Seraphin estava na mata, sentado, quieto, já devia ter partido, já devia estar em outra cidade, com outro nome, outro contrato, mas alguma coisa o impediu de seguir, algo que nunca tinha acontecido, nem sabia bem porque ficava, não sabia.
Deixou o carro encostado numa estrada de barro e seguiu a pé, a noite já tinha caído, ventava, mas ele não ligava, tinha comido alguma coisa que caçou mais cedo.
Se aproximou da fazenda de Alceu Batista, ficou à espreita, sem som, sem movimento, viu Cora mais uma vez, sentada perto de uma fogueira, o vestido fino, a cabeça baixa, os homens da fazenda já tinham partido, ou voltado pros alojamentos, só ela ali, no escuro, esperando sabe-se lá o quê.
A janela da casa principal se abriu.
— Entre, Cora — a voz de Alceu, sempre a tratando ma.l.
Ela respirou fundo, continuou ali.
— Só mais um pouco, Alceu…
— Entre — ele repetiu, com mais força — ou vou te buscar aí embaixo, e não estou com paciência pra isso, entre logo, e venha pra cama.
Ela levantou, devagar, entrou pela porta dos fundos, os olhos molhados, a boca tremendo, os pés arrastando.
Seraphin viu tudo.
Não se moveu na hora.
Mas pegou o isqueiro do bolso, acendeu um galho seco, jogou em direção à plantação de milho, o fogo pegou rápido, seco, alto, as chamas se espalharam em segundos, como se tivessem esperando por aquilo.
Voltou pra mata, caminhando devagar, como quem não tem pressa de apagar rastros, se deitou no chão de folhas, viu o clarão subir por trás das árvores, ouviu a gritaria, homens correndo com baldes, Alceu gritando e dando ordens em cima do cavalo.. ao menos tina deixado Cora em paz, e ela não foi tocada naquela noite.
Seraphin fechou os olhos e se perguntou, pela centésima vez, por que inferno estava se importando tanto, por que aquilo corroía, por que a imagem dela não saía da cabeça.
Duas horas depois, o fogo foi controlado, não levantaram suspeitas, era comum a vegetação pegar fogo naquela região, o vento forte, a mata seca, uma bituca de cigarro esquecida, ninguém se espantou muito, e Seraphin não se moveu, continuou deitado na mata, os olhos fechados, o corpo imóvel, pegou no sono por volta das três da manhã e acordou às seis, como sempre, sem despertador, sem demora, levantou, foi até o rio, tomou banho, lavou o rosto, se preparou pra partir.
Precisava.
Olhou em direção ao trecho queimado, mais adiante o casarão de Alceu ainda estava de pé, firme, intacto, e Cora… Cora ainda não era da conta dele, nem era o tipo de mulher que ele normalmente notaria, não era o que ele procurava, se é que procurava alguma coisa.
Foi até o carro, mas ao invés de sair dali, estacionou em uma curva da estrada e, pela última vez, se esgueirou pela parte da mata que o fogo não alcançou, queria vê-la antes de partir, só isso, ver, nada mais, e talvez esquecer.
Mas ouviu passos leves correndo, rápidos, desesperados.
E, de repente, ela caiu nos braços dele, chorando, o rosto sangrando, os olhos arregalados, e a dor dela, por alguma maldição, chegou até ele.
Seraphin tirou um lenço do bolso, mas não teve tempo de pensar muito, escutou o som de cavalos, cascos firmes batendo na terra, não hesitou, abriu a porta do carro, empurrou Cora pra dentro, trancou com um toque no botão, os vidros escureceram, o alarme interno foi ativado, invisível pra quem estava fora.
Alceu apareceu minutos depois, o rosto quente, o ódio subindo pela garganta.
Seraphin já estava com um cigarro aceso entre os dedos, fumando devagar, o olhar distante.
— Viu minha mulher?
Ele deu um trago fundo, soltou a fumaça e fez um leve gesto com a cabeça, apontando pro mato.
— Passou correndo, á com o rosto machucado…
___ essas moças, mas hoje ela aprende.
— Está partindo?
— Estou — Seraphin respondeu, sem mexer um músculo — nesse exato momento.
Alceu partiu para o lado que o assassino de Aluguel apontou.
Seraphin observou as costas dele sumindo pela estrada, não disse nada, mas já tinha decidido que voltaria ali, e que ma.taria aquele homem, só precisava pensar o que fazer com Cora antes disso.
Entrou no carro, deu a partida.
Ela não se moveu.
Horas depois, com o sol já alto, ele parou o carro no meio do nada, abriu a mochila de primeiros socorros e puxou o kit, conferiu o rosto dela com atenção, tinha um corte do queixo até perto do olho, fino, fundo, bem dado, mas ainda assim, ela era bonita, achava que nunca tinha visto uma mulher bonita como ela, e nenhuma outra havia mexido com ele assim..
— Vai arder — avisou, embebendo o algodão numa loção, sem esperar permissão.
Passou no corte com firmeza, e ela gritou de dor.
— Pronto, pronto… assim não vai infeccionar.
Ela respirava rápido, ainda com o rosto tenso.
— Tenho que voltar…
___ quer voltar pra lá?
— Não — ela respondeu, com os olhos fixos nos dele — mas não tenho pra onde ir.
Ele ficou em silêncio por um instante.
— Venha comigo.
— Pra onde?
— Não sei, Cora… eu não tenho casa, não tenho por.ra nenhuma, mas pelo menos você não vai viver cercada por cerca de arame e apanhar.
Ela baixou os olhos.
— Durma — ele disse, acendendo outro cigarro — daqui uma hora eu arrumo algo pra você comer, porque Alceu deve imaginar que estar comigo, preciso despistá-lo...