3- CARIOCA

1146 Palavras
CAPÍTULO 3 CARIOCA NARRANDO Acordei na sala dos fundos da boca com a cabeça pesada, aquele cheiro de pó misturado com perfume barato grudado no ar. Abri o olho devagar e vi duas piranhä largada no colchão comigo, uma roncando de lado, outra jogada de barriga pra cima, peito de fora. Eu tava pelado, só com o cordão batendo no peito. Revirei os olhos, passei a mão no rosto e soltei logo: — Levanta, caralhø… vaza daqui. — falei arrastado, a voz rouca. — Já deu a cota de vocês, rua! As duas se mexeram, resmungando, mas eu não repeti. Peguei a peça que tava do lado do colchão, bati no chão com força e pronto… saíram apavorada, catando as roupas de qualquer jeito. Fiquei de pé, estiquei o corpo e fui procurar um baseado na mesa. Foi quando ouvi a porta bater forte atrás de mim. Meu coroa entrou, a cara fechada, aquele olhar que cortava mais que lâmina. — Porrä, Carioca! — ele falou alto, a voz grave ecoando na sala. — É assim que tu quer ser patrão, caralhø? Pelado, com duas qualquer largada do teu lado? Dei uma tragada funda, soltei a fumaça devagar e olhei pra ele sem pressa. — Qual foi, coroa? Só tava curtindo… deixei a mente leve, tá ligado? Ele bufou, bateu a mão na mesa com força. — Curtindo, porrä nenhuma! Tu já tem prometida, moleque. Tá achando que o crime é bagunça? Tu tem que passar imagem de patrão, de futuro dono. Não de pivete que acorda em colchão sujo com piranhä do morro. Revirei os olhos, coçando a nuca. — Relaxa, coroa… prometida é prometida, mas até lá eu tô solto. Não vou passar vontade não. Ele deu um passo pra frente, me encarando de perto, o cheiro de baseado e álcool dele batendo forte. — Já te falei ontem e vou repetir: aproveita o tempo, mas não faz cagada. Tu não pode deixar rastro de fraqueza, entendeu? Quem vai ser dono não pode dar brecha. Joguei o baseado fora, dei aquele sorriso maroto de canto. — Suave, pai. Eu sei jogar. Ele ficou em silêncio por uns segundos, só me encarando, e depois falou baixo: — Espero que saiba mesmo, Carioca. Porque no dia que tu vacilar, o morro não perdoa… nem eu. A porta bateu de novo quando ele saiu, e eu fiquei ali, pelado no meio da sala, com a mente fervendo. Era bronca atrás de bronca, mas no fundo eu sabia, que por mais que eu curtisse as piranhä do morro, era só uma coisa que queimava de verdade na minha cabeça. A ruiva. Depois da bronca do coroa, respirei fundo, catei minhas roupas jogadas no canto e comecei a me vestir devagar. Cueca, bermuda de tactel, camisa de time e o cordão de volta no peito. Pisei no tênis sem nem amarrar direito, joguei o boné na cabeça e saí da sala dos fundos da boca, com a cara de quem não devia nada. Do lado de fora, o sol já rachava, a rua fervendo. Catei minha moto encostada na calçada, dei partida e o ronco do motor ecoou pelo beco. A galera abriu caminho na hora. Patrãozinho passando, ninguém se mete. Cheguei no meu barraco, subi direto pro quarto. Larguei a minha arma em cima da cômoda, tirei a roupa de novo e fui pro banho. A água gelada bateu no corpo, levando o cheiro das piranhä e da madrugada. Fiquei um tempo ali, pensando. Cada gota que escorria parecia esfriar a bronca do meu pai, mas dentro de mim, a ruiva só ficava mais viva. Saí, enrolei a toalha na cintura, liguei o som baixinho no quarto, me vesti de novo, com uma bermuda jeans, camisa branca ajustada no corpo, tênis limpo, perfume estourando. Olhei no espelho e dei aquele sorriso maroto de canto. Foi nessa que o celular vibrou no criado-mudo. Peguei. Na tela: Juninho. — Fala, cria. — atendi, ajeitando o cordão no pescoço. Do outro lado, a voz dele veio acelerada, daquele jeito direto: — Patrão, fiz a missão. A ficha da ruiva já tá na tua mesa lá na boca. Escola, rotina, até o mercado que ela passa com o pai… tudo na mão. Sorri de canto, o coração batendo mais rápido, não de emoção… mas de poder. — Brabo, Juninho. Tu é visão. Vou colar ai daqui a pouco pra ver essa porrä. — Tá na responsa, patrão. — ele respondeu, desligando em seguida. Guardei o celular no bolso, joguei o boné pra frente e encarei meu reflexo no espelho. Amanhã eu podia até pegar piranhä no baile, mas naquele momento, só tinha uma coisa que eu queria ver: a vida da ruiva, linha por linha, como se fosse meu mapa do tesouro. Catei a Glock em cima da cômoda, conferi o pente cheio, engatei na cintura e puxei o rádio da base que tava carregando. Testei o chiado, botei no cinto também. Patrão não anda solto, tem que tá na postura. Saí do barraco, desci até a moto. Dei partida e o ronco ecoou no morro, menor já abriu caminho na hora. Passei direto pela contenção, cumprimentando com a cabeça, e segui rasgando até a boca. Quando encostei, a movimentação já tava a milhão. Os vapores na contagem, rádio chiando sem parar, cheiro de pó misturado com cigarro no ar. Subi as escadas internas da boca principal, cheguei na minha sala. O ventilador barulhento girando lento, e em cima da mesa, a pasta que eu já sabia o que era. Me joguei na cadeira, joguei o boné pra trás e puxei a ficha. Primeira folha: Alanny Oliveira da Silva. A foto 3x4 dela presa no canto com clipe. O cabelo ruivo, o olhar meio sério… parecia que até na foto tinha fogo no olho. Comecei a folhear devagar, cada detalhe marcando na mente: — Quinze anos. Mora no barraco do beco da cinco, com o pai, João. Órfã de mãe. Estuda no colégio estadual do asfalto, turno da manhã. Sempre volta com duas amigas: Bruna e Tainá. — li em voz alta, rindo de canto. — Certinha mesmo, hein… Mais pra frente: Não tem namorado. Conhecida como reservada. Costuma ir no mercado com o pai todo sábado de manhã. Encostei na cadeira, joguei a ficha na mesa e fiquei olhando a foto dela. — É isso, ruivinha… cê pode até sonhar com liberdade, mas eu já sei teus passos, teu caminho, até a hora que tu respira. — falei baixo, rindo sozinho. — No dia que eu quiser, eu encosto. Passei a mão no rosto, puxei a Glock da cintura e botei na mesa ao lado da ficha, como se fosse um lembrete: o mundo dela já era o meu mundo. E no fundo da minha mente, só um pensamento ecoava, que a ruiva podia até correr, mas nunca ia escapar. Continua....
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