Passara-se um mês desde a noite inesquecível de Charlotte em Las Vegas. Agora, ela estava em um pequeno quarto de pensão, deitada numa cama que rangia a cada movimento. Eram quase nove da manhã quando acordou sentindo-se pesada, tonta e… enjoada. Em poucos segundos, correu até o minúsculo banheiro e vomitou sem parar.
Quando conseguiu se recompor, Charlotte arrastou-se de volta para a cama, as pernas trêmulas.
— Só pode ser o que a mamãe e a vovó tinham… — murmurou, abraçando o travesseiro. Lágrimas despencaram sem cerimônia. — Estou morrendo, eu sei que estou…
Depois de horas chorando, decidiu ligar para Laura, que sempre soube como acalmá-la — ou, pelo menos, distraí-la.
Pouco tempo depois, a porta do quartinho se abriu com um estrondo, revelando Laura. Vestindo roupas de grife e usando óculos de sol enormes, ela entrou esbaforida, reparando de imediato na precariedade do lugar.
— Charl! — exclamou, escandalizada. — Pelo amor de Deus, você enlouqueceu de vez? Que muquifo é esse?
Laura deu uma volta rápida pelo espaço, desviando-se de uma pilha de caixas e de um ventilador barulhento. — Tá perigoso, é deprimente… Juro que, se eu fosse alérgica a poeira, já estaria morta aqui dentro!
Charlotte, sentada na cama, levantou o rosto cheio de lágrimas.
— Laura, estou morrendo… — anunciou, com a dramaticidade de quem recita uma tragédia shakespeariana.
— Ah, claro, você sempre fala isso… — rebateu Laura, revirando os olhos. — Qual o drama da vez?
— O drama da vez é que estou vomitando sem parar, sinto dores, tontura, cansaço… — enumerou Charlotte, de voz trêmula. — E, você sabe, minha mãe e minha avó tinham fibrose cística. Deve ter chegado minha hora…
Laura soltou um suspiro impaciente, mas acabou aproximando uma cadeira para se sentar ao lado da cama.
— Escuta aqui, você nem sabe o que é direito, e já está bancando a camelia que caiu do galho e deu dois suspiros?
Charlotte soltou um soluço.
— Eu estou sentindo minhas forças indo embora pelos dedos… — lamentou, exibindo as mãos, quase como se esperasse ver a vida escorrendo pelos vãos.
— Bom, no seu caso, escorrendo pelo ralo do banheiro, né? — zombou Laura. — Pelo jeito, você vomitou a alma.
Charlotte, ofendida, cruzou os braços.
— Muito engraçada você…
— Eu te amo, sua tonta, mas chega de lamúria! — Laura se aproximou e colocou a mão na testa de Charlotte. — Você não está nem com febre… só está pálida. E esses olhos fundos…
— Estou morrendo, — repetiu Charlotte, dramática, deixando a cabeça cair no travesseiro. — Não tenho dúvidas. Eu ja estou vendo a luz...
— Não veja a luz, corra da luz imediatamente e volte para cá
Laura olhou fixamente para ela, com uma expressão séria que não combinava muito com seu gênio escandaloso.
— Você transou com alguém nos últimos dois meses?
Charlotte corou violentamente e travou, sem saber como responder.
— Epa. — Laura estreitou os olhos. — Conta tudo, Char.
— Você sabe… a gente foi pra Las Vegas… — começou Charlotte, mexendo nervosamente nos próprios dedos. — Eu vendi a casa pra ter dinheiro, passamos vinte dias lá gastando tudo com festas, cassinos, e…
— E o tal cara? — Laura já estava impaciente. — Aquele deus grego que te deixou nas nuvens, como você vive dizendo.
— Odysseus Megallos. — Charlotte pronunciou o nome como quem evoca um feitiço. — Aconteceu… a noite inteira…
Laura bateu palmas, meio irônica.
— Então rolou mesmo, hein? Eu desconfiava, mas você nunca me contou em detalhes.
Charlotte suspirou, revirando-se na cama.
— Depois ele sumiu, e eu gastei todo o meu dinheiro… Agora estou aqui, esperando a morte.
A amiga deu uma gargalhada alta, que ecoou naquele quartinho abafado.
— Charlotte, pelo amor de Deus, você não percebe o óbvio?
— O quê?! — Charlotte arregalou os olhos, assustada.
Laura levantou, foi até o guarda-roupa capenga e vasculhou até encontrar uma calça jeans mais apresentável. Jogou a peça em cima da cama.
— Toma, veste isso e troca essa camiseta horrorosa. A gente vai ao médico.
— Não! — Charlotte reagiu, desesperada. — Prefiro não saber de nada. Se vou morrer, não quero ouvir o diagnóstico.
— Sério? — Laura pôs a mão na cintura, o olhar duro. — Você acha mesmo que fibrose cística faz a pessoa… — abaixou a voz para um tom grave — …vomitar pela manhã, ter tonturas e ficar cheia de… anseios românticos?
— Hã? — Charlotte franziu o cenho.
— Você tá com sintomas que nunca teve antes, e nem sua mãe ou avó tinham desse jeito. — Laura enumerou nos dedos. — Enjoos matinais, tonturas… e nem a fibro causa uma ‘paixonite crônica’.
Charlotte piscou, atordoada, sem entender de onde Laura tirava aquela teoria.
— Dá pra, por favor, colocar uma roupa e ir comigo ao médico? Ou vai querer continuar nessa lama?
Charlotte ficou em silêncio por alguns segundos. Não entendia as insinuações de Laura, mas a cara da amiga não deixava dúvida: ela estava suspeitando de algo, e não era a doença que ceifara sua mãe e sua avó.
— Tudo bem, — acabou cedendo Charlotte, derrotada. — Mas eu juro que se o médico disser que estou morrendo, você vai comprar o maior pote de sorvete que existir pra gente comer juntas, ok?
Laura revirou os olhos e pegou a bolsa:
— Fechado. E, se não estiver morrendo, você vai me pagar um jantar caríssimo pra comemorar.
Charlotte deu um sorrisinho tímido, ainda incerta, mas sem coragem de confrontar a amiga mais uma vez. Levantou-se devagar, sentindo o corpo fraco, mas determinada a enfrentar aquele medo — fosse a morte, fosse o que fosse.
Enquanto trocava de roupa, Laura foi até a janela minúscula do quarto e deu uma olhada para a rua, balançando a cabeça num gesto de reprovação.
— Depois do médico, a gente conversa sobre você sair daqui. Não vou te deixar mofando nesse lugar horrível.
— Laura, — chamou Charlotte, num fio de voz. — Obrigada…
— Não agradeça ainda. — Laura lançou um olhar cúmplice. — Espera até ouvir o que o doutor vai dizer.
E assim, entre lágrimas e risadas, as duas seguiram juntas para descobrir que segredo o corpo de Charlotte guardava — e, sobretudo, para entender se aquele capítulo da vida, que ela julgava o final, poderia ser, na verdade, só um começo inesperado.