Dizem que ninguém escolhe sua família, mas eu acredito que o universo tem suas maneiras misteriosas de costurar almas que precisam caminhar juntas. Foi assim comigo e com o Theo.
Nasci no dia 17 de outubro, às 4h13 da manhã. Theo nasceu menos de meia hora depois, no quarto ao lado. Nossas mães, Maria e Sofia, haviam se conhecido no corredor da maternidade, suando em trabalho de parto, unidas pelo cansaço, pelas dores e pela euforia. Saíram de lá inseparáveis — assim como nós.
Crescemos em um bairro pacato nos arredores de uma cidade que parecia sempre ensolarada. Ruas de paralelepípedos, árvores com galhos tortos que eram perfeitos para subir, e vizinhos que se conheciam pelo nome e dividiam bolo nas tardes de domingo. A minha casa era na esquina da rua 8 com a São Vicente. A do Theo, logo ao lado. Nossos quintais se tocavam, separados apenas por uma cerca baixa que ele pulava com facilidade — mesmo quando a mãe dele pedia para usar o portão como gente “normal”.
Aos cinco anos, Theo me deu uma pedra brilhante que encontrou no parquinho e disse que era um diamante mágico que me protegeria dos monstros debaixo da cama. Eu dormi com aquela pedra sob o travesseiro por anos. Aos sete, eu quebrei o braço tentando descer de cabeça do escorregador e ele chorou mais do que eu. Aos dez, ele prometeu que nunca ia deixar ninguém rir do meu cabelo ruivo — nem quando os meninos da escola me chamavam de "fogo na palha".
Éramos dois pedaços de uma coisa só. Onde eu estava, ele estava. E vice-versa.
Theo era mais calado, mais observador. Gostava de desenhar, principalmente heróis com capa e cicatrizes no rosto. Dizia que eram “os caras que sentiam muito, mas falavam pouco”. Eu falava pelos cotovelos. Era impulsiva, sonhadora, vivia com o joelho ralado e a cabeça nas nuvens. Mas com o Theo por perto, tudo fazia sentido. Ele me ancorava. Eu o fazia voar.
Nossos aniversários eram sempre uma festa dupla, cheios de bolo, bexigas coloridas e amigos gritando no quintal. Tínhamos um bolo pra cada um: o dele com cobertura de chocolate e o meu com glacê de baunilha e morangos. No final, a gente sempre trocava os pedaços — porque ele preferia o meu e eu preferia o dele. E ninguém nunca achou estranho. Era só... assim que sempre foi.
As nossas mães juravam que havia algo de mágico entre nós. “Esses dois foram feitos pra se cuidar”, dizia minha mãe, com um olhar sonhador. “Eles nasceram juntos por um motivo.” Eu costumava rir dessas coisas. Theo também. Mas, no fundo, havia algo ali. Uma ligação invisível, indestrutível. Uma sensação constante de que, mesmo que o mundo inteiro mudasse, ele sempre estaria lá. E eu também.
A adolescência chegou como uma ventania. De repente, Theo cresceu. Ficou mais alto, o rosto começou a mudar, a voz engrossou. Eu também mudei — mas sempre me perguntei se ele percebeu. Aos quinze, comecei a guardar segredos. Não dele, mas sobre ele. Meu coração começou a acelerar quando ele me abraçava sem aviso. Eu demorava mais para escolher a roupa quando sabia que íamos sair juntos. Comecei a escrever o nome dele nas margens do caderno, como se isso pudesse aliviar o aperto que eu sentia no peito.
Mas ele continuava sendo o mesmo Theo. Meu melhor amigo. A pessoa que me fazia rir quando o mundo parecia desabar. O que me levava chocolate quando eu estava de TPM e que esperava comigo o resultado das provas como se fosse o dele. Talvez ele nunca tenha percebido. Ou percebeu e fingiu que não.
Quando terminamos o ensino médio, sentamos juntos no banco do parquinho — o mesmo onde trocamos figurinhas aos oito anos — e prometemos que nada ia mudar. Que mesmo indo para universidades diferentes, continuaríamos sendo Lara e Theo. Os inseparáveis. Os “nascidos no mesmo dia”. Os que se protegiam.
Mas a vida, ah... a vida tem o hábito c***l de virar tudo do avesso.
Eu nunca contei a ele o que sentia. Nunca tive coragem. Sempre temi que, ao confessar, destruiria o que havia de mais precioso entre nós. Preferi o silêncio. Preferi a amizade.
Até hoje.
Porque algo mudou. E eu sei, no fundo da alma, que nossa história vai deixar de ser apenas sobre amizade. E começar a ser sobre tudo aquilo que guardamos por tempo demais.