olhar.
— Procure a família da minha noiva, Suzane Dantes - pronunciou os nomes bem devagar, esperando que eu gravasse — entre em contato com eles e diga o que aconteceu, por favor, só assim terei paz depois que acordar - completou, segurando uma de minhas mãos e a apertando com carinho.
Assenti lentamente, retribuindo o aperto para selar aquela promessa.
Mais uma promessa.
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Ler um livro sempre me acalmava. As histórias emocionantes, as palavras enriquecedoras, as mensagens nas entrelinhas, tudo fazia viajar para um mundo existente apenas nas páginas. Eu poderia passar horas vasculhando as estantes daquela biblioteca, viajando entre reinos, sociedades, magia, guerras, diversos tipos de histórias, contadas pela mente e letra de diferentes autores.
Mas não havia tempo para isso e apenas peguei o romance adequado antes de ir até a fila do caixa para pagar. Precisava voltar ao hospital para cuidar de Bryan Collors, já faziam duas semanas que permanecia em um sono profundo, inerte na cama e sustentado por aparelhos. A maioria de suas fraturas e ferimentos na pele estavam sendo tratados e sarando aos poucos, pelo menos não sentiria muitas dores quando acordasse.
Os sonhos continuavam. Durante aquelas duas semanas passei a vê-lo sem falta nos meus sonhos, sempre no mesmo lugar, com as mesmas roupas pretas e a mesma expressão de sofrimento. Havia piorado desde que soube do falecimento de sua noiva, parecendo ainda mais pertencer àquele lugar. Eu temia que ele nunca acordasse e não sabia o que mais podia fazer além dos meus esforços de enfermeira para ajuda-lo.
— É um livro muito bom - ouvi alguém comentar ao meu lado.
Virando-me para a voz fina e aguda, pude ver um menino de cabelos negros bagunçados, olhando diretamente para o objeto em minhas mãos. Não devia ter mais que dez anos e usava um casaco muito grande para seu tamanho.
— É....você gosta de ler, pequeno? - perguntei, abrindo um sorriso leve.
Gostava de crianças, apesar de ser algo inalcansavel para mim. A inocência e a inteligência delas me encantava.
O menino sorriu e pareceu ignorar minha pergunta.
— Histórias de amor são bonitas de se ler, mas bem mais intensas se forem vividas - ele tinha um olhar sério e intimidador demais para uma criança.
Franzi o cenho, confusa.
— Mas não estou vivendo uma história de amor - garanti, um pouco sem jeito. Falar de amor era difícil, ainda mais com uma criança.
O menino apenas deu de ombros e pegou o livro grosso que o caixa lhe estendera.
Agradecia pelo moço do caixa ser reservado e não se meter nas conversas que ouvia entre os clientes.
— Crianças nunca erram, principalmente sobre a forma como vêem o mundo - essas foram as últimas palavras dirigidas por ele.
Não consegui responder. O menino colocou o livro em sua mochila e saiu correndo da livraria, provavelmente para encontrar sua família. Ele tinha sorte de ter uma, a sorte que eu não tinha...
Mesmo que tivesse sido adotada poucos meses após o acidente que me tirou meus pais, eu não considerava minha nova família como algo verdadeiro.
— Senhorita? - ouvi o caixa chamar minha atenção e rapidamente desviei os olhos da porta, entregando meu livro para ser registrado no pagamento.
Nem havia percebido que ficara encarando o menino ir embora. Duvidava se algum dia o veria novamente.
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Quando adrentei o quarto do paciente, me senti aliviada ao ver que não tinha ninguém por perto. Seria apenas eu e ele, como já estava sendo nos sonhos.
Me sentei rapidamente na ponta da cama, encarando o rosto adormecido e pálido de Bang Chan. A respiração constante, determinada por um tubo e uma máquina, os curativos trocados, o único som presente sendo o "beep" das máquinas que sustentavam sua vida.
Eu ainda não sabia como encontraria a família de sua ex noiva, nem mesmo havia achado registros dela durante o exame de autópsia. O celular da jovem fora perdido, havia quebrado durante o acidente. E não havia sinal de documentos em seus pertences que ficaram no carro capotado. Nada foi recuperado.
Mas eu não ia desistir, fiz essa promessa a Bryan e cumpriria, embora levasse tempo.
— Oi, Chan, ainda não achei a família de Suzane mas não se preocupe, não vou desistir - abri um sorriso mesmo sabendo que ele não veria e abri o livro — antes de vir pra cá pensei: por que não ler uma história para ajudar a passar o tempo? Então, espero que goste. É sobre a história de amor entre duas pessoas completamente diferentes, mas ao mesmo tempo iguais por serem solitários. O nome do livro é A Maldição do Tigre- comecei a passar as páginas, limpando a garganta para começar.
— A garota não via muitas opções fora de seu mundo, havia perdido os pais e tinha problemas para enxergar sua família adotiva com afeto. Ela não tinha esperanças também de se relacionar com ninguém, achava que a vida era só trabalho, e quando ficava sozinha ela era consumida pela solidão e pela saudade que tinha dos pais - precisei me esforçar para não deixar que as lágrimas caíssem, sentindo meus olhos arderem. Parecia tanto a minha triste história...
" Então um dia, durante seu trabalho temporário no circo, ela é encarregada de cuidar de um animal peculiar e diferente: um tigre branco de olhos azuis. Ela se sentiu estranhamente atraída por ele, talvez por acha-lo tão solitário quanto ela. Os dois logo viraram amigos, ela cuidou do tigre como se estivesse cuidando de alguém da sua família. Até que ela descobriu que ele era um homem, amaldiçoado a viver o resto de seus dias como um tigre. E enquanto partiam em uma missão juntos para salvá-lo, acabaram se apaixonando perdidamente."
Sorri ao encarar instintivamente o moreno adormecido, sabendo que ele me ouviu. Eu sentia que ele ouvia.
E de alguma forma, sentia que aquela história tinha algo haver conosco. Talvez por ambos sermos solitários como a moça e o tigre- homem do livro.
Comecei a ler o livro após fazer esse breve resumo, mergulhando naquele mundo de contos indianos e amor intenso. Nem mesmo percebi quando segurei a mão pálida de Bryan, presa entre agulhas e curativos. Mas essa mão que devia estar fria, senti estar quente. Talvez fosse o calor da minha própria mão aquecendo a dele.