Capítulo 1

1135 Palavras
Victoria — Vicente está morto! Notas suaves de música clássica francesa flutuam no ar, dançando ao redor das palavras que pronuncio em voz alta. Elas soam absurdas no silêncio do conservatório vazio, onde apenas as gotas orvalhadas de tinta na ponta do meu pincel testemunham a minha dor. A tinta amarela, delicada e vibrante, ameaça escapar das cerdas, vacilando no limite, como eu. A pintura diante de mim se espalha com cores vivas, um contraste c***l com a monotonia cinza que preenche meu peito. São lágrimas não derramadas. Natasha, minha amiga mais querida — e atualmente a única — disse que ajuda dizer essas coisas em voz alta. Faz parte do luto, segundo ela. Reprimir só leva ao desastre. Desastres como os olhos tortos do ursinho de pelúcia que levei quarenta minutos tentando fazer parecer acolhedor e agora... agora ele parece um pequeno serial killer. Definitivamente, não é o melhor design para pendurar nos corredores de um hospital infantil. Fecho os olhos. As lágrimas, quentes e pesadas, escorrem pelo meu rosto enquanto meu peito aperta, como se mãos invisíveis agarrassem meu coração com força. Vicente está morto. Meu noivo. Há cinco dias, enterrei-o sozinha. Nem mesmo sua família compareceu. Porque eles também estão mortos. Para todos — principalmente Natasha — Vicente era o homem doce e gentil que conheci no hospital, quando eu pintava murais e ele animava as crianças com fantoches. Nos unimos pela paixão de levar alegria àqueles que mais precisavam. Mas era só uma parte da verdade. Vicente era herdeiro da Máfia, e eu seria sua esposa. Nosso noivado foi um acordo: unir nossas famílias para garantir proteção em tempos cada vez mais perigosos. Uma família em ascensão, os Castellis, havia transformado nosso mundo em brutalidade e sangue. Casamentos como o nosso eram mais que tradição — eram sobrevivência. Agora, Vicente descansa em uma cova rasa ao lado dos seus, e eu... eu apenas espero pela minha vez. Ele era bom comigo. Atencioso, gentil, com olhos que sempre procuravam os meus em meio ao caos do hospital. Ele me trazia café e donuts de caramelo, me fazia rir com histórias bobas enquanto comíamos macarrão em um restaurante escondido da cidade. Com o tempo, aquele acordo forçado se transformou em algo mais. Ou ao menos eu queria acreditar nisso. Mas agora, isso não importa. Ele se foi. Estou sozinha. E o futuro da minha família pende sobre um abismo. Respiro fundo e abro os olhos, semicerrando-os como se o tempo que passei na escuridão pudesse ter alterado o olhar do ursinho de pelúcia. Mas não. Ele continua ali, me encarando com olhos vazios e distorcidos. Fracasso. Ou talvez… Enxugo as lágrimas com as costas da mão e respiro fundo. Em vez de descartar a pintura, decido salvá-la. O buquê de flores dá lugar a uma pequena faca ensanguentada. O tapa-olho cobre a imperfeição mais gritante, e os ovos de Páscoa viram destroços de um robô de brinquedo. O ursinho assassino sorri para mim de volta, cúmplice silencioso da minha dor. Não é o ideal para a Páscoa, mas vai ser perfeito no Halloween. Termino os últimos detalhes e, por um instante, uma fagulha de satisfação aquece meu peito antes de ser consumida pela tristeza. Não chore. Não agora. — Tori? — A voz do meu pai me faz saltar, o pincel quase escorrega da minha mão. — Papai? — Esfrego uma última vez o rosto e forço um sorriso. Ele cruza a sala rapidamente, surpreendendo com sua agilidade apesar da sua forma física, Suas mãos calejadas envolvem as minhas, ignorando as manchas de tinta. — O que houve, minha querida? — Nada. É só o cheiro forte da tinta, sabe? — Fungo, fingindo leveza. Ele me examina, mas sorri — aquele sorriso escondido por trás do bigode grisalho. — Tem certeza? — Positivo. — Forço um aceno. Ele já carrega um peso imenso com a morte de Vicente. Não precisa do meu desmoronamento também. — No que você está trabalhando? — Ele se inclina para observar a pintura. — Não me diga que isso é para o hospital. — Era para ser. — Largo o pincel, deslizando a paleta para a mesa ao lado. — Ia ser uma pintura alegre, mas… as coisas tomaram outro rumo. — Ficou… único. — Ele gira a tela como um crítico de arte relutante. — Foi o que pensei. Vai ser perfeito para o Halloween. — Dou de ombros. — Lindo. — Ele finge entusiasmo, e eu aceito o elogio com um sorriso cansado. Enquanto conversamos, seu olhar vagueia pelo estúdio, fixando-se nas pinturas da minha mãe. A saudade transborda em sua expressão, aquela dor silenciosa que nunca o abandonou desde que a perdemos. — Ela pintou esta logo depois que nos casamos. — Ele aponta para uma paisagem serena. — Ela me disse que era sua favorita. — Fico ao lado dele, unindo nossas memórias em silêncio. — Ela era minha.. — Sua voz embarga. Será que, anos depois, eu falaria de Vicente da mesma forma? Subitamente, ele se vira, segurando minha mão com firmeza. — Venha, Tori. Preciso lhe contar algo. Meu estômago se contrai. O tom dele, o modo como eEnzou o assunto até agora — tudo grita que algo está por vir. — Você está me assustando, papai. O que pode ser pior do que Vicente? Ele me guia até o banco de madeira junto ao jardim. O ar parece mais denso. Seu olhar é o mesmo de quando eu trazia boletins ruins — pesado, resignado. — Victoria, você sabe o quanto eu te amo, não sabe? — Sei, papai. — Sussurro, temendo o que vem a seguir. — A morte de Vicente foi um golpe devastador, mas não temos tempo para luto. A família Castelli está cada vez mais forte, e precisamos de proteção. Eu já sei. Antes que ele termine, as palavras já estão na ponta da minha língua. — Você quer que eu me case com outra pessoa, não é? O alívio nos olhos dele confirma. — Sim, minha querida. É a única forma de mantê-la segura. Sozinhos, não resistiremos por muito tempo. Respiro fundo. Eu sempre soube que, como filha única dos Catalano, minha vida nunca foi realmente minha. — Entendo. São só negócios, certo? — Exatamente! — O brilho em seus olhos é quase comovente. — Se houvesse outra opção, eu escolheria, Tori. Mas não temos esse luxo. Aperto sua mão, abafando o peso das minhas próprias vontades. — Então… quem é? Ele hesita, por um segundo que parece eterno. — Giovanni Castelli. O nome cai sobre mim como uma sentença. O sangue congela nas minhas veias. O mundo se desfaz em volta, lento e implacável. — O quê? — A palavra rasga minha garganta em um sussurro rouco. E assim, meu destino se redefine mais uma vez.
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