Lunara Tokatli
Fecho a porta do meu quarto e a tranco, como se pudesse trancar o mundo do lado de fora.
O meu coração ainda bate rápido.
A adrenalina me mantém de pé, mesmo quando sinto que tudo dentro de mim vai desabar.
Me jogo na cama, ainda com os papéis nas mãos. Eles estão amarrotados pelos meus dedos, mas continuam intactos. São minha garantia, meu escudo e a minha prisão.
As assinaturas estão aqui. Selos, carimbos, promessas de apoio, alianças veladas.
Alguns desses nomes me fazem respirar com alívio; outros me enchem de desconfiança.
Eu sei que parte desse apoio é falso, que há quem espere a primeira oportunidade para me derrubar.
Mas ninguém poderá me tocar agora.
Esses papéis me protegem e ao mesmo tempo me condenam ao cargo que jamais esperei.
Fecho os olhos e sinto o tecido frio do lençol sob minha pele. Por um instante, queria voltar a ser apenas filha, não herdeira. Queria ouvir a voz do meu pai, mesmo que ele me mandasse calar a boca.
Mesmo que me olhasse com aquela arrogância habitual, como se o mundo inteiro devesse algo a ele. Eu aceitaria tudo. Desde que ele ainda tivesse força para continuar me guiando e me dando conselhos. Mas o tempo é implacável, e eu sei que Halit Tokatli está morrendo lentamente, silenciosamente, e eu não posso fazer nada.
Fico alguns minutos aqui, olhando o teto e tentando entender o que me espera.
Os próximos dias serão decisivos. Os conselheiros vão começar a se mover. Os chefes menores vão questionar. Alguns virão com sorrisos e flores; outros, com veneno e punhais.
Eu preciso estar pronta para todos.
Respiro fundo e me levanto. Caminho até o canto esquerdo do quarto, onde um tapete antigo cobre parte do piso. Ajoelho e empurro-o para o lado.
Ali está a pequena alavanca que meu pai me mostrou há poucos dias: o segredo da família Tokatli.
A puxo devagar, e o som mecânico ecoa baixo. A parede desliza, revelando um corredor estreito e frio.
Desço as escadas com passos contidos, o coração acelerado. A luz é fraca, apenas o suficiente para guiar o caminho até a sala secreta. Quando entro, sinto o cheiro do tempo: poeira, ferro, óleo, e algo que se mistura a lembranças antigas.
A sala é isolada, sem janelas. Apenas uma mesa, livros, mapas, e no canto esquerdo, o grande cofre.
Ele é maior que eu, preso à parede com parafusos de ferro.
Seguro o papel que tem o código e começo a girar o disco metálico. Ergo o ouvido, tentando ouvir o clique certo.
Erro uma, duas, três vezes.
Na quarta, o som seco preenche o silêncio.
A trava cede. Puxo a porta e ela abre lentamente, rangendo.
O que vejo me deixa sem fôlego. Dentro do cofre há pilhas de papéis, barras de ouro, notas diversas, munições, armas, e algumas bolsas pretas que reconheço de imediato. Transporte de dinheiro vivo.
Entre tudo isso, há um maço de documentos que levam o nome do Norte da Turquia.
Meu nome.
— É muita coisa pra absorver. — Sussurro para mim mesma.
Toco nas barras de ouro. Estão frias e são pesadas. Pego um dos contratos e leio por cima. São termos de alianças, de apoio, de transporte. Tudo o que mantém o Norte de pé.
Tudo o que agora está nas minhas mãos.
Fecho o cofre depois de guardar os papéis que trouxe e respiro fundo. Tranco novamente, giro o disco, confiro o número três vezes.
Antes de sair, observo as outras duas portas da sala. São outros caminhos que dão acesso a esse lugar. Pego as chaves de ferro e as tranco. Agora, só eu posso entrar por aqui.
O segredo morre comigo.
Subo as escadas de volta. A parede se fecha atrás de mim, selando o silêncio. De volta ao quarto, tiro as roupas com movimentos lentos. Entro no banheiro e deixo a água fria cair sobre o meu corpo. Preciso me despertar. Preciso sentir que ainda estou viva.
A água gela minha pele, e cada gota parece me lembrar de onde estou, no centro de uma guerra silenciosa, travada por homens que jamais aceitariam uma mulher como líder.
Eles vão tentar me dobrar.
Mas eu nasci para resistir.
Sou filha de Halit Tokatli, e o sangue que corre nas minhas veias não conhece rendição.
Quando saio do banho, escolho um vestido longo, de tecido leve, na cor creme.
Deixo os cabelos soltos. Eles escorrem pelas minhas costas, até a lombar.
Sempre amei meu cabelo. É a única parte de mim que nunca precisei esconder.
Me recuso a cortá-lo, por mais que o tempo ou as guerras tentem me convencer.
Passo perfume, ajeito a postura diante do espelho e observo a mulher que me encara. Seus olhos não tremem.
Mas há uma sombra ali. Uma tensão silenciosa, que parece crescer a cada segundo.
Agora, sou oficialmente a mulher mais poderosa do Norte e também o maior alvo.
Saio do quarto e caminho pelos corredores. Os empregados se curvam quando passo.
Alguns murmuram saudações, outros apenas me observam com curiosidade e medo.
Uma das empregadas, jovem e tímida, inclina a cabeça.
— É uma honra servi-la, senhora Tokatli.
— A honra é minha! — Respondo.
Mas por dentro, sei que devo ter cuidado com cada palavra, cada olhar, cada sorriso. O respeito pode ser genuíno… ou estratégico.
Aqui, tudo é questão de interesse.
Enquanto sigo em direção ao pátio, um dos conselheiros se aproxima.
É Dervin, homem de meia-idade, olhar esperto, sorriso contido.
Ele se inclina, em respeito.
— Parabéns, senhora Tokatli. É uma nova era para o Norte.
— Uma era que poucos acreditavam possível! — Respondo.
— É verdade... — Ele admite, com um meio sorriso. — Não é comum ver uma mulher no comando. Mas… compreendo a decisão.
Observo-o em silêncio por alguns segundos, tentando medir a sinceridade.
— Compreende mesmo? — Pergunto, com um leve arquejo de sobrancelha.
— Sim. — Ele mantém o olhar firme. — Seu pai foi sábio. O nome legítimo deve continuar em qualquer situação.
A resposta é calculada, e eu sei disso. Ele fala o que precisa falar.
Mas cada sílaba soa oca.
— A cerimônia de revelação será interessante. — Ele comenta, tentando aliviar o clima.
— Vai demorar. — Respondo com firmeza. — Meu pai ainda tem dias de vida.
Ele parece hesitar, mas apenas acena.
— Que Allah o mantenha conosco mais um pouco, então!
Faço um leve gesto de cabeça e sigo.
Não gosto de conversas longas com conselheiros. Eles têm o dom de falar demais e dizer de menos. Fora que querem manipular demais.
Ao chegar ao pátio, vejo os homens postos nos seus lugares. As armas à mostra, o som dos passos ecoando pelo mármore. A notícia sobre mim ainda não é pública, mas a mansão respira a mudança.
Eles me olham diferente.
Há curiosidade. E também medo.
Um medo silencioso, o mesmo que antecede a tempestade.
De repente, um carro escuro surge na estrada de pedra e para diante dos portões. Reconheço o veículo antes mesmo que a porta se abra.
O símbolo dourado na lateral é inconfundível.
— Osman… — Murmuro.
Meu padrinho desce do carro, acompanhado de uma jovem de cabelos escuros e olhos vivos.
Harika. Reconheço na hora!
Minha quase irmã de criação.
Osman se aproxima e faz uma leve reverência.
— Me perdoe pela demora, Lunara. Vim o mais rápido que pude.
— Está tudo bem. — Respondo, com um sorriso contido. — O importante é que veio.
— Como está Halit? — Ele pergunta, preocupado.
— Há dias bons e dias péssimos. Mas… a situação é séria.
Ele balança a cabeça, suspirando.
Harika dá um passo à frente, hesitante.
— Posso? — Pergunta, abrindo os braços.
Assinto.
Ela me abraça, e por um instante, sinto algo que há muito não sentia: familiaridade.
Ela ainda tem o mesmo perfume suave, o mesmo sorriso gentil. É bonita, talvez até mais do que me lembrava.
Tem dezenove anos, mas o brilho no olhar é ingênuo. E pelo jeito continua solteira!
— Eu senti sua falta, Lunara. — Diz ela.
— Eu também, Harika. — Respondo, sincera. — Teremos um tempinho juntas. — Ela concorda.
Quando me afasto, percebo as malas no carro.
Olho para Osman, curiosa. Ele nota meu olhar e nem espera eu perguntar.
— Voltamos de vez. — Diz ele.
Fico em silêncio por alguns segundos.
Não esperava por isso.
— É bom saber. — Comento. — O Norte sempre precisa de gente confiável por perto.
— Sempre, minha menina. — Ele diz, sorrindo. — Sempre. — E aqui, vem o abraço.
Mas há algo no olhar dele… algo que não sei nomear.
Uma sombra discreta, escondida atrás da expressão cordial. Talvez seja apenas cansaço.
Ou talvez não.
Por via das dúvidas, decido manter os olhos abertos.