2-O acordo

1605 Palavras
Lunara Tokatli Mais um dia difícil. Eu acordo com o mesmo som de passos, murmúrios e portas batendo pelos corredores da mansão. Tudo aqui soa como uma espera disfarçada. Espera pelo fim. Parece que todos estão apenas aguardando duas coisas: se meu pai vai morrer hoje… ou se já decidiu quem tomará o controle do Norte. Nada além disso importa. O ar tem gosto de tensão e poeira. A luz entra pelas grandes janelas e corta o ambiente como uma espada. Os servos se movem rápido, as vozes são baixas, mas carregadas de ansiedade. Cada olhar que cruzo traz a mesma pergunta muda: ele ainda vive? Desde que nasci, o nome Tokatli foi sinônimo de poder e respeito. É um nome que carrega séculos de domínio, guerras e sangue. Foi a nossa família que rompeu alianças antigas com outras organizações para erguer um império próprio, independente. Enquanto muitos se apoiavam em laços estrangeiros, nós escolhemos caminhar sozinhos. E sozinhos, dominamos o Norte. O Sul sempre foi grande, mas traiçoeiro. E o Leste… o Leste é uma ferida aberta, sempre prestes a sangrar. E o Sul sempre foi na sua essência, uma arrogância por ter crescido além do esperado. Meu pai, Halit Tokatli, construiu tudo o que temos à base de sangue, autoridade e maestria. Ele sempre soube liderar, mesmo com punhos cerrados e palavras afiadas. Cumpria o que prometia, e quando ameaçava… cumpria também. Ninguém duvidava da força dele. Mas agora, o império dele está desmoronando junto com o corpo. O câncer já se espalhou. Já alcançou os pulmões, o fígado, o estômago… tudo. Ele está morrendo, e nós sabemos disso. Meu desejo é que ele melhore, ao menos por um tempo. Não por amor, esse sentimento nunca existiu entre nós, mas por segurança. A presença dele mantém as hienas afastadas. Quando ele se for, eu serei a carne fresca no meio da matilha. Sento na sala principal e observo a lareira apagada. Tenho uma xícara de chá frio nas mãos e nenhum apetite. Tento organizar papéis, ler correspondências, qualquer coisa que me distraia, mas a mente não colabora. Até que uma das empregadas entra às pressas. — Senhora Tokatli. — Diz, com a voz trêmula. — O senhor, seu pai, deseja vê-la. Meu coração dispara. Deixo a xícara sobre a mesa e me levanto num pulo. Sem pensar, sigo apressada pelo corredor comprido. Cada passo ecoa forte demais, como se o chão quisesse me lembrar do peso do que vem a seguir. Quando chego à porta do quarto dele, respiro fundo antes de entrar. Meu pai está sentado na cama, as costas eretas, os olhos abertos e frios como o aço. Há dias não o via tão desperto. O lençol branco contrasta com o tom pálido da pele, mas, apesar da fragilidade, ele ainda impõe presença. Assim que me vê, faz um aceno com a mão para eu me aproximar e eu faço. Curvo-me, depois ajoelho diante dele sabendo que ficar de pé para ele será impossível. — Pai… — Eu quase sussurro. — Como o senhor se sente hoje? Ele inspira devagar. — Melhor. — A voz dele é rouca, mas firme. — Sinto fome. Já mandei preparar algo decente. Não suporto mais sopa rala, água e remédio que não tem fim. Isso não é vida! Eu sorrio, aliviada. Mas também sinto a irritação dele. — Isso é ótimo. Eu fico aliviada. — Tento mostrar um leve sorriso. — O apetite pra algo maior é um bom sinal. Mas ele franze o cenho. Ele não mostra nada de bom. — Você só diz isso para se manter segura. Acha que não sei? A frase me corta como faca. Ele não sabe agir sem essa arrogância e grosseria. É parte dele! Abaixo a cabeça. — Eu me importo, pai. De verdade. Você é o homem mais forte que já vi. — Pelo menos nisso, você tem razão. — Ele se recosta levemente e limpa a garganta. — Chamei você por outro motivo. Levanto o olhar, atenta. Os olhos dele são duros, indecifráveis. — Hoje... — Ele começa e solta uma leve tosse. — Mandei convocar todo o conselho. Aqui no quarto. Eu preciso aproveitar que me sinto pelo menos mais... apresentável. E melhor também de falar. Meu corpo se tenciona. — O conselho? Aqui? — Sim. No meu quarto. — Ele apoia as mãos sobre o cobertor. — Vou anunciar como as coisas devem ser. Não deixarei que outro nome lidere o que pertence à nossa família. Isso seria a ruína e eu tive trabalho demais pra deixar de qualquer jeito. Sinto o ar escapar dos meus pulmões. Eu entendi certo? — Quer dizer que... — Que é melhor você saber o que virá. — Ele me interrompe. — Quando eu morrer, você vai comandar o Norte. Por um instante, fico em silêncio. Tudo ao redor parece desaparecer. Ouço apenas o som do relógio batendo no canto do quarto. Eu jurava que ele daria essa posição a um dos seus homens mais confiáveis. — Pai… — Sussurro, ainda sem acreditar. — Eu? — Você é uma Tokatli. — Ele não pisca. — E é a única. Mesmo solteira, vai liderar. Terá o apoio do conselho, mas se falhar… — Ele pausa. — Se falhar, tudo o que for destruído será culpa sua. E não terá ninguém para te salvar de qualquer ataque. Será seu fracasso! Engulo em seco e aceno, com a cabeça abaixada. — Eu farei o que o senhor mandar. — Vai precisar de pulso firme. — Ele continua. — Deverá ser fria, imparcial. Não vai haver piedade, nem hesitação. A fraqueza é o primeiro passo para a ruína. Nada de pena, compaixão ou qualquer sentimento envolvido... seja fria e pense sempre na organização. Eu escuto, sem ousar interromper. Ele fala sobre as divisões de poder, as fronteiras, os acordos comerciais e as lealdades instáveis. Explica o que cada nome do conselho representa, o que esperar deles, e o que fazer se algum se rebelar. Tento guardar cada palavra, mesmo que a mente esteja latejando com o choque. Quando ele termina, recosto-me, exausta. A decisão é ousada. Inesperada. Mas, no fundo, eu entendo. Essa será a única forma de manter o nome Tokatli vivo e o Norte em pé. { . . . } Horas depois, o quarto dele está cheio. O ar é pesado, carregado de perfume, suor e tensão. O meu pai já tomou um banho, comeu bem e está sentado na cama. Barba feita, cabelos alinhados e mostra postura. Os doze membros do conselho estão de pé, dispostos em semicírculo diante da cama. Todos com expressão tensa, alguns visivelmente desconfortáveis. Eu permaneço ao lado dele, calada. O som de respiração é a única coisa audível. O meu coração bate como um tambor. — Estou morrendo. — Ele fala de forma direta. Sem discursos. A frase reverbera como um trovão. Alguns trocam olhares, outros abaixam a cabeça. Um murmúrio se espalha, até que ele ergue a voz: — Silêncio! Não quero ouvir nada. O quarto se cala imediatamente. — Não quero falsos confortos nem promessas tolas. — Continua ele. — A verdade é que meu tempo acabou. E antes que minha mortë gere disputas, quero deixar tudo definido. Ele olha para mim. — Minha filha, Lunara Tokatli, será a nova líder da região Norte. O impacto é imediato. Vários homens se entreolham, chocados. Um deles, o mais velho, balbucia algo, mas meu pai o silencia com um simples movimento de mão. — A lei é clara! — Diz ele. — O sucessor direto tem a palavra. E ela é a única Tokatli viva. O silêncio que se segue é quase palpável. — Sob a liderança dela, o conselho permanecerá o mesmo. Ninguém será removido, a menos que cometa traição. Cada um de vocês manterá suas terras e rotas comerciais. Terão novas áreas de administração como forma de aprimorar suas riquezas. Os olhares se acalmam um pouco, a ambição substituindo a revolta. — Vocês e seus filhos terão direito hereditário sobre seus lugares. — Ele prossegue. — E ela, como líder, ouvirá todos antes de qualquer decisão. Mas, lembrem-se: a palavra final será dela. E quem desobedecer… — Ele pausa e ergue o olhar. — Saberá o preço. Ela será a única com a palavra em ação à forças maiores. Um servo entra, trazendo uma bandeja de papéis selados. Meu pai pega um dos documentos e o ergue. — Estes são contratos de fidelidade. — Ele os distribui, um a um. — Neles estão escritas as condições, recompensas e punições. Assinem! Vejo as mãos hesitantes, os olhares desconfiados. Mas ninguém ousa recusar. Eles sabem o que perdem se não concordarem. Um a um, os homens pegam a caneta, assinam, selam com o próprio anel e devolvem. O som das assinaturas é como o de correntes sendo presas. Quando o último contrato é recolhido, meu pai me entrega a pilha. — Guarde! Se algum deles quebrar o juramento, você sabe o que fazer. Seguro os papéis contra o peitö. Sinto o peso de cada nome, cada assinatura, cada vida que agora depende de mim. Ele se recosta mais uma vez, o rosto pálido, o olhar distante. — Está feito! — Diz, com a voz cansada. — A partir de agora, todos aqui devem obediência à líder Lunara Tokatli. Os homens se curvam, um a um. Eu continuo imóvel, sem saber se devo chorar, agradecer ou temer o que acabei de receber. No fundo, sei apenas uma coisa: meu pai, mesmo à beira da morte, acaba de me entregar um império e junto dele, um campo minado. E agora, o Norte é meu.
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