Elisa percorreu o trajeto de volta para casa de cabeça baixa. O conhecia tão bem, que poderia fazê-lo de olhos fechados. O começo cheio de calçadas bonitas, com ladrilhos perfeitos, residências pintadas. Ela sabia o momento exato em que os muros se tornavam cinzas, as vielas escuras e as casas m*l-acabadas.
Aquele era seu trajeto para a escola. O fazia todos os dias. A pé. Eram 45 minutos de caminhada pela manhã, quando as ruas ainda estavam vazias. Na volta, levava um pouco mais de uma hora, desviando dos transeuntes que se aglomeravam nas ruas no horário de almoço. Pagar por um transporte escolar não era uma opção, era artigo de luxo. Elisa Andrade não tinha nem dinheiro para comprar lanche na escola. Sequer poderia estudar lá, se não fosse a bolsa integral que recebeu dois anos atrás, para cursar o ensino médio.
Naquele dia, o retorno para casa estava ainda mais demorado. Já estava andando por 50 minutos e pelas contas dela, ainda faltava uns vinte. Tinha sido o último dia de aula do seu segundo ano. Estava de férias, graças as boas notas que conseguiu nas provas finais. Não por mérito dela, quase toda a sala também tinha conseguido passar direto. Tinham excelentes professores.
Deveria estar feliz porque finalmente poderia dormir até tarde e se divertir como uma adolescente. Mas para Elisa, o último dia antes das férias era sempre o pior. Desde que ela havia se mudado para aquela escola e descoberto como seus colegas de classe passavam os recessos escolares, ela se deparou com um sentimento novo, que se recusava a chamar de inveja.
A verdade é que a pobre coitada só havia deixado a cidade para visitar parentes. Não conhecia nada muito além da Grande BH. Nunca tinha visto a praia, quer dizer, viu uma vez, aos cinco anos, quando seus pais a levaram para Guarapari junto de alguns amigos.
Ela não se lembrava de tudo com clareza, só que tinha sido o melhor dia de sua vida. Lembrava da emoção, mas não recordava do cheiro do mar.
Até Elisa se mudar para a Escola Santa Goretti, ela amava as férias. Era o tempo que ia brincar com os amigos do bairro. Se juntavam para as mais diversas competições e brincadeiras. Também ajudava o pai na pequena loja de material elétrico, junto com a irmã mais nova, Helena.
As duas aproveitavam essa época do ano para se aproximarem, compartilhando dos interesses em comum e brigando por todo o resto. Um dos hobbies que amavam eram os livros, assim que terminavam um por qual se apaixonavam, ficavam ansiosas para que a outra lesse também e pudessem discutir a história.
Helena amava os romances, mesmo sendo uma espoleta na vida real. Vivia cheia de namoradinhos, nunca se apegava de verdade a ninguém. Aos 15 anos, já era uma atiçadora e deixava a irmã mais velha de cabelo em pé. Já Elisa gostava mesmo eram dos suspenses e os de investigações criminais. Com 17 anos, devia estar mais interessada nos garotos, assim como Helena, mas todas as vezes que tinha beijado um, acabou se decepcionando depois. Homens eram complicados demais para se envolver e exigiam muita energia. Energia essa, que Elisa não tinha para desperdiçar.
Mas o encanto das férias acabou quando a garota descobriu a realidade dos jovens ricos. Passar um mês viajando com a família para destinos paradisíacos era algo que Elisa nunca esteve próxima de experimentar e quando ela não sabia que isso existia era mais fácil se satisfazer com o pouco que tinha.
Agora, ela acompanhava pelas redes sociais a diversão luxuosa dos amigos com dor de cotovelo.
Esse era o motivo da volta lenta para casa. A tristeza a deixou cabisbaixa, andava chutando pedras, já imaginando as fotos das celebrações de Natal em meio à neve e as de Réveillon sob a chuva de fogos de artifício nas praias mais lindas do país.
A vida de Elisa era boa, mas fica pior quando você sabe que tem todo um universo que nunca lhe foi apresentado. E na volta às aulas, quando todos compartilhariam animados suas aventuras, ela só teria as partidas de futebol no lote vago da esquina para contar.
Elisa encontrou a comida do almoço esfriando sob um pano de prato, em cima do fogão. Todos tinham seus compromissos e ninguém esperava a mesa ficar completa para almoçar. Só aos fins de semanas comiam juntos. Comeu pouco, revirou o garfo de um lado para o outro, sem apetite.
Na outra mão tinha o celular, lia em silêncio as mensagens no grupo. Todos empolgados com as aprovações e fim das aulas. Nas redes sociais, o mesmo, apenas postagens em comemoração.
Ela tirou o uniforme e o colocou para lavar. Ano que vem voltaria a usá-lo. Encontrou a irmã no quarto em que dividiam, Helena estava deitada na cama segurando um livro acima de seu rosto. A irmã de Elisa não tinha tido a mesma sorte e estava de recuperação.
– Que cara é essa? – Perguntou a mais nova.
– A que eu tenho – disse jogando a mochila sobre a cama e tirando com cuidado os livros que estavam dentro. A mãe os guardaria para que Helena usasse quando chegasse a hora dela.
– Pelo amor de Deus, Elisa, você está de férias. Se anime! – Resmungou.
– Devo trabalhar o verão todo com o papai. Portanto, não é férias.
– Eu daria tudo para estar na loja hoje, ao invés de estar estudando para essa maldita prova.
– Você só está colhendo o que plantou. Quem mandou não estudar o ano inteiro – Elisa deu de ombros, irritando a irmã.
– Você é deprimente – Helena a olhou com desprezo. – Sabe de uma coisa, Elisa? Daqui 10 anos, você não vai sequer se lembrar da nota que tirou na sua última prova, mas eu vou me lembrar de tudo que eu fiz esse ano. Pode apostar – provocou. – E saia logo do quarto, ou vou dizer a mamãe que não está me deixando estudar.
Sem contestar, ela deixou o cômodo, precisava de um banho, lavar de si todo aquele ano escolar, seu penúltimo antes da faculdade.
Ainda de cabelos molhados, pegou um dos livros que havia separado para ler naquelas férias, A Garota do Lago e subiu para o terraço, um dos poucos lugares que podia ler em paz e sem atrapalhar os estudos de Helena.
O pai das garotas havia instalado uma rede lá em cima e elas viviam brigando para ocupá-la.
Sem concorrência, Elisa deitou nela e abriu a primeira página do livro. No mesmo instante um vento fresco bateu contra seu rosto, balançando seu cabelo pesado e úmido. Ela fechou os olhos e sentiu a brisa, tentando imaginar se era assim na beira do mar. De alguma forma, ali Elisa soube que aquele verão seria completamente diferente.
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Obrigada por acompanhar mais essa história. Amanhã tem mais um capítulo, então não deixa de colocar o livro na sua biblioteca e me seguir por aqui para não perder as notificações, tá?
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